19 Janeiro 2019
Benjamin Gross, recentemente falecido, foi o último dos grandes mestres judeus de hoje. Foi publicada agora uma análise teológica de sua autoria sobre o tema que marca a identidade do povo eleito: o Shabbat.
A reportagem é de Massimo Giuliani, publicada por Avvenire, 17-01-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ninguém pode dizer que conhece o judaísmo se realmente não entendeu o que é o Sábado judaico, e ninguém pode dizer que o entendeu se não viveu, pelo menos uma vez, o espírito e as normas do Shabbat.
É o segredo evidente, se me permitem o oxímoro, da vida judaica mais autêntica, mas, precisamente porque ele está diante dos olhos de todos e porque não é possível ler as Escrituras sem se deparar continuamente com a santificação do Sábado (que é explicitamente um dos 10 mandamentos), esse preceito também é um dos mais ignorados, para não dizer o mais incompreendido.
Grande parte da cultura cristã pensa que o domingo é o “sábado dos cristãos”. Mas, se não entendermos o que é o Shabbat judaico, a metáfora permanece vazia não apenas de práxis, mas acima de tudo de sentido.
E traduzi-lo com o termo “festa” é extremamente redutivo: não é uma festa, mas “a” festa no sentido mais amplo. De fato, ele celebra o cumprimento divino do maior milagre humanamente imaginável: a existência do mundo. Não só, esse sétimo dia, que Deus mandou santificar, revela o sentido e a vocação do mundo, além da sua transcendência.
Na recordação do repouso divino – shabbat significa cessação e repouso – estão inscritas a finalidade e a esperança da criação, entendida como unidade de natureza e história. Não é exagero afirmar que, se existe, a metafísica do judaísmo está totalmente nos valores e nas práticas que constituem o Shabbat.
Não por acaso, os rabinos sempre ensinaram: “Não é Israel que guarda o Sábado, mas o Sábado que guarda e preserva e faz Israel sobreviver”, nem é coincidência que, nas línguas derivadas do latim, esse dia semanal manteve até hoje o seu nome hebraico.
O filósofo franco-israelense Benjamin Gross, recentemente falecido, é o último dos grandes mestres judeus contemporâneos, no rastro de Franz Rosenzweig, Joseph Soloveitchik e Abraham Joshua Heschel, a escrever sobre o valor cósmico e religioso do Sábado na tradição judaica.
No livro Momento di eternità [Momento de eternidade] (recém-publicado pela editora EDB na série “Cristos e Judeus”), Gross defende que existe um paralelo preciso entre Israel e o Sábado: “O nascimento da sociedade judaica, na época do êxodo do Egito, representa, no plano da história, aquilo que o Shabbat representa no plano da natureza: um traço da transcendência inserido no universo para testemunhar a Origem, ou seja, o Criador. O Shabbat e Israel são consubstanciais”.
Nesse dia, faz-se memória conjunta de dois eventos distintos, mas paralelos, um natural e universal, e um histórico e particular, inseparáveis na economia do relato bíblico: a criação do mundo e a saída de Israel do Egito. Duas memórias que convergem no único dia que Deus quis “santo”, isto é, que separou dos outros elevando-o a memorial vivo.
O preceito de santificar esse dia está na lista dos deveres para com Deus, que simbolicamente se encontra na primeira das duas tábuas dos mandamentos. Mas isso não significa que ele não encerre alguns deveres para com o próximo ou não veicule uma mensagem social e política.
Ao contrário, de todos os mandamentos, é precisamente aquele que contém a revolução política mais radical que já foi anunciada: no dia de Sábado, de fato, a obrigação do repouso e da celebração investe igualmente sobre homens e mulheres, pais e filhos, patrões e servos, seres humanos e animais domésticos.
De fato, enfatiza Gross, o Shabbat promete aquilo que, na linguagem moderna, chamaríamos de “abolição da divisão de classes, a insubordinação em relação às leis da economia e a superação da alienação causada pela necessidade do trabalho cotidiano”.
Uma utopia marxiana ante litteram (não nos esqueçamos das raízes judaicas de Marx, embora ateu), mas que se compreende melhor à luz da categoria do shalom messiânico. Como o espírito do Sábado judaico poderia não incluir essa perspectiva escatológica de justiça, integridade e harmonia para todos os seres vivos, incluindo os animais?
O Shabbat, para os mestres de Israel, é um sexagésimo do mundo futuro, do paraíso, da redenção final; é uma antecipação e serve como promessa daquilo que já pode ser degustado aqui embaixo e que se torna modelo e inspiração para os resgates e as pequenas redenções de que os seis dias de trabalho cotidiano precisam, que recebem luz e orientação do Shabbat.
Para explicitar esse sentido ético universal, contido na prática sabática, o teólogo hassídico Heschel havia escrito o seu livro mais famoso, “O sábado e o seu significado para o homem moderno”, um clássico da espiritualidade ocidental. O judaísmo privilegia a santificação do tempo à monumentalização do espaço: ele não deixou pirâmides ou catedrais, mas entregou à humanidade uma arquitetura temporal, ou seja, o seu calendário litúrgico e a sacralidade do repouso semanal e da esperança messiânica.
Ao homem contemporâneo, estressado pela conquista do espaço e da visibilidade, Heschel contrapõe a conquista do tempo, que é interioridade e até escondimento, porque os valores e os significados profundos da existência não são mercadorias de negociação mercantil. Eles não podem ser comprados nem vendidos, só podem ser cultivados, cuidados e compartilhados.
O Shabbat, na ideia de se abster do trabalho e em estabelecer um limite, adverte o homo faber a se cultivar, também e sobretudo como criatura, em uma passividade que preserva e dá sentido à própria atividade laboral. Emmanuel Lévinas fez dessa passividade, sinal positivo do repouso sabático, uma palavra-chave da sua reflexão ética, herança dos profetas que os rabinos desenvolveram em detalhe no estudo do Talmude.
Somente uma abordagem superficial pode liquidar esses detalhes como formalismo ou mera exterioridade; ao contrário, cada norma individual para a santificação do Sábado é sinal e revelação de uma dedicação plena para cumprir o projeto divino sobre o mundo.
E, na visão profético-rabínica, o valor e a prática do Shabbat são uma mensagem para todos, não só para os judeus. Isaías, no capítulo 56, lembra que eunucos e estrangeiros, na medida em que “se guardarem de profanar o sábado”, serão conduzidos ao santo monte de Sião, casa da oração e lugar onde eles também oferecerão sacrifícios.
Em Jeremias, a observância absoluta da abstenção do trabalho no dia sagrado não é menos forte e antecipa as prescrições do tratado talmúdico que leva o nome, justamente, de Shabbat.
Um preceito universal, portanto, que sintetiza aquela inimitatio Dei em que consiste a religiosidade judaica. “O Shabbat foi observado por Deus antes do homem”, escrevia o rabino Elia Benamozegh, da Livorno do século XIX, “e é precisamente porque Deus o observou que foi mandado ao homem que o observasse por sua vez.”
É útil, então, saber que o ensinamento de Jesus sobre o “sábado que foi feito para o homem e não o homem para o sábado” era uma ideia difundida por todo o judaísmo farisaico dos primeiros séculos. Ele se encontra, com explicação anexa, no Talmude, tratado Yomà, que é dedicado ao “sábado dos sábados”, ou seja, ao dia de Kipur: “A vós, homens, foi dado o Shabbat: isso significa que há situações em que se deve observar o Shabbat e situações em que se pode profaná-lo, ao não observá-lo, se isso for exigido pela salvaguarda da vida”.
Quantos equívocos e quanto preconceito antijudaico foram construídos sobre essa afirmação evangélica, que, comparando as fontes, ao contrário, encontra Jesus e os fariseus em plena sintonia de pontos de vista.
A figura do Sábado judaico é o duplo. Os mestres de Israel chegam a considerar que, “na entrada do sábado, cada homem recebe uma alma suplementar”. Mas o que é essa duplicação da alma humana, senão o dom de uma inteligência nova, quase um excesso de consciência e conscientização sobre aquilo que realmente somos e, sobretudo, por que estamos no mundo?
Um duplo que é ritualmente recordado no acendimento de duas luzes, na bênção de dois pães (cada um duplamente entrelaçado) e nos dois verbos, zakor e shamor, recorda e observa, que comandam a sua santificação.
A espera messiânica, no judaísmo, é fruto da fé de que “aquele dia”, o dia histórico da redenção final, será “todo Shabbat”, porque será o dia em que todos os povos subirão com Israel a Sião.
E, assim como a Torá foi dada no Monte Sinai no dia de Shabbat, lembra Benjamin Gross, assim também será em um Shabbat sem fim que a humanidade inteira abraçará “o jugo do reino dos céus”. Se isso não é metafísica...
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Sábado judaico, festa do mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU