18 Julho 2017
O artigo de dois amigos do Papa Francisco que defende que há uma "visão maniqueísta" por trás do "surpreendente ecumenismo... entre fundamentalistas evangélicos e integralistas católicos" nos Estados Unidos pode ser questionável, mas ilustra uma visão consagrada do Vaticano sobre os EUA que não foi invenção deste Papa nem de seus assessores. (Eu acrescentaria que podemos ir com calma antes de culpar os bispos dos EUA.)
O comentário é de John L. Allen Jr., publicado por Crux, 16-07-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Na quinta-feira, a revista jesuíta La Civiltà Cattolica, revisado pela Secretaria de Estado do Vaticano antes de ser publicada, apresentou um artigo de dois amigos do Papa Francisco defendendo que existe uma "visão maniqueísta" por trás desse "curioso e surpreendente ecumenismo... entre fundamentalistas evangélicos e integralistas católicos" no Estados Unidos.
(O "maniqueísmo" refere-se a uma antiga religião persa que acreditava que existia uma batalha cósmica entre a luz e a escuridão, o bem e o mal, e que agora representa um pensamento tudo ou nada).
Parece que o artigo entendia "Integralismo Católico", pelo menos em partes, como o apoio católico ao presidente dos EUA, Donald Trump, sugerindo que o assessor de Trump, Steve Bannon, que é católico, "defendia uma geopolítica apocalíptica".
Dada a hiperpolarização atual dos EUA, a reação imediata chegou em grande parte em manifestações pró ou antiTrump... Quem estava disposto a dar um desconto ao presidente, provavelmente odiou o artigo, e vice-versa.
Para além do seu significado político, no entanto, apresentarei quatro observações de longo prazo sobre o assunto do artigo.
Primeiro, os autores - o padre jesuíta Antonio Spadaro, um dos colaboradores mais próximos de Francisco, e Marcelo Figueroa, um amigo protestante de longa data escolhido pelo papa para ser editor da versão argentina de L'Osservatore Romano - refletem claramente as visões do pontífice. A Secretaria de Estado não teria assinado se presumisse que Francisco não aprovaria.
Para saber a opinião do próprio Francisco sobre o fenômeno Trump, em outras palavras, este deve ser o lugar certo.
Em segundo lugar, não é uma situação comum. Os meios de comunicação do Vaticano, mesmo que apenas semioficiais, raramente comentam diretamente a situação política de outro país, principalmente de uma forma que não pode deixar de ser considerada partidária.
Em consonância com outras ações, como a escolha de religiosos estadunidenses veteranos, o artigo consolida a impressão de que o Papa Francisco e sua equipe estão deliberadamente tentando reorientar o ethos da igreja dos EUA. Eles querem distanciá-la da ênfase na identidade católica e nas batalhas culturais que se sobressaíam durante os papados de João Paulo II e Bento XVI e direcioná-la a uma abordagem que eles percebem como mais ampla e mais pastoral.
Se isso é bom ou ruim, ou se está em um meio termo, depende da perspectiva de cada um, mas os fatos parecem inquestionáveis.
A impressão de que os bispos dos EUA estavam nas circunscrições a que Spadaro e Figueroa estavam se referindo foi reforçada na sexta-feira, quando Luis Badilla, editor de uma agência de notícias católica muito lida na Itália chamada Il Sismografo, publicou o seguinte comentário sobre o artigo:
"O que vem à mente imediatamente é uma única e importante questão: por que os bispos dos Estados Unidos ou expoentes oficiais do catolicismo estadunidense ainda não falaram sobre esse delicado e importante assunto? Como é que teve que se resumir a uma análise e um aviso de fora?”
"A questão não é irrelevante agora e certamente também não será no futuro", escreveu Badilla. "Vamos ver o que vai acontecer depois desse silêncio vergonhoso."
Spadaro retuitou o comentário, chamando-o de "nota do dia".
(Em defesa dos bispos, no entanto, é bastante irônico que, no mesmo dia em que Badilla e Spadaro os confrontaram, os bispos dos Estados Unidos divulgaram declarações criticando o novo recorde histórico de Trump na interceptação de refugiados e também considerando a crise na assistência à saúde republicana "inaceitável". Se é assim que agem os fantoches do regime Trump, arrisco-me a dizer que Deus o proteja de seus inimigos.)
(Da mesma forma, se realmente quisessem colocar parte da culpa pelo surgimento do "Integralismo Católico" nos bispos dos EUA, Spadaro e Figueroa deveriam ter escolhido um exemplo melhor do que o Church Militant, mídia conservadora liderada pelo leigo Michael Voris. Qualquer um que conheça a situação sabe da relação fria entre Voris e a conferência dos bispos, como o fato de ele e sua equipe recém terem sido expulsos da "Convocação de líderes católicos" dos bispos em Orlando, na Flórida.)
(Depois que a Church Militant distribuiu panfletos em Orlando como o título "Salve a Igreja", o bispo Frank Caggiano, de Bridgeport, Connecticut, repreendeu: "Perdoe-me, mas ninguém nesta sala vai salvar a Igreja", disse ele a uma multidão. "Nós já temos um salvador, e seu nome é Jesus Cristo". Mais uma vez, se isso encoraja alguém, eu adoraria saber o que os desencorajaria.)
Em terceiro lugar, ao longo do tempo, o debate a respeito do artigo pode ter menos relação com Trump do que com a precisão da visão dos autores sobre a realidade dos EUA.
Entre outras críticas, alguns dizem que Spadaro e Figueroa confundem o Fundamentalismo, o Evangelho da Prosperidade e a Teologia do Domínio, três vertentes distintas do cristianismo norte-americano, criando uma impressão de que o protestantismo evangélico é uma massa homogênea e indiferenciada. Um colega sugeriu, durante o fim de semana, que grupos evangélicos nos Estados Unidos deveriam convidar Spadaro e Figueroa para uma visita, para quem sabe aprofundar suas percepções.
Claro, uma certa perplexidade em relação à religião nos EUA é um fenômeno bastante difundido na Europa, que vai além do Vaticano.
No entanto, Spadaro e Figueroa também têm defensores. Michael Sean Winters, do National Catholic Reporter, por exemplo, ficou entusiasmado.
"Finalmente alguém na autoridade reconheceu que o esforço para vincular católicos conservadores e evangélicos sempre foi mais político do que religioso e que poderia alienar muitos missionários", escreveu ele.
O contraste destaca outro sentido curioso em relação ao papa Francisco.
Nos anos 80 e 90, era a esquerda católica nos EUA que argumentava que o papa não entendia os EUA - que João Paulo II não apreciava nosso ethos democrático, nossa ênfase nas mulheres e nos leigos, o espírito colaborativo das paróquias estadunidenses, e assim por diante.
Hoje, é mais provável que a direita católica norte-americana resmungue que o papa não "nos entende" - que ele não consegue entender como o capitalismo estadunidense gera oportunidades em vez de opressão, que ele acha que os estadunidenses são vaqueiros contentes com a guerra e não vê todo o bem que fazemos no mundo, que ele não entende como suas declarações ambíguas colocam lenha na fogueira da confusão secular e dos ataques à liberdade religiosa aqui, e assim por diante.
O artigo, no mínimo, não contribuirá muito para reafirmar esse grupo.
(Com toda a franqueza, ambos os campos devem reconhecer que quando o Vaticano aborda uma cultura distante de sua experiência, será necessário separar o joio do trigo de alguma forma, independentemente da sua política. Se eu ganhasse um dólar a cada vez que um católico holandês, nigeriano ou indiano, ou quem quer que fosse, se queixasse que "o Vaticano não nos entende", eu estaria nas Bahamas administrando meus investimentos em uma cabana na praia.)
Em quarto lugar, e talvez o mais importante, o que quer que se pense da avaliação de Spadaro e Figueroa dos Estados Unidos, não se trata apenas deles.
Lembro de uma sessão com jornalistas em 2003 do falecido cardeal italiano Pio Laghi, que tinha acabado de voltar para Roma de uma reunião na Casa Branca com o então presidente George W. Bush e sua equipe de segurança nacional, parte de uma última tentativa de João Paulo II de tentar impedir a guerra no Iraque. Era evidente que a equipe de Bush estava determinada a ir em frente, apesar das objeções do papa, e perguntamos a opinião de Laghi, ex-embaixador papal nos Estados Unidos.
Laghi respondeu que sentiu "um certo calvinismo" na determinação ferrenha de Bush de seguir em frente, indicando um senso extremamente dualista de bem contra o mal. (O termo se refere a um dos pais da Reforma Protestante, João Calvino, conhecido por sua rigidez.)
Ao longo dos anos, uma visão clássica dos EUA no Vaticano, principalmente entre os italianos, mas não restrita a eles, é que historicamente somos uma cultura calvinista, não católica, e nas profundezas do nosso DNA há uma tendência de pensar em função de "eleitos" e "reprovados". Como disse o falecido Cardeal Francis George, de Chicago, até os católicos nos Estados Unidos tendem a ser "católicos na fé, protestantes na cultura".
Esse instinto calvinista, como sentem os diplomatas e formuladores de políticas do Vaticano, pode levar a um compromisso louvável com uma causa e a uma vontade de agir enquanto outros ficam na indecisão, mas também pode criar pontos cegos e uma preocupante ânsia de demonizar os adversários.
Conclusão: a suspeita de uma tendência latente ao "maniqueísmo" é uma visão consagrada do Vaticano a respeito dos EUA, que não foi invenção nem do Papa Francisco nem de Spadaro e Figueroa, e que persistirá por muito tempo depois que eles se forem.
Naturalmente, ninguém precisa aceitar de maneira acrítica o modo como os outros nos veem, mas ainda é útil saber o que estão pensando, principalmente quando são os responsáveis pela Igreja a que todos pertencemos. Nesse sentido, Spadaro e Figueroa podem ter dado uma contribuição ao colocar as cartas na mesa.
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