14 Março 2018
"E a verdade passada, com tudo o que nela esteve implicado de soberba, complexo de superioridade, autoritarismo, ódio, intolerância, preconceito, tortura, violação de direitos humanos, retornou com força e está inspirando candidatas/os e eleitoras/es a se armarem, não de razões, nem de argumentos, muito menos de propostas concretas para a solução dos nossos problemas, mas sim de armas mesmo, como as que puxaram o gatilho para assassinar Dom Oscar Romero", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
A pauta de trabalhos dos parlamentos brasileiros perde muito tempo com a votação de homenagens requeridas por vereadoras/es, deputadas/os, senadoras/es, visando chamar a atenção da sociedade para pessoas ou eventos considerados dignos de figurar nos anais das Casas Legislativas “para lembrança futura da história...”.
Uma exceção ao elogio fácil e muitas vezes interesseiro, motivo de grande parte desses requerimentos, foi aberta pela lei 13.605 de janeiro deste 2018. Ela propõe seja o dia 24 de março uma data oportuna para a nação pensar o seu passado, em tudo quanto houve infringência de direitos, assim procurando se precaver contra a repetição das injustiças que nos envergonham:
Artigo 1º – Fica incluído no calendário nacional de datas comemorativas o Dia Internacional do Direito à Verdade, sobre graves violações aos direitos humanos e da dignidade das vítimas, a ser celebrado, anualmente, em todo o País, em 24 de março.
Artigo 2º – O dia 24 de março é dedicado à reflexão coletiva a respeito da importância do conhecimento circunstanciado das situações em que tiverem ocorrido graves violações aos direitos humanos, seja para a reafirmação da dignidade humana das vítimas, seja para a superação dos estigmas sociais criados por tais violações.
O que teria motivado esta lei? – Em 24 de março de 1980 foi assassinado, quando celebrava missa, Dom Oscar Romero, uma heroica referência latino-americana de defesa dos direitos humanos contra toda a injustiça social e toda a ditadura. À época, ele se opunha às politicas públicas do governo tirano de El Salvador, denunciando com muita coragem as costumeiras violações de direitos humanos que eram praticadas naquele país pelo (des)governo de então, apontando como alvos preferenciais defensoras/es desses direitos junto ao povo pobre e miserável de lá.
A violenta reação “oficial” contra o arcebispo Dom Oscar optou por eliminar a sua voz insurgente e rebelde como sempre foi a de todo o profeta. Aí deve ter pesado a razão de a ONU ter oferecido ao mundo a chance de – em reverenciando uma vida de dedicação ao povo como a deste religioso – seu exemplo servir para o engajamento das ações concretas de proteção e defesa de famílias pobres do mundo inteiro, vítimas da infringência de seus direitos humanos civis e sociais. Por isso instituiu, em 17 de junho de 2010, a data em que ele foi morto, 24 de março, como o “Dia internacional do Direito à Verdade sobre as Violações dos Direitos humanos e da Dignidade das Vítimas”.
A lei brasileira 13.605, portanto, adere à iniciativa da ONU. O Papa Francisco, igualmente, já anunciou a canonização de Dom Oscar a ser celebrada com a do Papa Paulo VI, havendo expectativa de que isso aconteça no próximo Encontro Mundial da Juventude. (Nota de IHU On-Line: Conforme as informações mais atualizadas publicadas aqui nesta página, a canonização não será realizada no Encontro Mundial da Juventude, no Panamá, em 2019. O local da canonização ainda não foi definido).
O gabinete da deputada Luiza Erundina está divulgando pela internet um convite para a data ser celebrada em São Paulo às 13,30 hs. do dia 24, no prédio novo da PUC, sala 239, como “expressão do compromisso do povo brasileiro com o resgate da verdade histórica sobre os crimes e violações dos direitos humanos cometidos pela ditadura civil-militar, e com a luta por justiça para que tais crimes não fiquem impunes”.
Em tempos como os de hoje aqui no Brasil, quando o país já vive a expectativa de novas eleições, sob um clima de aceso debate em torno da legitimidade das instituições, de um descrédito praticamente generalizado da política, a data certamente abre a possibilidade para os movimentos populares, os partidos políticos, as pastorais, os sindicatos, os grupos de pessoas enfim que defendem os direitos humanos dedicarem-se à revelação da verdade e denunciarem as razões pelas quais ela é vítima de tanta mentira.
E a verdade passada, com tudo o que nela esteve implicado de soberba, complexo de superioridade, autoritarismo, ódio, intolerância, preconceito, tortura, violação de direitos humanos, retornou com força e está inspirando candidatas/os e eleitoras/es a se armarem, não de razões, nem de argumentos, muito menos de propostas concretas para a solução dos nossos problemas, mas sim de armas mesmo, como as que puxaram o gatilho para assassinar Dom Oscar Romero.
Dia 24 de março, então, povo vítima, Estado democrático de direito, terra, Poder Público, partidos, democracia, lei, direito, ética pública e privada, insegurança, incerteza, injustiça, podem ser objeto de discussões por todo o povo, a data abrindo oportunidade para recordar-se como as razões ideológicas, presentes neste debate, podem estar escondendo as mesmas motivações daquela despropositada agressão.
Se o conhecimento da verdade fosse considerado conveniente e acessível para todas/os, as consequências da sua revelação não estariam sendo cuidadosamente disfarçadas por quem todo o poder e interesse de que ela permaneça ignorada. Não há desculpa, pois, para quantas/os são cúmplices dessa hipocrisia.
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24 de março: lembrança de Oscar Romero e da Verdade sobre Direitos Humanos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU