12 Setembro 2018
Na última semana de agosto, realizou-se o seminário de formação permanente da Província do Norte italiano dos padres dehonianos sobre o tema: A profecia de Francisco. Cinco anos de pontificado. As palestras foram confiadas a Mons. Pierangelo Sequeri, Mons. Vincenzo Zani, prof. Daniele Menozzi, Prof. Stella Morra, prof. padre Paolo Benanti, prof. Kurt Appel. No dia dedicado ao próximo Sínodo dos jovens, assistiu-se à intervenção do padre Michele Gianola, Diretor do Departamento da Conferência Episcopal Italiana para a pastoral das Vocações.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 09-09-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Da surpresa aos desafios e às provas. Os cinco anos do pontificado do Papa Francisco (desde o dia da eleição de 2013 até hoje) começaram sob a insígnia da surpresa. Todos se lembram do aparecimento do eleito na sacada da Basílica de São Pedro: o "boa noite" diário, a ausência da estola histórica, a proximidade do card. Hummes (os pobres da América Latina) e do vigário de Roma (a cidade de seu ministério), o silêncio, a bênção do povo, o seu ser bispo de Roma, acima de tudo, a oração.
Gestos, sinais e símbolos que anteciparam linhas importantes de seu magistério e seu serviço petrino. Cinco anos depois, aquela surpresa se concretizou em textos, em viagens, em escolhas e eventos permeados e acompanhados pelo apelo evangélico e por um desafio da anunciação que investiu as estruturas eclesiais (da cúria aos processos sinodais, às escolhas episcopais, aos religiosos e aos laicos), o diálogo ecumênico (da memória da Reforma à abertura para os evangélicos e ao exercício de uma 'primazia do acompanhamento’) e inter-religioso, o confronto-encontro com as grandes questões mundiais.
Desafios que às vezes tornam-se provas na reemergência da questão dos abusos do clero, nas tensões não sempre administráveis dentro da Igreja, nos confrontos com os poderes econômicos e financeiros, nas condições de martírio de muitas comunidades cristãs.
Para esse magma vital olhamos com olhos diferentes e pertencimentos diferentes. Entre as muitas abordagens e inúmeras leituras os dehonianos da província do norte da Itália organizaram uma semana de formação permanente (Albino - BG 27-31 agosto 2018) sobre o pontificado de Francisco. Cerca de cinquenta participantes, seis oradores principais e um dia dedicado ao próximo sínodo dos jovens.
“Tenho a impressão de que o meu pontificado será breve: quatro ou cinco anos. É como uma sensação um pouco vaga. Talvez não seja assim! Mas tenho a sensação de que o Senhor me colocou aqui por pouco tempo. Mas é apenas uma sensação. Então eu sempre deixo as possibilidades em aberto". Assim o Papa Francisco respondeu a uma pergunta da jornalista mexicana Valentina Alazraki em 6 de março de 2015. Cinco anos se passaram e, solicitado por uma recente entrevista (Reuters,17 de junho, 2018), mesmo confirmando a possibilidade de renúncia, o papa acrescentou que "neste momento nem sequer passa pela minha cabeça".
Nos últimos anos tivemos duas encíclicas: Lumen fidei (2013) e Laudato si’ (2015); 35 constituições apostólicas, entre as quais Veritatis gaudium que representa a plataforma das faculdades e universidades pontifícias e a Vultum Dei quaerere dedicada à vida contemplativa.
Difícil dar números sobre os discursos. Deveriam ser em torno de 1.200.
Importantes são as exortações apostólicas: Evangelii Gaudium (2013), que contém o seu programa de governo e de reforma, Amoris Laetitia (2016), a conclusão do duplo sínodo sobre a família, Gaudete et Exultate (2018), que levanta a questão da santidade do povo de Deus. As cartas são 168, aquelas apostólicas 52. As mensagens chegam a 217. Os motu proprio são 22. As homilias são 293, sem contar aquelas em Santa Marta, que são estimadas em cerca de 500. As viagens foram 47 - 22 na Itália e 25 ao redor do mundo. Mais de 50 entrevistas.
Até mesmo a lista de números dá a ideia de uma atividade extraordinária e de uma exposição quase total. A eles escapam os gestos: morar em Santa Marta, pagar as contas, frequentar lojas, não tirar férias, abraçar os doentes, hospedar sem-teto, trazer consigo refugiados do Oriente Médio, usar um carro utilitário, as visitas aos pobres, às pessoas comuns, os telefonemas e assim por diante.
Quando se entra nas interpretações e nas leituras gerais, há uma consonância compartilhada sobre um pontificado que marcou uma "mudança de ritmo". Para o teólogo Pierangelo Sequeri o papa fala em parábolas, exemplos e narrativas, utilizando o léxico do catecismo mais elementar, indo além do tradicional quadro do magistério e deixando muitos espaços livres para aqueles que o leem ou o ouvem.
"Ele é um homem que tem uma verdadeira idiossincrasia pela forma sistemática, uma hipersensibilidade para os riscos do empreendimento sistemático." Seu esforço é ir além da coerência forçada do sistema para chegar à referência, à coisa. Fala-se sobre o mundo? Então se fala de urbanização, mudança climática, globalização, descarte dos pobres, etc.
Jesus não disse nada aos apóstolos que eles não pudessem entender. A chave interpretativa de Francisco? Para Mons. Vincenzo Zani, secretário da Congregação para a Educação Católica, é um “caos calmo”, uma síntese singular de dinamismos impressionantes dentro de um quadro de profunda tranquilidade. Francisco herda uma visão dialética da realidade que encontrou em Erich Przywara, Henri de Lubac, Romano Guardini e na tradição mística da bagagem jesuíta: "Um pensamento dialógico baseado no princípio agônico-orgânico com no centro tensões bipolares, mas orientado para projetos de síntese”.
"Não é uma ontologia dialética, mas uma ontologia relacional, alias, trinitária". Para o historiador Daniele Menozzi pode-se falar de uma continuidade promissora, de um legado conciliar que relativiza a simples atualização teológica e conta com a força do Evangelho no encontro-confronto com a história de todos. O Vaticano II fechou a tradição intransigente dos dois séculos anteriores, prospectando dois desenvolvimentos possíveis dentro de uma abertura para o moderno.
O primeiro está do lado da doutrina e vê na lei natural o horizonte máximo de compartilhamento com o moderno; o segundo é inspirada nos "sinais dos tempos": a Igreja aprende da história quais são os elementos da mensagem evangélica que podem responder às necessidades das pessoas de hoje. Ao par "doutrina - lei natural" substitui-se aquele do "sinais dos tempos - história comum".
O teólogo vienense Kurt Appel falou de uma "ironização do poder". O poderoso aparato barroco do Concílio de Trento, em todo o seu poder estético, ainda está vivo no imaginário católico. É atravessado por Francisco com uma sábia ironia que mostra as suas inconsistências e herda os humores profundos. Tudo é reconduzido a Jesus Cristo, à sua morte e ressurreição. É isso que mostram as enganosas pretensões de poder da Igreja, mas também a não consistência das potências do mundo.
O destaque da novidade fecunda de Francisco não responde à pergunta da apologética e está ciente das muitas formas de resistência, crítica e discordância contra ele. Podem ser reunidas de forma grosseira em três vertentes. A acadêmica, com, por exemplo, as referências ao sociólogo M. Marzano e G. E. Rusconi (limitados à sociologia das instituições e à "pastoral do medo"). Aquela lefebvriana-populista do tipo de A. Socci e G. Gnocchi com o acompanhamento de muitos sites tradicionalistas, amarrados em acrimoniosas intransigências. Finalmente, aquela institucional da direita estadunidense, da qual é exemplo o improvável testemunho de Mons. Viganò, expressão do desmantelamento do "modelo católico" em favor das "Igrejas livres".
Registrada a consonância sobre o “passo extra” provocado por Francisco, há sugestões vindas dos autores individuais. Pierangelo Sequeri enfatiza a dupla linguagem do papa: de um lado, a linguagem popular (koinè) e a referência ao catecismo incorporado; pelo outro lado, especialmente nos textos maiores, uma forma narrativa parabólica que não nega o depósito dogmático e magisterial anterior, mas força os espaços de abertura e a liberdade do "leitor".
Uma figura central de sua mensagem é a alegria. "Ele agora esgotou todos os sinônimos". Causa desassossego, tanto para os 'apocalípticos', que ameaçam não só sair do mundo, mas também da fé, como para os 'integrados' que correm o risco do mundanismo espiritual, Francisco usa com parcimônia o tema da reforma, ciente de quanto custou aquela do século 16, e quanto ainda seja interna ao paradigma do "sistema". Seus temas estratégicos são, principalmente, a predicação, os chamados a sermos testemunhas da fé e, ao mesmo tempo, uma inteligência do Evangelho.
Depois tem a re-proposta da "cena originária" dos Evangelhos, ou seja, os três principais protagonistas da anunciação: Jesus Cristo, os discípulos, a multidão dos "qualquer um", crentes e não crentes, batizados e não. Sem a pessoa de Jesus e a sua presença, tudo implode. Os discípulos não perseguem a própria plenitude, mas se entregam à mediação do Evangelho com o povo dos "qualquer um".
Da extensa palestra de Mons. Vincenzo Zani recordamos as páginas dedicadas à reforma da Cúria, com os seus princípios orientadores, enunciados nos três discursos dedicados aos seus colaboradores no Natal. Depois devemos lembrar o estreito vínculo entre opções doutrinárias e estilo evangelizador, com ênfase na centralidade do Evangelho, na dimensão missionária e na concretude das diferentes expressões da vida cristã.
Aqui a sinodalidade que é o espírito, método e estilo específico do cristão, toma sua forma completa. De grande interesse é o nexo entre evangelização e cultura até especificar o axioma escolástico "a graça supõe a natureza e a completa” com o outro, dessa outra forma: "a graça supõe a cultura e completa". Coerente com essas referências é a ação pastoral e aquela diplomática.
Daniele Menozzi destacou o profundo vínculo de Francisco com as diretrizes do Concílio Vaticano II e sua escolha para forçar o par "sinais dos Tempos - história de todos." Relendo a Evangelii gaudium ressaltou os traços de referência tanto para o discurso de abertura do Concílio de João XXIII (Gaudet mater ecclesia) como a Ecclesiam suam de Paulo VI.
Do primeiro enfatizou o "remédio da misericórdia", mais que a condenação ou a denúncia, bem como a distinção entre a substância do depósito da fé e a maneira de apresentá-lo. Do segundo destacou o convite para a reforma contínua. Uma tarefa que é precisamente da instituição, particularmente das Conferências Episcopais, com o entendimento, expresso na Octogesima adveniens (Paulo VI), de uma Igreja que não tem a pretensão de possuir o monopólio da interpretação da realidade.
Kurt Appel enfatizou que a referência de Francisco não é tanto a secularização quanto a urbanização. As megalópoles atuais são a fonte do ethos (comum) e a redução à "marca comercial" constitui o perigo para o cristianismo. Entre os desafios mais urgentes está o diálogo inter-religioso, a resistência ao clericalismo e a saída do imaginário barroco.
É por isso que as imagens e gestos de Francisco são importantes, que das periferias transmite a realidade das fragilidades de muitos e dá início a uma nova narrativa. Em segundo lugar, a nomeação de bispos. Uma tarefa de longo prazo para obter a qualidade alcançada na época por Paulo VI. Finalmente, o interesse pelo sínodo previsto sobre a Amazônia, porque é a área não marcada pelo clericalismo e tem a capacidade de por em prática reformas ousadas.
Stella Morra e Paolo Benanti, ambos professores da Gregoriana, tinham a tarefa de apresentar Amoris laetitia e Laudato si’. Os dois fizeram mais, partindo do texto e colocando-o dentro das profundas e perturbadoras transformações da antropologia atual - especialmente na relação homem-mulher (Morra) e respeito ao paradigma tecnocrático com sua carga de desestruturação da racionalidade instrumental e as perguntas ainda implícitas sobre os propósitos das poderosas transformações tecnológicas em curso (Benanti). Francisco abre o terreno para possíveis pesquisas.
Difícil explicar a profunda mudança na interpretação do ser humano da antropologia cultural e etnológica. Passa-se de uma abordagem fixista relativa à essência (o que define o homem) para o pertencimento a um campo magnético e de batalha que desmascara toda pretensão de "estar fora dele" (o que é o homem).
"Aquele que procura por seres humanos vai encontrar acrobatas." A contingência absoluta a que estamos entregues abre à teologia a oportunidade para detectar a primazia promissora de Deus (o único fora do campo magnético), o reconhecimento e a bênção sobre o ser humano que isso permite, uma articulação do subjetivo e do objetivo na perspectiva escatológica e o reconhecimento positivo de subjetividades historicamente compreendidas.
A redefinição drástica da relação homem-mulher proposta pelos estudos de gênero é emblemática do desafio que está diante de nós: construir um lugar apropriado para uma subjetividade plural e comum. Disso a Igreja pode ser, ao mesmo tempo, experiência e sacramento.
Depois de uma sugestiva panorâmica sobre o nexo entre o homo sapiens e artefato tecnológico, o padre Benanti avaliou a crise da racionalidade científica. Em 1900 a grande euforia positivista desabou gradualmente sob os golpes das geometrias não-euclidianas, dos teoremas de Gödel, das teorias da relatividade (Einstein) e da mecânica quântica (Bohr e Planck).
Progressivamente foi perdida a "certeza" no conhecimento e controle de uma realidade cada vez mais "complexa e caótica". Na compreensão da matéria o determinismo é substituído por um conhecimento probabilístico. O binômio matéria-energia é acrescido com o vetor da informação. Na base da realidade e do DNA, parece haver um processo informativo. As grandes coleções de dados agora disponíveis sobre a totalidade do real (big data) são o novo petróleo.
A correlação substitui a causalidade. A máquina informática tem a memória e o poder de cálculo necessários para ir além da ciência. As tecnologias podem avançar sem depender da construção de modelos teóricos coerentes (algoritmos poderosos são suficientes). O paradigma tecnocrático, portanto, candidata-se para resolver os problemas humanos.
Francisco pergunta: podemos desistir dos questionamentos sobre os propósitos? A possibilidade de fazer mais do que a nossa capacidade de conhecimento impõe com força a questão humana dentro do paradigma soberano.
"Portanto, o desafio para o futuro da humanidade - escreveu Zani - é elaborar a consciência de uma comunidade de destino de todos os povos da terra, bem como de toda a humanidade com a própria terra. Neste horizonte, precisamos projetar um novo humanismo planetário que só poderá nascer do encontro entre as diferentes culturas do planeta, da capacidade de pensar juntas unidade e multiplicidade”.
O reposicionamento da Igreja em relação à sua fonte (Jesus) e à história é o que Francisco persegue nesta inédita situação.
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Francisco: da surpresa e das provas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU