Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 14 Março 2018
Na terça-feira, 06-03-2018, papa Francisco assinou o decreto de canonização de Paulo VI, Giovani Baptista Montini, e de dom Oscar Arnulfo Romero, mártir salvadorenho. Para o teólogo Ivanir Antônio Rampon, professor do Itepa Faculdades “a canonização de Paulo VI e dom Oscar Romero significa que a Igreja declara oficialmente o que milhares de cristãos autênticos desejavam, embora já diziam e acreditavam: eles estão na Plenitude do Reino”. Nesta última etapa do processo foram admitidos pelo Vaticano os milagres necessários para a canonização. As atribuições desses milagres expressam antes o reconhecimento da devoção popular por seus trabalhtos pastorais. A liderança de ambos garantiu a proposta evangelizadora das Conferências de Medellín (1968) e Puebla (1979) à Igreja latino-americana.
As diretrizes da Igreja latino-americana pós-Concílio Vaticano II encaminharam uma “opção preferencial pelos pobres”. O destaque social apontado pelos padres e bispos latino-americanos fundava-se na perspectiva da Teologia da Libertação. Dom Oscar Romero junto com outros bispos, como dom Helder e dom Luciano Mendes de Almeida, foram atores essenciais na composição do movimento teológico-pastoral latino-americano. O pontificado de Paulo VI (1963-1978) e sua amizade e inspiração aos bispos do continente ajudou nos traços da ação eclesial.
Em entrevista concedida por e-mail ao IHU On-line, o professor Ivanir Antônio Rampon, observa sobre a importância da canonização, a relação dos futuros santos com a Igreja latino-americana e o pontificado de Francisco: “creio que se dom Oscar Romero, Paulo VI, dom Helder Camara estivessem entre nós, certamente, cheios de ardor, nos convocariam para ajudar o Papa Francisco”.
Padre Ivanir Antonio Rampon é doutor em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana, Roma, com tese sobre O Caminho Espiritual de Dom Helder Camara, publicada em 2013, e autor do livro Paulo VI e Dom Helder Camara - Exemplo de uma amizade espiritual, 2014, ambos pela editora Paulinas (São Paulo).
Rampon é conferencista do XVIII Simpósio Internacional IHU – A virada profética de Francisco: possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo, que ocorrerá dos dias 21 a 24 de maio de 2018, no Teatro Unisinos – Campus Porto Alegre. O professor comporá a mesa-redonda Dom Helder Camara, Dom Luciano Mendes de Almeida e Papa Francisco, com Prof. Dr. Fernando Altemeyer Junior, na quarta-feira, 23 de maio, às 16 horas.
IHU On-line — Como o senhor avalia a importância da atuação pastoral de Paulo VI e Oscar Romero para a Igreja, e sobretudo a Igreja latino-americana? A canonização destes significa uma legitimação das suas atuações?
Ivanir Rampon — O padre João Batista Montini tinha uma particular sensibilidade com a América Latina, em especial, com a Igreja e com os pobres da América Latina. Podemos dizer que vários fatores o levaram a esta particular sensibilidade. Um primeiro fator vinha da personalidade de Montini: ele era um homem de grande sensibilidade humana perante a dor, a doença, o sofrimento e a pobreza e tudo isto não eram encontrados em casos isolados neste continente, mas eram gerados por estruturas injustas e opressoras que atingiam dois terços da população.
Outro fator vinha de berço: o pai de Montini era um advogado que ingressou na militância social em prol dos pobres e este exemplo paterno nunca lhe passou despercebido. Durante os tempos de estudos e nos primeiros anos de ministério presbiteral sintonizou com as teorias do humanismo integral e do desenvolvimento integral que lhe permitiram uma visão mais aberta e avançada em relação a questão social e política. Durante a segunda guerra mundial Montini fez um amplo trabalho de assistência e cuidado aos refugiados políticos, momento em que cresceu enormemente o seu espírito pacifista. Sua atuação na Ação Católica Italiana contribui com sua densa visão de mundo e de Igreja.
Há outros motivos além destes, mas na minha compreensão o motivo principal foi a sua amizade espiritual com brasileiro padre Helder Pessoa Camara. Esta amizade iniciou em 1950 e nunca mais teve fim. Helder Camara percebia “recados de Deus” no agir e falar de Montini e vice-versa. Esta amizade espiritual foi de suma importância para Montini conhecer a América Latina, para a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB e do Conselho Episcopal Latino-Americano — CELAM, para a organização do XXXV Congresso Eucarístico Internacional que aconteceu no Rio de Janeiro, para garantir em momentos chaves o “espírito do Vaticano II” durante e após o Concílio, para a elaboração e difusão da Populorum Progressio, para garantir a missão helderiana de peregrino da Paz pelo mundo afora.
O apoio de Paulo VI a dom Helder quando este estava sendo perseguido, caluniado, difamado e depois silenciado pela ditadura militar, foi a prova sincera da amizade consolidada no decorrer de anos em prol do compromisso de ajudar a Igreja a viver mais o Evangelho e de buscar um mundo mais fraterno. Convém recordar que Paulo VI apoiava dom Helder e a linha helderiana em prol da justiça, da vida, da liberdade, da democracia. Mas o regime militar também buscava apoios do Papa, tentando criar uma mentalidade de que dom Helder era contra Paulo VI e a Cúria Romana. Mas o intento do regime, felizmente, faliu desde o início. A amizade espiritual transcendeu as fofocas, as mentiras, as intrigas.
Portanto, a amizade espiritual entre Paulo VI e dom Helder Camara foi muito importante para o olhar pastoral montiniano em relação à América Latina. Dom Oscar Romero é sem dúvida um forte ícone de pastor-mártir não só para a América Latina, mas para o mundo. Ele lutou contra a injustiça, a opressão, a violência das armas, a ditadura e em favor da justiça, da libertação, da democracia, da paz, enfim, do Reino de Deus. O sangue de Rutílio Grande fez com que exigisse de si profunda conversão. Foi um profeta e seu profetismo nos contagia. Foi testemunha fiel da Testemunha Maior, Jesus. Homem de sólida espiritualidade do seguimento a Jesus Cristo, santidade libertadora, mística apostólica e pastoral encarnada no chão dos pobres. Ele serviu a Deus e não ao ídolo “dinheiro” do capitalismo. A coleção de suas homilias nos revela a profundidade de um autêntico pregador que ouvia a Palavra de Deus presente no livro sagrado e no sagrado Povo de Deus. Ele não foi um grande bispo isolado, mas fez parte de uma constelação de “Santos Pais” da Igreja na América Latina. A canonização de Paulo VI e dom Oscar Romero significa que a Igreja declara oficialmente o que milhares de cristãos autênticos desejavam, embora já diziam e acreditavam: eles estão na Plenitude do Reino. Eles receberam a vida eterna. Eles são nossos intercessores, protetores e inspiradores para além da vida terrena que tiveram.
Mas creio que a maior canonização que podemos fazer é seguir seus exemplos e a grande causa da vida deles que é a causa de Jesus. Por ela vale a pena dar a nossa vida (João 12,25). Um sincero agradecimento ao papa Francisco por canonizar o Papa humaníssimo da Populorum Progressio e o bispo-mártir “que soube como guiar, defender e proteger o seu rebanho. [...] Damos graças a Deus porque concedeu ao bispo mártir a capacidade de ver e ouvir o sofrimento de seu povo. (...) Quando se entende bem e se assume até as últimas consequências, a fé em Jesus Cristo cria comunidades artífices de paz e solidariedade" (Francisco).
IHU On-line — Paulo VI foi um pontífice sensível ao continente latino-americano. Durante seu pontificado houve o despontar da Teologia da Libertação e a organização das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Entre estas lideranças, destacaram-se Dom Helder e Dom Oscar Romero, o senhor vê semelhanças na caminhada eclesial destes? E na caminhada popular (política e social)?
Ivanir Rampon — Uma resposta teologicamente exaustiva a estas questões demandaria mais tempo. Mas procurarei sintetizar em poucas palavras. Dom Helder Camara, dom Oscar Romero, dom Luciano Mendes de Almeida e toda uma geração de Bispos Profetas Latino Americanos são chamados por alguns estudiosos de “Santos Pais” da Igreja na América Latina: assim como depois de ± 300-400 anos de cristianismo na Europa, surgiu uma geração de bispos chamados Santos Padres da Igreja (“Europeia”), da mesma forma depois de ± 300-400 anos de cristianismo surgiu na América Latina os Santos Pais da Igreja Latino-Americana porque foram eles que fixaram os caminhos da Igreja no Continente.
Todos eles eram homens profundamente espirituais, com uma mística apostólica e pastoral encarnada, fundamentada opção pelos pobres, visão da missão eclesial renovada e libertadora, cultivadores do sonho e do compromisso com a busca de uma sociedade fraterna e justa. São bispos do Vaticano II-Medellín. Já em 1968, ao apresentar o livro de Dom Helder intitulado Terzo mondo defraudato, publicado na Itália, o cardeal Michele Pellegrino, Arcebispo de Turim, afirmou que o ensinamento de Dom Helder estava à altura de Basílio, Ambrósio e Crisóstomo. Dom Oscar fez parte deste grupo e, como alguns Santos Padres do passado (séc IV-V) foi um Santo Pai Mártir. Porém, convém dizer que num primeiro momento dom Oscar não fazia parte do grupo. Foi depois do martírio do padre Rutílio Grande (1977) que se colocou corajosamente junto dos oprimidos, denunciando a repressão, a violência do Estado, a exploração e a opressão das elites econômicas, políticas e militares apoiadas pelo imperialismo capitalista dos Estados Unidos.
Sua posição pacífica provocou a fúria dos grupos acima citados. Em Puebla, Oscar Romero trabalhou junto com o já conhecido internacionalmente dom Helder Camara (durante o encontro, dom Helder foi muito homenageado pela sua trajetória, mas também porque completava 70 anos). Os dois fizeram parte da comissão que estudava a relação entre evangelização, libertação e promoção humana. Dedicaram-se muito para apresentar a proposta da nova evangelização na América Latina que deveria dar-se a partir da Palavra de Deus, do Magistério da Igreja e das urgências dos pobres. Buscaram “aprofundar Medellín em Puebla” pois forças nefastas queriam desfazer Medellín. Portanto, em Puebla, a presença e o testemunho de dom Helder e de dom Oscar Romero foram sumamente importantes para garantir a continuidade da autêntica tradição espiritual da Igreja na América Latina.
IHU On-line - Por fim, percebendo a atuação de Francisco, e sua eclesiologia aberta, em saída, missionária, acidentada nas ruas, voltada aos pobres, conforme a exortação Evangelii Gaudium, pode provocar uma nova virada e mobilização do catolicismo nas medidas que o Concílio Vaticano II e a Teologia da Libertação provocaram na Igreja e no mundo?
Ivanir Rampon — Em cinco anos de pontificado Francisco fez muito e, certamente, passará para a história como um dos mais importantes “modelos espirituais” da história. No entanto, ele tem muito ainda por fazer. Mas para o “Projeto Francisco” continuar penso que é preciso no mínimo o seguinte:
1) conseguir o apoio das bases da Igreja, das comunidades e das lideranças. Neste sentido, o “Projeto Francisco” precisa de lideranças leigas com coragem e competência no dar testemunho do projeto de Jesus na Igreja e no mundo, de bispos ousados na missão episcopal, de padres com cheiro de ovelhas, da vida religiosa revigorada nos carismas e na missão. De fato, a história mostra que as verdadeiras mudanças precisam do apoio da base, onde ordinariamente age o Espírito Santo. Sem a cooperação do Povo de Deus, a Igreja não vai mudar em profundidade. Francisco nos inspira, nos dá alegria e espera a nossa colaboração na renovação eclesial e no anúncio do Evangelho no mundo atual.
2) Francisco também precisaria ter um sucessor com a mesma linha pastoral. Por fim, creio que se dom Oscar Romero, Paulo VI, dom Helder Camara estivessem entre nós, certamente, cheios de ardor, nos convocariam para ajudar o papa Francisco na missão de espalhar a alegria do Evangelho, o cuidado com a casa comum, a alegria do amor, a cultura do encontro, a misericórdia, a revolução da ternura...
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Canonização de Paulo VI e Romero e a sintonia com o projeto de Francisco da Igreja pelos pobres. Entrevista com Ivanir Antonio Rampon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU