30 Julho 2017
"Não somos seres genericamente históricos e eternos, mas com nomes próprios e destinos particulares que somente Deus conhece; por isso, é uma forma aproximada bastante grosseira dizer que vivemos "o espírito do tempo", se queremos dizer que somos sujeitos inseridos em um tempo sem ritmo e prazos, ou que esperamos uma "vida eterna" apenas interminável, sem nenhuma verdadeira novidade e sem nenhuma experiência da surpreendente qualidade da existência do Deus trino".
O artigo é de Michele Giulio Masciarelli, publicado por Settimana News, 21-07-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
O repouso dos "três sábados"
O fim último do repouso está ligado com a centralidade do amor caridoso. A declinação do repouso em termos de caridade é sugerida, com originalidade, pelo abade anglo-saxão Elredo di Rievaulx (1110-1167), segundo o qual Deus é essencialmente repouso porque é Uno e, por conseguinte, nele não há espaço para partes que poderiam entrar em conflito; [1] além disso, porque o Deus trino é uma harmonia ou um "repouso de relacionamentos". [2]
Assim, a infinitude do repouso de Deus redunda sobre a criação e a imbui de si; para que ela e o coração do homem manifestem a vocação para o repouso[3] e – como entre protologia e a escatologia não podem haver contradições – com coerência Elredo pensa o Céu como uma comunidade ordenada de sujeitos (anjos e beatos)[4] dispostos em formas compostas e extremamente hierárquicas.
Além disso, Elredo, para mostrar a profunda ligação entre o êxito repousante da vida celeste e a vida terrestre desenvolve uma interessante reflexão místico-teológica sobre o sabbatum, que ele divide em três sábados, entendidos como limiares de um crescente dinamismo de calma-repouso: o primeiro limiar é realizado dentro da consciência individual; o segundo ocorre na rede de relações interpessoais; o terceiro encontra sua realização no encontro definitivo com Cristo.
Portanto, depois de ter-se purificado da redução egoísta do amor por si mesma (o "quarto") e do amor para os outros (a "pousada"), a alma está pronta para encontrar-se com Cristo no "santuário” onde ele habita: "Silenciando então sobre todas as coisas do corpo, todas as coisas dos sentidos, todas as coisas que mudam, a alma fixa seu olhar perspicaz naquele que unicamente é, e sempre assim é, e sempre si mesmo é e, agora livre, vê que o Senhor é Deus, e no suave enlace de sua caridade, celebra livre de qualquer dúvida, o sábado dos sábados".[5]
A grande novidade desse discurso reside na descoberta de que a calma-repouso é dinâmica como a caridade, com que surpreendentemente Elredo quis estabelecer um contato na qualidade de realidade fermento de vida.[6]
Rezemos, judeus e cristãos, unindo no louvor tempo e eternidade: "Bendito seja o nome do Senhor, agora e para sempre" (Sl 113,2). Assim é reconhecida a dignidade tanto do tempo (uma graça ao alcance do homem, já um começo de eternidade para ele), como da eternidade (a perene condição de Deus e futura glória do homem).
Dedicando-se de forma responsável e religiosamente para a contagem dos dias da Páscoa até Pentecostes, o devoto judeu observante age sobre a onda espiritual da oração do salmo: "Ensina-nos a contar os nossos dias para que alcancemos corações sábios" (Sl 90,12).
Aquela lentidão na contagem de dias é uma expressão do repouso: o tempo não deve ser tomado com a forma bruta de quem lida com coisas, pessoas, eventos, acontecimentos de vida e morte, por atacado, de maneira indefinida e sumária, impessoal e não humana.
Aquela lentidão calma e repousante é uma expressão do verdadeiro descanso espiritual. A atenção ao "particular", à singularidade, significa respeito, atenção, valorização de tudo e de todos, de cada coisa e de cada pessoa.
Para o cristão, essas preciosidades espirituais não são apenas qualidade do tempo, mas maximamente da eternidade. Nós somos seres com características únicas que vivem os dias não de forma vaga e indeterminada, nem esperamos uma eternidade indistinta e fusional, monótona e oprimente com uma extensão e uma transcendência incomensuráveis.
Não somos seres genericamente históricos e eternos, mas com nomes próprios e destinos particulares que somente Deus conhece; por isso, é uma forma aproximada bastante grosseira dizer que vivemos "o espírito do tempo", se queremos dizer que somos sujeitos inseridos em um tempo sem ritmo e prazos, ou que esperamos uma "vida eterna" apenas interminável, sem nenhuma verdadeira novidade e sem nenhuma experiência da surpreendente qualidade da existência do Deus trino.
As formas de existência agora suspeitas (e temidas) seriam realmente desprovidas de requies. E as considerações agora feitas levam-nos, inevitavelmente, a olhar para a nossa existência temporal em plena coerência com ela: "O ser, do qual tenho a certeza interior de que é o meu ser, é um ser temporal. Como ser ‘atual’ – ou seja, presente e real - existe de momento a momento [punktuell]: é um ‘agora’[ietzt]entre um ‘já’[nicht mehr]e um ‘ainda não’[noch nicht]... Eu sou agora. [...] No meu ser desprovido de sustentação e de fundamento, encontro outro ser que não é o meu, mas que é a sustentação e o fundamento do meu ser". [7]
O verdadeiro descanso cristão (tanto o temporal como o eterno) é sim um "deixar-se ir", mas não na preguiça, na inércia, no tédio, mas sim no pacífico, sereno e repousante abandono nas mãos onipotentes criadoras e paternalmente provedoras de Deus que pode, sabe e quer sustentar a frágil existência do homem, com a plena confiança com que a criança - exemplifica Stein[8] – entrega-se nos braços da mãe (cf. Sl 131).
Entregar-se nas mãos repousantes de Deus não significa apoiar a vida em uma almofada macia que concilia o sono. Entregar-se a Deus equivale a oferecer-se ao seu amor, e em quem assume esse ato manifesta-se a certeza de que "ninguém sabe o que Deus faria a uma pessoa, se esta se deixasse amar por Deus" (P. De Ravignan).
Notas:
[1] O espelho de caridade (Edc), 1,4. É um texto cristão do século XII que discute, com a linguagem da mística, temáticas capitais, tais como a necessidade de amor e de alegria e analisa, em especial, as estratégias e as metodologias que ativamos na busca por esses bens em nós, nos outros e em Deus, e descreve - nesse terreno delicado e difícil como todos os temas místicos - caminhos claro, funcionais e eficazes. Este conhecido texto de Elredo está disponível na edição italiana: Lo Specchio della carità, editado por Domenico Pezzini, Paoline, Milão, 1999.
[2] Edc,1,57.
[3] Edc,1,59-60.
[4] Para Elredo essa calma é declinada como "ordem" direcionada a refletir uma harmonia que ilumina no mais alto grau a "caridade" que rege as relações e que também precisa ser "ordenada". Em contraste com essa ordem criativa escatológica desenvolveu-se a sua contra-figura, aquela de um inferno pensado como realidade de desordem e de figuras desarrumadas e que entre si relacionam-se de forma desarmônica (cf. D. Pezzini, Le immagini della vita eterna in alcuni scrittori mistici, em CredereOggi [5/2009] n. 173, 89).
[5] Edc,3,18. Sobre esse enfoque do sábado dos sábados, ou seja, sobre o repouso por excelência, cf. D. Pezzini, Il riposo come categoria della vita spirituale: i tre sabati dello ‘Specchio della carità’ di Aelredo di Rievaulx, em Vita Consagrata 36 (2000) 357-374.
[6] Há uma singular consonância mística com a intuição de Elredo por parte de Elizabete da Trindade, que concebe a experiência de repouso espiritual nessa vida, como uma implícita preparação para o repouso celestial: "A maior perfeição nesta vida [... ] consiste em permanecer tão unidos a Deus que a alma com as suas capacidades e poderes fica toda recolhida nele e todos os seus afetos, unificados na alegria do amor, não encontram repouso a não ser na posse do Criador”. (Ritiro. Come si può trovare il Cielo sulla terra, em Ead., Scritti ,tr. it. Dante Giovannini, Postulação geral dos Carmelitas Descalços, Roma 1967, p. 622).
[7] E. Stein, Essere finito ed essere eterno,tr. it. C. Pettinelli, Messaggero, Pádua 1983, pp. 111 e 113.
[8] E. Stein, Essere finito ed essere eterno,p. 113.
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A sabedoria do sábado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU