11 Março 2018
“A ação pastoral de Romero partia de um discernimento evangélico da realidade. É um método que se sintoniza com o modelo de Igreja que o Papa Francisco quer promover: que seja reconhecido pelo seguimento da práxis de Jesus, que se inspire nos valores evangélicos, se doe em serviço fraterno aos mais pobres e que demonstre, com o exemplo, que se deseja chegar a ser uma Igreja pobre”, escreve Rafael Luciani, membro da Equipe Teológica Pastoral do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) e professor da Escola de Teologia e Ministério do Boston College, em artigo publicado por Reflexión y Liberación, 09-03-2018. A tradução é do Cepat.
Dom Romero tomou posse do Arcebispado de San Salvador, no dia 22 de fevereiro de 1977, até que foi assassinado no dia 24 de março de 1980, durante a celebração da eucaristia na capela do Hospitalito da Divina Providência, em San Salvador. Naqueles três anos, sua honradez humana se viu tragada em um processo de conversão, ao entrar em contato com a realidade em que viviam os mais pobres de seu povo. Esta experiência, fruto de um seguimento a Jesus crucificado, o levou a assumir a causa dos pobres através da promoção da justiça e a construção da paz. E agiu assim em meio a condições violentas, provocadas pelo totalitarismo reinante, tanto no político-militar como no econômico.
A ação pastoral de Romero partia de um discernimento evangélico da realidade. É um método que se sintoniza com o modelo de Igreja que o Papa Francisco quer promover: que seja reconhecido pelo seguimento da práxis de Jesus, que se inspire nos valores evangélicos, se doe em serviço fraterno aos mais pobres e que demonstre, com o exemplo, que se deseja chegar a ser uma Igreja pobre.
Para conhecer sua vida e seu processo de conversão como crente, não existe outro caminho melhor que o da leitura de suas homilias semanais, que compartilhava todos os domingos pela manhã na Catedral. Elas eram excepcionais e podiam ser ouvidas pelo rádio. Geralmente, tinham uma primeira parte onde explicava os textos das Escrituras, sempre com um espírito catequético conectado com a realidade que se vivia em El Salvador e com a finalidade de fortalecer a fé e a esperança em meio a tanta violência e opressão reinante. As homilias ofereciam, em uma segunda parte, o discernimento que Romero fazia da Palavra de Deus e como a aplicava às circunstâncias concretas do país. Repassava os eventos mais importantes da semana e emitia um exame profético sobre eles, denunciando os vitimários e os urgindo a mudar, e também acompanhando as vítimas e as fortalecendo com sua mensagem.
Ao ler os textos completos das homilias de Romero, podemos descobrir o crente que parte dos Evangelhos e, a partir daí, faz uma análise de sua realidade, perguntando-se o que Jesus faria, como reagiria diante dos problemas que vivemos e como podemos ser fiéis a seu seguimento hoje. É um método que o afasta das tentativas de ideologizar a fé e o apresenta como um homem simples que levou a sério a opção pelos pobres de sua terra, a partir de uma resposta fiel e honrada a seu seguimento de Jesus.
Estes escritos representam um desafio para a Igreja no mundo atual. Pode ajudá-la a superar os espaços de conforto em que se acostumou e voltar a sua dimensão profética para ser voz dos dramas que as grandes maiorias vivem atualmente. O modo como Romero lê, discerne e explica as Escrituras demonstra a importância de desmoralizar o ambiente do discurso homilético, para centrá-lo novamente na práxis de Jesus e o transmitir em um tom evangélico, na linha das bem-aventuranças e em defesa das vítimas. É um estilo evangélico que compreende o social como dimensão fundamental da comunicação cristã.
Com sua beatificação, o Papa Francisco quis dar sinais de como observa a identidade e a missão da Igreja diante das novas condições globais. É um acontecimento que se eleva como sinal de um cristianismo que precisa recuperar a promoção ativa da justiça e a luta pela igualdade, assim como a teologia da libertação fez em sua época. Embora a figura de Romero não tenha deixado de ser controversa para grupos conservadores dentro da Igreja, ela simboliza a colocação em prática do Concílio Vaticano II e a fidelidade aos documentos de Medellín e Puebla, ao fazer um chamado a todos os crentes a optar pela causa dos pobres e assumi-los como sacramentos de Cristo crucificado.
Fiel ao magistério universal, compreendeu que a salvação passava pelo reconhecimento da dignidade humana, o desenvolvimento socioeconômico de cada sujeito e o respeito pela liberdade. Foi o que havia sido proclamado pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) na Constituição Gaudium et Spes 1: “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de nosso tempo, sobretudo dos pobres e de quantos sofrem, são por sua vez alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos discípulos de Cristo”. Romero fez sua esta opção pastoral, expressa pela primeira vez no magistério latino-americano como uma opção teológica, quando os bispos reunidos em Medellín (1968) apostaram na “opção de Deus pelos pobres”, ratificada, depois, na reunião de Puebla (n. 733; 1134; 1153) como “opção seguida por Jesus” (n. 1141-1142).
São muitos os rostos de Romero como pastor possíveis de se descrever. Gostaria de destacar três de grande atualidade que inspiraram o ministério do Papa Francisco. Romero foi um pastor que optou pelos pobres; antepôs a verdade e a profecia ao politicamente correto (o politically correct, do mundo saxão); e superou a tentação clerical de viver o poder como privilégio, antes que como serviço e entrega fraterna.
Vivendo assim, encontrou Jesus entre os pobres e desesperançados de seu tempo, e os carregou como os novos crucificados, em suas palavras e ações. A partir dessa entrega fraterna ao pobre, pediu a construção de uma civilização de amor, sem ódio e sem violência, onde todos possamos conviver, superando as ideologias e as crenças que nos dividem. Foi assim que se tornou a voz daqueles que não tinham voz.
Por isso, o caminho de Romero ao martírio é exemplo para muitos pastores hoje em dia, em tantas Igrejas locais, que preferem virar as costas, como se diz coloquialmente, a dizer a verdade acerca da violação dos direitos humanos e denunciar as novas formas de totalitarismos e a exclusão social que impera em tantas culturas atualmente. O fato de ter se colocado ao lado das vítimas lhe custou a vida. Hoje, permanece a mensagem de aprender a ser fiéis a Jesus e sair em defesa das novas vítimas socioeconômicas, políticas e religiosas de nosso tempo.
Vejamos alguns traços, deixando com que Romero fale por meio de algumas de suas homilias:
Primeiro, Romero foi filho e propulsor do Concílio Vaticano II e dos documentos da Igreja na América Latina, como foram Medellín e Puebla. Assim o reconheceu: “não tenhamos a impressão de ser duas Igrejas, ao contrário, somos uma só Igreja na linha proclamada pelo magistério dessa Igreja, sobretudo para os tempos novos no Concílio Vaticano II e nos documentos de Medellín” (Homilia 02-10-1977). Por isso, exortou a fazer “um esforço para que tudo o que o Concílio Vaticano II desejou nos impulsionar, a reunião de Medellín, e de Puebla, não só tenhamos nas páginas e o estudemos teoricamente, como também o vivamos e o traduzamos nesta conflitiva realidade” (23-03-1980).
Segundo, acreditou e viveu um modelo de Igreja que deve estar a serviço dos pobres e mais sofridos, e não a serviço dos poderosos. Como proclamou em outra homilia, “a Igreja não se apoia em nenhum poder, em nenhum dinheiro. Hoje, a Igreja é pobre. Hoje, a Igreja sabe que os poderosos a rejeitam, mas que é amada por aqueles que sentem em Deus sua confiança. Esta é a Igreja que eu quero. Uma Igreja que não conte com os privilégios. Uma Igreja cada vez mais desligada das coisas terrenas, humanas, para poder julgá-las com maior liberdade a partir de uma perspectiva do Evangelho, a partir de sua pobreza” (Homilia 28-08-1977).
Terceiro, compreendeu que a missão da instituição eclesiástica deveria ser a de promover o diálogo e não o conflito, a reconciliação e não a violência, o serviço e a solidariedade e não a absolutização e idolatria do dinheiro e os bens. Não se cansou de exigir o respeito pela dignidade humana, assim como a melhora das condições de vida, em um mundo onde ainda existem sujeitos que não são reconhecidos como tal e que são tratados como meros objetos. Como ele mesmo disse: “este é o pensamento fundamental de minha pregação. Nada me importa tanto como a vida humana. É algo tão sério e tão profundo, mais que a violação de qualquer outro direito, porque é a vida dos filhos de Deus e porque esse sangue não faz outra coisa a não ser negar o amor, despertar novos ódios, tornar impossível a reconciliação e a paz” (16-03-1980). Por isso, não se cansou de denunciar que “há vidas, entre nossos irmãos, verdadeiramente infra-humanas, e a Igreja prega a libertação dessa gente” (Homilia 19-06-1977).
A partir de Romero, recupera-se um sentido fundamental do martírio cristão. Já não poderá mais ser visto apenas como consequência do odium fidei, mas também do odium caritatis, o que viveu Jesus quando os poderes políticos e religiosos da época decidiram matá-lo para que sua mensagem de bem-aventurança e amor não fosse escutada.
A mensagem de Dom Romero não é reconhecida apenas pelo mundo religioso. A Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou o dia 24 de março, aniversário de seu martírio, como o “dia internacional do direito à verdade, no que diz respeito às violações graves dos Direitos Humanos e a Dignidade das vítimas”. Nele, conhecemos um testemunho de vida crente e uma pessoa que optou em viver sua humanidade como serviço e entrega até o final, inclusive até a morte.
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A Igreja que Romero viveu e a que Francisco quer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU