30 Outubro 2018
É necessário adotar uma abordagem focada na reconciliação, paralelamente à implementação de medidas criminais e canônicas.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em La Croix International, 29-10-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Konrad Adenauer, o devoto católico romano que foi chanceler da Alemanha de 1949 a 1963, desempenhou um papel-chave na transição do seu país do nazismo (1933-1945) para a nova, democrática e anticomunista República Federal que nasceu sob o olhar atento dos Aliados após a Segunda Guerra Mundial.
E, nessa tarefa, ele disse certa vez: “Não jogue fora a água suja se você não tiver outra que esteja limpa”.
Essa afirmação é tão apropriada para a Igreja Católica de hoje, no modo como ela navega na tempestade global da crise dos abusos sexuais, quanto foi para a Alemanha pós-nazista em 1945.
A Igreja terá que trilhar um caminho semelhante ao que foi percorrido por todas as nações que já migraram de um tipo de regime para outro. E terá que lidar com um passado problemático (para dizer o mínimo), em que a responsabilidade moral recai sobre muito mais pessoas do que as que podem ser processadas criminalmente.
A mudança, por parte da Europa pós-Segunda Guerra Mundial, de regimes autoritários e totalitários para sistemas democráticos e constitucionais é um bom exemplo, nesse sentido.
Imediatamente após sua derrota militar, a Alemanha e a Itália, por exemplo, começaram um processo de “desnazificação” e de “desfascistização”. Isso foi realizado em fases.
A primeira fase, que ocorreu ao longo de várias semanas, foi marcada por uma onda de execuções (em parte, extrajudiciais).
Então, durante alguns meses depois disso, houve uma segunda fase em que colaboradores nazistas e fascistas foram banidos ou expurgados do serviço público e da vida pública.
E, finalmente, em uma terceira fase (com um cronograma que diferia de país para país), foi elaborada uma legislação para reintegrar oficiais e funcionários de segunda linha do regime na vida pública por meio de programas de anistia oficiais e não oficiais.
A Igreja Católica não é um regime nazista ou fascista. E ninguém quer anistia para aqueles membros da Igreja que abusaram sexualmente dos jovens e vulneráveis; ou para aqueles que acobertaram os abusos.
Mas o paralelo é particularmente importante, porque ressalta um elemento-chave na maneira como os católicos estão atualmente respondendo às revelações de abuso em comparação com o modo como eles reagiram em 2002, quando a crise eclodiu.
A abordagem criminológica da crise dos abusos tende a simplificar demais uma situação muito mais complexa.
Ao se focar apenas nos abusadores e nos que possibilitaram os abusos, ela tende a exonerar todos os outros ou – muito pelo contrário – tende a identificar a própria Igreja (ou a hierarquia) como um sistema inteiramente corrupto do ponto de vista criminal.
A realidade é que, para além da lista de abusadores e de facilitadores, há também uma lista muito mais longa de católicos que ocupam uma vasta área cinzenta.
Ela inclui pessoas que não levaram as vítimas a sério ou que se recusaram a acreditar em rumores sobre supostos abusadores.
Ela também consiste naqueles que não lidaram com a hipocrisia de como a Igreja frequentemente lida com a moral sexual e naqueles que justificaram ou lucraram com o sistema clerical que está no cerne da história da crise dos abusos.
Se olharmos para os abusos na Igreja dessa maneira, fica claro que a abordagem criminológica por si só não proporcionará uma saída dessa crise. Aqui a comparação com a transição de um tipo de regime para outro na Europa pós-1945 é reveladora.
Ninguém deveria esperar ou procurar pelo “atestado de saúde” fácil e muitas vezes hipócrita e cúmplice dado às autoridades da Igreja de maneira semelhante ao chamado Persilscheine concedido pelas autoridades encarregadas pela desnazificação na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial.
Ao mesmo tempo, seria ingênuo pensar que a Igreja ou as autoridades seculares que conduzem as investigações conseguirão visar àqueles que têm responsabilidade legal e moral na crise dos abusos e declarar indiretamente a inocência de todos os outros.
Uma abordagem criminológica pura não fará isso, porque o que está acontecendo com as revelações de abuso faz parte de uma revolução cultural e social mais ampla.
A nova consciência na Igreja sobre os abusos – abuso sexual e abuso de poder de todos os tipos – não é apenas um resultado do trabalho de investigação de jornalistas e de autoridades seculares. É também uma consciência produzida por uma compreensão mais profunda do conceito de dignidade de todas as pessoas humanas e de todos os membros da Igreja – membros leigos, menores e mulheres.
Isso deveria nos levar a entender que deve haver um processo de conscientização, purificação e reconciliação na Igreja paralelo às investigações, processos e condenações de abusadores e facilitadores.
E também porque a história das mudanças de regime nos diz que o processo de depuração (expurgo de colaboradores do antigo regime) está sempre misturado com uma agenda política e nunca envolve apenas o cumprimento da lei. Isso fica bem claro na forma como alguns grupos católicos estadunidenses estão tentando usar o escândalo dos abusos como uma arma nas “guerras culturais”.
É necessário adotar uma abordagem focada na reconciliação junto com a implementação de medidas criminais e canônicas.
Isso não apenas para refletir honestamente as complexidades morais que fazem parte da crise sistêmica de abusos na Igreja. Mas também para responder à fase particular da crise que começou neste ano, com uma nova onda de investigações conduzidas por autoridades seculares, especialmente nos Estados Unidos.
Começando em junho passado com as revelações sobre o ex-cardeal Theodore McCarrick e continuando em agosto com o relatório do Grande Júri da Pensilvânia, e agora com o anúncio de muitos Estados estadunidenses que estão prestes a investigar os registros diocesanos, o foco da atenção mudou para os arquivos da Igreja – encontrados em dioceses, nunciaturas papais e no Vaticano.
Essa nova onda de investigações lançadas por autoridades seculares nos arquivos eclesiásticos significa que a Igreja terá que enfrentar um longo período de revelações sobre o lado sombrio do catolicismo organizado e institucional.
Em geral, os arquivos tendem a registrar apenas (ou principalmente) as sombras, e não o lado positivo das pessoas e das instituições. Os arquivos não guardam registros da santidade cotidiana da vasta maioria dos cristãos.
Além disso, permitir que a dimensão legal assuma completamente o modo como a Igreja lida com a crise dos abusos traria de volta a ideia de governança da Igreja exemplificada por um dos bispos italianos mais conservadores do Concílio Vaticano II, o cardeal Giuseppe Siri (1906-1989).
Ex-arcebispo de Gênova e papável, Siri costumava dizer que a Igreja Católica devia ser governada por meio do silentium et archiva (silêncio e arquivos) – isto é, protegendo os arquivos daqueles que são culpados de alguma coisa; arquivos que podem e serão usados contra eles.
Neste momento presente na crise dos abusos sexuais católicos, há uma grande tentação a buscar uma solução criminológica simples para o problema. Um sintoma revelador dessa tentação é a evidente falta – ainda hoje – de reflexões teológicas sobre a crise e o seu significado para a Igreja.
Para ser claro: a fase de investigações nos arquivos eclesiásticos por instituições seculares é necessária e há muito tempo esperada. Mas não pode haver nenhuma esperança para uma solução duradoura para essa crise, a menos que levemos em consideração o panorama muito mais complexo das responsabilidades institucionais, teológicas e morais em escalões da Igreja que são muito maiores do que a lista daqueles que serão declarados culpados.
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Os limites de uma abordagem criminológica à crise dos abusos na Igreja. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU