03 Mai 2017
Só há pouco tempo a Igreja pós-Bento começou a lidar com a recém-criada instituição do “Bispo Emérito de Roma”. O “complexo de Bento” tende a colocar o Papa Francisco contra o seu antecessor numa rivalidade, se não mesmo uma relação hostil, que termina num jogo de soma zero.
O comentário é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por La Croix, 02-05-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Um livro recentemente lançado – “The Benedict Option” – insta os cristãos de hoje a estrategicamente retirarem-se da cultura moderna. O blogueiro e autor neotradicionalista Rod Dreher cita São Bento de Núrcia como a inspiração para esta proposta.
Não está claro qual o impacto este livro terá sobre os fiéis em particular, mas não há dúvida de que o catolicismo vem desenvolvendo atualmente um peculiar “complexo de Bento”.
No entanto, o Bento, nesse caso, é Bento XVI – o Bispo Emérito de Roma que abdicou do ofício papal em 28-02-2013, e foi sucedido em 13-03-03 por Jorge Mario Bergoglio, aquele que hoje conhecemos como Papa Francisco.
Este “complexo de Bento” possui dois aspectos distintos.
Por um lado, há um “complexo jornalístico-industrial”, parecido com o “complexo industrial-militar” que o presidente americano Dwight D. Eisenhower decretou em seu famoso discurso de despedida em janeiro de 1961.
Hoje, o papado é uma máquina bastante complexa. Comparado a poucas décadas atrás, há um negócio de merchandising e um aparato jornalístico muito maiores que circundam o papa e o Vaticano.
Manusear e entregar as palavras e a imagem do papa é um empreendimento complexo e potencialmente lucrativo. Nesse sentido, uma série televisiva como “The Young Pope”, onde o ficcional Pio XIII (Jude Law) procura se retirar do espaço público, vem capturando um certo fascínio com a mecânica do papado moderno.
Na verdade, o complexo jornalístico-industrial que circunda Bento XVI não cessou quando ele se aposentou. Em vez disso, há os que continuaram a fazer referência constante a ele, o papa favorito de muitos, se como pouco tivesse mudado após a renúncia.
Joseph Ratzinger e seus seguidores não necessariamente devem ser culpados por isso. Provavelmente uma situação assim aconteceria com qualquer papa que viesse a renunciar. E é provável que o mesmo ocorrerá no futuro, caso um outro pontífice se retire e aposente-se dentro dos muros vaticanos.
Ainda que alguns da comitiva de Bento XVI venham usando o “papa emérito” para fazer avançar as suas próprias agendas (e aqui temos um problema grave), o “complexo teológico-industrial” não é, primordialmente, um produto da teologia de Ratzinger ou dos seus seguidores (os ratzinguerianos).
Na realidade, trata-se mais de como o papado funciona por meio das mídias sociais hoje. Tem a ver também com as consequências não esperadas da coexistência de um papa e um antecessor aposentado que escolheu permanecer no Vaticano.
A transição extraordinária de Bento para Francisco – que ainda está em curso e longe de acabar – é a primeira transição do poder papal a acontecer na era das mídias sociais. Estes são os próprios meios de comunicação que mudaram os hábitos diários de muitos fiéis exatamente durante o pontificado de Bento (2005-2013).
Lembremos que o Facebook se expandiu entre 2007 e 2011. Em seguida, o Twitter, lançado em 2006, cresceu exponencialmente entre 2007 e 2008. Isso ajudou a conectar muitos fiéis a opiniões fortes ao mesmo tempo isolando-os daquelas das quais discordam.
Alguns católicos influentes (blogueiros conhecidos em geral) têm usado as mídias sociais para minar a visão global sobre a qual se baseiam estas mídias, mas – mais ainda – sobre a qual o catolicismo se baseia.
Estas cosmovisões idiossincráticas ajudaram a criar uma versão pós-moderna da antiga situação medieval de “obediências” separadas a diferentes papas e antipapas.
O segundo aspecto do “complexo de Bento” é teológico e psicológico. O complexo de Édipo é um estágio no processo normal de desenvolvimento da criança, e de um modo semelhante o “complexo de Bento” é um estágio neste novo capítulo da história da Igreja em sua relação com o papado.
Só há pouco tempo a Igreja pós-Bento começou a lidar com a recém-criada instituição do “Bispo Emérito de Roma”. O “complexo de Bento” tende a colocar o Papa Francisco contra o seu antecessor numa rivalidade, se não mesmo uma relação hostil, que termina num jogo de soma zero.
A coexistência de um papa reinante e de um bispo emérito romano já é complexa o suficiente. Isso é verdade, por exemplo, no nível simbólico, onde o emérito está ativamente presente (ou não) em certos momentos importantes da vida da Igreja.
E é verdade também no nível da autoridade magisterial, onde referências são continuamente feitas às opiniões do emérito e dos seus nomeados. Eis um processo sem nenhuma tradição codificada. Só agora estamos começando a criá-la.
Ao lado disso tudo, existe às vezes uma obsessão em mensurar a legitimidade do pontificado de Francisco em termos de continuidade ou descontinuidade com o antecessor alemão. Os católicos podem apreciar o que é novidade e o que não é em um papa recém-eleito, mas a comparação constante de um papa eleito recentemente com o seu antecessor que ainda vive é uma coisa inteiramente nova.
O “complexo de Bento” está também associado ao papel que Joseph Ratzinger e sua teologia desempenharam no pontificado de João Paulo II.
Alguns podem dizer que a nostalgia por Bento XVI está ligada ao “infalibilismo”. Mas essa afirmação não pode ser verdadeira, porque o Concílio Vaticano I (1869-1870) definiu a infalibilidade papal em termos estreitos e precisos. E também porque todo papa desde o Vaticano I pode implorar a infalibilidade papal, embora seja interessante ver que Francisco fale de infalibilidade apenas em termos de “infalibilidade da fé do povo”.
Um a característica típica do “complexo de Bento” pode ser chamada de “definitivismo”. Este é o lugar onde as características mais importantes do catolicismo são magisterialmente definidas de um modo claro e proposicional.
Definitiva e canonicamente, João Paulo II e Joseph Ratzinger-Bento XVI definiram, de uma vez por todas, uma série delas. De acordo com este definitivismo, é impossível desenvolver qualquer ensino católico para além de João Paulo II e Bento XVI. É algo como a famosa (e fracassada) tese do cientista político Francis Fukuyama sobre o “fim da história”, porém aplicada à Igreja Católica.
Estamos diante de uma novidade, e que muito diz sobre como os católicos vêm reagindo ao fim do período mais importante do pós-Vaticano II até o momento: os 35 anos de João Paulo II e Bento XVI. Esse “complexo de Bento” destaca o fato de que a Igreja às vezes perde a ideia precisamente católica de que a verdade consiste no “tanto quanto”, e não em “uma coisa, ou outra”.
Em outras palavras, a dificuldade em aceitar o Papa Francisco em suas diferenças com João Paulo e Bento é um sintoma da dificuldade que alguns católicos têm (especialmente os recém-convertidos do ateísmo científico, do materialismo marxista ou da tradição protestante) com os paradoxos típicos do catolicismo.
O romancista americano F. Scott Fitzgerald (criado num ambiente católico) dizia: “O teste de uma inteligência de primeira linha é a capacidade de manter, em pensamento, duas ideias opostas ao mesmo tempo e ainda reter a capacidade de funcionar”.
Isso pode se aplicar à situação do papado hoje. Existe só um papa, mas há claramente duas (no mínimo duas) culturas teológicas diferentes em atividade no corpo (especialmente na hierarquia) da Igreja.
O mais importante a ter em mente é que a Igreja recebe (e abraça) o ensino papal no longo prazo. Isso leva tempo. E nenhum de nós estará aqui quando as questões teológicas atualmente sobre a mesa vão estar, por fim, assentadas pela Tradição.
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O peculiar “complexo de Bento” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU