26 Julho 2017
O Cardeal George Pell, que nesta semana se tornará a autoridade católica de alto escalão a enfrentar acusações de abuso sexual diante de um tribunal, pode ser o líder religioso mais polarizador da breve história australiana.
A reportagem é de Barney Zwartz, ex-editor de religião do jornal The Age, de Melbourne, entre 2002 e 2013 e atualmente pesquisador do Centre for Public Christianity, publicada por National Catholic Reporter, 24-07-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O ex-arcebispo de Sydney irá se apresentar diante da Corte dos Magistrados de Melbourne no dia 26 de julho para responder a acusações, ainda a serem especificadas, de abuso sexual histórico envolvendo múltiplas queixas, as quais ele nega.
As queixas aparentemente precedem o seu trabalho atual realizado no Vaticano como prefeito da Secretaria para a Economia, por vezes referenciado, ainda que equivocadamente, como o número três na hierarquia vaticana, atrás somente do papa e do secretário de Estado.
Para o cardeal combativo, trata-se de um golpe enorme contra a sua reputação. Mesmo se for inocentado das acusações, os rumores em Roma indicam que o religioso, de 76 anos, não retornará para o cargo de secretário. A sua credibilidade parece destruída – em grande parte infligida por ele próprio numa série de aparições diante das autoridades que investigam a forma como a Igreja lidou em casos de abuso sexual clerical.
Aos poucos, Pell se revelou – e confessou ser – um homem que põe a Igreja institucional em primeiro, em segundo e em terceiro lugar. Ele igualmente se revelou um alguém profundamente deficiente em compaixão e empatia. Sobre isso falaremos mais a seguir.
Nenhum outro prelado australiano foi ou é tão admirado e tão criticado: por seus seguidores, Pell é adorado por causa do apoio irrestrito que dá a uma ortodoxia altamente conservadora e a um autoritarismo antiquado; por seus críticos, ele é detestado pela determinação implacável que demonstra, por vezes vista como brutal.
Os líderes religiosos australianos tendem a evitar os holofotes, geralmente exercendo toda e qualquer influência política que venham ter via bastidores. Não há equivalentes a Martin Luther King Jr. ou Billy Graham nesta terra secular em grande parte, onde o historiador Manning Clark certa vez chamou a religião de “uma esperança tímida no coração”.
O parlamento federal da Austrália tem um número considerável de cristãos ativos per capita, acima da média da população em geral, onde menos de 2 em cada 10 vão à igreja pelo menos uma vez por mês. Mas, diferentemente do que ocorre nos EUA, um discurso religioso por parte de políticos australianos implicaria em suspeitas e opróbio.
Nada disso deteve Pell. Como arcebispo de Melbourne, depois de Sydney, o religioso venceu batalhas dentro e fora da Igreja, não mostrando misericórdia a ninguém enquanto lutava em múltiplos frentes. Pell cultivou o seu perfil público com uma coluna regular em jornais locais, com sua presença em programas que tratavam de temas emblemáticos atuais e contribuindo frequentemente em debates obre problemas sociais e teológicos como o aborto, abuso sexual e educação. Provavelmente sendo o único líder religioso que os australianos identificariam pelo nome, Pell era a primeira opinião procurada pela imprensa.
Desde jovem, o talento e a força de Pell eram evidentes. Ele cresceu em um pequeno município do estado de Victoria, chamado Ballarat, a cerca de 110 quilômetros de Melbourne, para mais tarde ser identificado como o centro de um grupo destrutivo de pedófilos.
Pell era um aluno talentoso e ambicioso, cuja atitude diante da vida e da Igreja espelhava o seu comportamento nos campos de futebol, onde usava o seu tamanho e força para superar a oposição. Pell era bom o suficiente para receber a oferta de um contrato profissional, optando, em vez disso, por entrar para o seminário.
No livro de 2017 intitulado “Cardinal: The Rise and Fall of George Pell”, a jornalista Louise Milligan cita um seminarista contemporâneo de Pell, Michael Leahy: “Tão logo se colocava a lutar por uma causa – quer seja a posse da bola num campo de futebol, quer fosse vencer um debate –, ele era imparável”.
George Pell estudou em Roma, depois em Oxford, onde possivelmente foi o primeiro padre católico desde a Reforma a receber o título de doutor desta faculdade de teologia. Também foi o primeiro australiano nomeado à Congregação para a Doutrina da Fé.
Quando era um jovem padre, Pell recebeu funções importantes em Ballarat antes de se tornar bispo auxiliar em Melbourne, e depois arcebispo de Melbourne e Sydney – as dioceses mais importantes do país.
Em Melbourne, no ano de 1996, lançou o primeiro protocolo australiano para lidar com queixas de abusos sexuais, chamado “Melbourne Response”, para o desgosto dos demais bispos que estavam a poucos meses de introduzir um sistema nacional. Esse protocolo, intitulado “Towards Healing”, regia todas as dioceses, exceto a de Melbourne.
Em Sydney, Pell sobreviveria a duas graves ameaças à sua carreira: uma acusação de que, quando jovem em um acampamento quarenta anos antes (1961), teria abusado de um menino. Pell retirou-se honrosamente enquanto um juiz aposentado conduzia uma investigação independente. Embora Pell, desde então, venha afirmando que fora completamente inocentado da acusação, o juiz, na verdade, considerou tanto a queixa quanto o réu convincentes, decidindo apenas que a queixa não poderia ser estabelecida.
Em pouco tempo, Pell receberia o barrete cardinalício.
Como arcebispo em ambas as cidades, ele parecia uma força irresistível: combativo, implacável, dominador, determinado a superar a dissensão e a dúvida dentro da Igreja, especialmente entre os membros progressistas do sacerdócio. Sua personalidade poderosa, aliada a um apoio irrestrito do Vaticano – o seu conservadorismo e autoritarismo clerical era bem o espírito dos papados de João Paulo II e Bento XVI –, significava que poucos dentro da Igreja tinham a energia ou a tenacidade para resisti-lo.
O cardeal se opôs ao que considerava um relativismo moral perigoso na sociedade, sendo uma voz católica ortodoxa em temas sociais, recusando a Sagrada Comunhão aos fiéis gays e instruindo os políticos católicos apoiadores do aborto a não receberem a Comunhão. Pell foi um defensor importante da educação católica (na Austrália, as escolas católicas recebem verbas estatais). Em Melbourne, ele abafou as lideranças progressistas nos seminários e, em Sydney, apoiou a Universidade Católica Australiana, fundou um campus da Universidade de Notre Dame, fortaleceu a capelania universitária e restaurou o seminário local.
A sua energia constante e a sua disposição em envolver-se com os meios de comunicação e com políticos contrastavam com muitos de seus iguais e antecessores, pessoas que geralmente eram tidas como demasiado frias pelos católicos. A timidez nunca foi uma imperfeição em Pell.
Em 2006, um padre de Sydney o acusou publicamente de ser autocrático e incendiário. Pell, no entanto, não se deixou impressionar com as queixas apresentadas. Entretanto, os seus parceiros parecem tê-las sentido, pois estes nunca o elegeram para o cargo mais alto na hierarquia australiana: o de presidente da Conferência dos Bispos Católicos da Austrália.
Sob o comado de Pell, floresceu a prática desagradável de relatar a Roma aqueles que cometiam delitos: informar “inovações” ou infrações menores, ou dissidências teológicas, como a de questionar o celibato clerical. Bill Morris foi destituído como bispo de Ipswich, diocese no estado de Queensland, por ter sugerido que o debate sobre mulheres ordenadas ao sacerdócio poderia ser válido. Católicos australianos progressistas fizeram notar que as autoridades, em Roma, agiam mais rapidamente e de uma forma decidida contra padres que alteravam a missa ou que defendiam o fim do celibato clerical do que com aqueles que abusavam menores.
Talentoso no estabelecimento de amizades e, em tese, um bom companheiro de convivência, Pell fez amigos influentes já no início de sua carreira, como Joseph Ratzinger (mais tarde Papa Bento XVI) na Congregação para a Doutrina da Fé. Em Roma, nos últimos 20 anos ele era o australiano mais poderoso, tendo inclusive – é o que se diz – influenciado as nomeações episcopais.
Uma das realizações do religioso foi trazer o Papa Bento à Austrália para a Jornada Mundial da Juventude em 2008, quando se realizou a maior missa na história do país, com mais de 400.000 peregrinos juntando-se ao pontífice, Pell e outros 25 cardeais, 420 bispos e um coro de 300 cantores no hipódromo de Sydney.
Em 2014, Francisco nomeou Pell para a função de “tesoureiro”, tarefa para a qual a sua habilidade e determinação significavam que era a pessoa ideal. O papa também nomeou o cardeal para ser o representante da Oceania no grupo dos “oito” (hoje nove) cardeais que o assessoram nas reformas da Igreja.
Parecia que a sua influência ainda estava em ascensão, mas na verdade ela havia ultrapassado o seu zênite, e alguns católicos acharam que a sua saída da Austrália para Roma acompanhava o seu depoimento pouco impressionante em 2013 diante do grupo que investiga a maneira como instituições do país lidaram em casos de abuso sexual no passado. O religioso admitiu inúmeras falhas da Igreja, nenhuma estando sob sua responsabilidade – tema que ele ampliaria diante da Comissão Real sobre Abusos Infantis, grupo ao qual já prestou depoimentos algumas vezes e que ainda irá publicar o seu relatório final.
(Na Austrália, uma investigação parlamentar e, especialmente, uma comissão real são investigações de alto nível com poderes jurídicos de exigir respostas dos investigados.)
As provas apresentadas pelo advogado das vítimas Anthony Foster – entre elas estão duas filhas repetidas vezes violentadas na juventude quando estudavam em escolas católicas – foram particularmente devastadoras. Na investigação parlamentar, Foster falou da “falta de empatia sociopata” de Pell em um encontro organizado para que o então bispo pudesse ouvir as experiências.
O advogado disse que, desde o começo, Pell se mostrou intimidador e pronto para o confronto. A sua esposa e também advogada, Chrissie Foster, descreve o encontro em um livro chamado “Hell on the Way to Heaven”. Ela tinha preparado um dossiê contando suas experiências com a Igreja, mas nunca havia tido a chance de mostrá-lo. Numa pequena sala, com um banco de madeira para ela e seu marido se sentar, os dois ficaram de frente a Pell, que assumiu uma postura intimidadora.
Quando Anthony Foster contou como o Pe. Kevin O’Donnell havia repetidamente violentado sexualmente Emma e Katie Foster, a começar quando elas tinham 5 anos de idade, a resposta de Pell foi: “Eu espero que consigam substanciar isto diante de um tribunal”.
Quando Anthony Foster passou a listar os problemas que via no protocolo “Melbourne Response” para abusos sexuais, Pell interveio: “Se não gostam do que fazemos, acionem a justiça”. Quando mostraram uma foto de Emma (que mais tarde cometeu suicídio) depois ter cortado os próprios pulsos, disse Pell com toda a seriedade: “Humm, ela está mudada, não?”.
Mas mesmo este relato perde em importância se comparado com o próprio depoimento que Pell prestou diante da Comissão Real, especialmente na sessão final em 2016, em que compaixão e empatia pelos sobreviventes foram invisíveis. Parecia que todos haviam traído Pell, os que estavam acima dele, os que estava abaixo dele, os que estavam do seu lado, e que ele não tinha culpa por uma tal conspiração do silêncio. Não tinha nenhuma responsabilidade em cuidar dos menores. Pell adotou a clássica tática hierárquica de culpar os mortos.
Pell teve momentos difíceis diante da investigadora Gail Furness, declaradamente cética, e do presidente da comissão, o juiz da Suprema Corte Peter McClellan. Surpreendentemente ele conseguiu ficar sem saber do reduto de pedófilos em Ballarat, mesmo quando trabalhou no comitê que, por várias vezes, trocou de lugar o abusador, Gerard Ridsdale, entre paróquias. (Ridsdale anda está preso depois de abusar possivelmente centenas de crianças.) Pell chocou os analistas ao dizer: “É uma história triste, mas que não tinha grande interesse para mim”. De forma semelhante, quando foi bispo e arcebispo de Melbourne, ele aparentemente foi vítima de uma conspiração do silêncio em que aqueles que deveriam ter-lhe contado o que se passava nada disseram – afirmação negada durante um depoimento à comissão pelos supostos conspiradores.
Ficou claro que o plano de indenização oficial que Pell introduziu para as vítimas de abuso – plano do qual ele frequentemente se vangloria – era mais um meio de limitar os danos à Igreja. Embora o protocolo Melbourne Response certamente tenha introduzido novos horizontes para as vítimas, em casos em que os supostos perpetradores já haviam morrido, ele limitava as indenizações em $AU 50.000 (40 mil dólares), enquanto o plano nacional, Towards Healing, não tinha limite. Os advogados da Igreja eram instruídos a “defender com vigor” os casos em que as vítimas escolhiam recorrer aos tribunais, inclusive negando aquilo que a Igreja havia admitido às vítimas anteriormente.
O que tudo isso mostra ao mundo é que Pell era um homem de confiança: a proteção da Igreja institucional sempre foi a sua maior preocupação.
É claro que isso não significa que ele abusou de menores. No mês passado, Pell negou veementemente estas acusações dizendo ser inocente e que considera abominável toda esta ideia de abuso sexual relacionada a sua pessoa. Disse que estava feliz com a oportunidade de limpar o seu nome diante de um tribunal.
Mesmo contrariando conselhos médicos, Pell chegou a Melbourne para depor diante da Comissão Real. Nesta quarta-feira, o mundo irá saber quais acusações estão sendo imputadas a ele já na audiência de abertura.
Alguns apoiadores especulam dizendo que poderá ser impossível ele ter um julgamento justo, com um júri não influenciado por reportagens publicadas na imprensa e pelas mídias sociais.
A jornalista Tess Livingstone, autora de uma biografia de Pell editada em 2004, concluiu o livro com uma imagem de Pell de pé na varanda da Praça de São Pedro, em Roma, olhando para a massa de fiéis a aclamar a sua eleição como pontífice. Seja qual for o futuro do Cardeal Pell, este cenário, hoje, parece impossível.
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Austrália. Prestes a depor em tribunal, Cardeal Pell está habituado a polêmicas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU