22 Novembro 2018
A apresentadora Fernanda Lima foi linchada nas redes sociais por ter encerrado a edição do seu programa “Amor & Sexo”, de 6 de novembro, na TV Globo, com as seguintes palavras. É bom ler vírgula por vírgula, porque a quantidade de gente que comenta, julga e condena sem sequer ler tem se multiplicado mais do que baratas. E, às vezes, com o cérebro de uma. Fernanda disse:
– Chamam de louca a mulher que desafia as regras e não se conforma. Chamam de louca a mulher cheia de erotismo, de vida e de tesão. Chamam de louca a mulher que resiste e não desiste. Chamam de louca a mulher que diz sim e a mulher que diz não. Não importa o que façamos nos chamam de louca. Se levamos a fama, vamos sim deitar na cama. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema de opressão. Vamos sabotar as engrenagens desse sistema homofóbico, racista, patriarcal, machista e misógino. Vamos jogar na fogueira as camisas de força da submissão, da tirania e da repressão. Vamos libertar todas nós e todos vocês. Nossa luta está apenas começando. Prepare-se porque essa revolução não tem volta. Bora sabotar tudo isso?
A reportagem é de Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, publicada por El País, 21-11-2018.
O programa havia sido gravado em julho, como ela afirmou nas redes sociais, mas de imediato uma horda de seguidores de Jair Bolsonaro (PSL) interpretou a fala da apresentadora como um manifesto contra a eleição de seu “mito”. Como é possível? É bastante possível, é mesmo até previsível. Se a apresentadora está conclamando as mulheres a lutar contra a homofobia, o racismo, o patriarcado, o machismo e a misoginia (ódio às mulheres), e os eleitores de Bolsonaro se ofendem e revidam o que consideram um ataque pessoal ao seu líder, é porque compreendem que o presidente eleito defende e proclama a homofobia, o racismo, o patriarcado, o machismo e a misoginia. Entendem tudo muito bem.
Se Fernanda Lima invoca o público a combater a submissão, a tirania e a repressão, e os eleitores de Bolsonaro se ofendem, é porque entendem que Bolsonaro – e também eles – defendem a submissão (das mulheres, dos LGBTQI e dos negros), a tirania e a repressão. Nenhuma novidade. Quem denunciou o projeto autoritário de Bolsonaro já sabia disso. Ao contrário de parte do eleitorado do deputado profissional, quem a ele se opôs acreditou na violência que Bolsonaro propagou publicamente durante quase 30 anos. Acreditou no que ele disse. Exatamente por acreditar, milhões de pessoas lutaram contra a sua candidatura. Esta, a propósito, é mais uma característica curiosa desta eleição: parte dos eleitores dizia não acreditar que seu candidato faria o que dizia que faria – e por isso votaram nele. É difícil de entender? É.
O que talvez ainda pudesse surpreender é uma horda de pessoas linchar verbalmente alguém porque a vítima defende valores fundamentais da civilização, que pareciam já consolidados, como a luta contra o racismo, o machismo, a homofobia e a tirania. Mas chegamos a este ponto. E certamente daqui passaremos para muito mais abaixo. Não estamos nem perto do fundo do poço sem fundo.
Um dos mais raivosos com a luta de Fernanda Lima contra o machismo respondeu com a elegância e o respeito que caracterizam uma parcela dos seguidores de Bolsonaro, feitos a imagem e semelhança do “mito”. Assim, o cantor Eduardo Costa expressou a si mesmo: “Mais de 60 (sic) milhões de brasileiros e brasileiras votaram no Bolsonaro e agora essa imbecil com esse discurso de esquerdista! Ela pode ter certeza de uma coisa, a mamata vai acabar, a corda sempre arrebenta pro lado mais fraco, e o lado mais fraco hoje é o que ela está. Será que essa senhora só faz programa pra maconheiro, pra bandido, pra esquerdista derrotado, e pra esses projetos de artista assim como ela?”.
Que ser de esquerda signifique também combater a tirania, o machismo, o racismo, a homofobia e a misoginia, perfeitamente justo. E bastante honroso. Mas duvido que parte da direita não compartilhe dos mesmos valores humanitários básicos. Há uma direita que suspeito que possa ficar ofendida por ter sido apartada destes valores. Mas cadê ela? Muda como uma freira que fez voto de silêncio.
Os que não fazem votos de silêncio são os pastores de certas igrejas evangélicas – não todas, definitivamente não todas. Conhecedor de seus fiéis, o deputado Marco Feliciano (PSC) se manifestou na imprensa Gospel com a certeza de que seu público só leria o que ele disse, não o que Fernanda efetivamente falou. E seu público nunca o decepciona. Então mentiu: “Em uma das últimas apresentações, ela (Fernanda Lima) vociferou críticas ferozes e mentirosas ao presidente eleito Jair Bolsonaro. Sua fala denotava um ódio escancarado e uma falta de respeito à maioria do povo brasileiro, entre eles muitos de seus espectadores, numa linguagem de revolucionário clandestino, como se estivesse falando de alguma caverna do Afeganistão”.
Leiam mais uma vez o que Fernanda Lima disse. Como ela pode ter ofendido Jair Bolsonaro? Como as dependências da TV Globo (!!!!) podem ser comparadas com uma caverna do Afeganistão? Para que possamos conversar, é preciso manter uma afinidade mínima com os fatos. Embora se saiba que Bolsonaro defende o racismo, a homofobia, o machismo, a misoginia e a tirania, ter ideias diferentes não é ofender, apenas discordar. Neste caso, apenas cumprir a lei, já que racismo, por exemplo, é crime. Sem contar que Bolsonaro jamais foi citado no programa, gravado muito antes do primeiro turno das eleições.
Mas a fala de Feliciano, um pastor que já foi acusado de tentativa de estupro e que já afirmou que os negros descendem de um “ancestral amaldiçoado por Noé”, não surpreende ninguém. O que surpreende é ele “denunciar” que alguém é contra a opressão das mulheres e o racismo. O evangelismo dele seria a favor? Feliciano pode ser o que ele é e responder pelo que diz e faz na justiça, mas não pode tratar seu comportamento como se fosse a forma correta de se mover numa sociedade. Esta é a insanidade do momento. Tratar comportamentos antiéticos e imorais, alguns deles previstos no Código Penal como crime, como a forma correta de agir – ou como se a eleição de Bolsonaro tivesse bastado para rasgar a Constituição e defecar no Código Penal.
Dias depois do ataque à Fernanda Lima, duas manifestações de homens brancos e velhos clarearam um pouco mais o atual cenário brasileiro. (Para deixar explícito desde já, quem me lê sabe a defesa contundente que eu faço da velhice e minha crítica com relação a expressões como “terceira idade” ou “melhor idade”). Os dois homens brancos e velhos têm vozes com poder de ecoarem longe, um deles tem também microfone e concessão de TV. Mas ambos têm trajetórias bastante diferentes. Neste momento de tantas velhas novidades, porém, também eles se aproximam no pensamento.
O primeiro é Silvio Santos. Ao vivo, na TV, o apresentador e dono do SBT, ao receber a cantora Claudia Leitte, afirmou que não a abraçaria. "Esse negócio de ficar dando abraço me excita e eu não gosto de ficar excitado", disse o apresentador. Surpreendida pelo desrespeito, Claudia retrucou: "No sentido feliz da palavra, né? De alegria, euforia, excitação”. Silvio, obviamente, perdeu a chance de se redimir em público: "Não, não é euforia, não. É excitação mesmo”. E a câmera focou nas pernas da cantora, para deixar claro para os milhões que assistiam ao programa o que deixava o patrão tão sexualmente excitado.
Silvio Santos é notório por pelo menos duas características: bajular todos os governos, ditatoriais ou não, ao ponto do constrangimento, e acreditar que assediar e ofender mulheres é um direito adquirido que não pode ser barrado pelo “politicamente correto”. A expressão, a propósito, é a mais odiada por pessoas como ele, já que acham injusto refrear seus instintos em nome da convivência e do respeito ao outro. Em julho, o dono do SBT fez o seguinte comentário a respeito de Fernanda Lima: “Com essas pernas finas e essa cara de gripe, ela não teria nem amor nem sexo”.
Em entrevista à Band, Fernanda rebateu: “Silvio, por que não te calas?”. Ele disse que não se calaria. Fernanda usou então suas redes sociais: "O corpo da mulher não é território público onde se pode meter a mão, avaliar, invadir, usar, agredir. Sigamos firmes e juntas construindo um grande abrigo de proteção para todas as mulheres contra qualquer violência machista”. O embate entre a apresentadora do Amor & Sexo e os machos alfas da TV não é novo, como se vê. Uma mulher falar de sexo e amor para milhões de telespectadores parece afetar masculinidades inseguras.
No programa Teleton, em 2017, depois da apresentação de um grupo de bailarinas plus size, Silvio chamou uma delas para entrevistar. Saiu-se com essa: "Você é muito graciosa. Embora seja a única negra entre as brancas, é bonita. É bonita de verdade!”. É possível que ele acredite que reconhecer a beleza de uma negra, mesmo com tantas brancas ao redor, seja um elogio, o que já é bastante impressionante. Mas ele é exímio em tornar tudo ainda pior: "Quem casar contigo vai ter dois prazeres: um na hora do bem-bom e outro na hora em que você sai de cima".
Silvio Santos já deveria ter respondido pelas violações da lei que cometeu ao vivo, diante de milhões, em horário nobre, há muito. Mas cresce o número daqueles que o acham apenas “engraçado”. E dos que acreditam que tudo isso é apenas “normal”. O que essas pessoas que normalizam o que jamais poderia ser considerado normal não percebem é o quanto esses exemplos – e sua impunidade – repercutem nos atos cotidianos e se entranham nas relações sociais, estimulando crimes também contra o corpo. Ou percebem. E é por isso que o apoiam.
A manifestação mais surpreendente veio do ator Carlos Vereza. Durante a ditadura civil-militar (1964-85), ele era visto como um dos artistas mais atuantes e engajados contra a opressão. Vereza é também considerado um dos mais brilhantes atores da sua geração. Eleitor de Bolsonaro, ele fez a seguinte afirmação, em entrevista à Folha de S. Paulo: “Uma coisa que eu não entendo é por que, em todo ato de protesto, precisa ficar nu. E são corpos muito feios. (...) São mulheres feias, com cabelo embaixo do braço, barriga. Protesto tem que ser com calça jeans e uma camisa Lacoste. Não é nu”.
É claro que Vereza é muito mais sofisticado ao disseminar as suas agressões. Mas a declaração é bastante violenta. Para ele, apenas mulheres com determinado padrão de beleza têm o direito de exibir o corpo em público. Ao mesmo tempo, ele ecoa uma mentira que foi amplamente disseminada no WhatsApp. A última grande manifestação organizada por mulheres foi o movimento #EleNão, em 29 de setembro, contra o autoritarismo representado pela candidatura de Bolsonaro. Não houve nudez naquele protesto. Mas, no WhatsApp, partidários de Bolsonaro difundiram imagens de protestos diferentes, alguns deles nem ocorridos no Brasil. Como as TVs desistiram do jornalismo na ocasião, mal cobrindo as manifestações, virou “verdade”. Havia inclusive imagens de mulheres quebrando símbolos religiosos, o que nunca aconteceu no #EleNão.
Carlos Vereza não se refere nominalmente ao #EleNão, mas podemos suspeitar que, como eleitor de Bolsonaro, pudesse estar se referindo ao maior protesto contra o seu candidato na eleição de 2018. Ainda que não seja a este protesto que ele se refira, e ainda que o #EleNão tivesse de fato envolvido a nudez de mulheres, por que o corpo feminino usado como expressão política seria tão ofensivo? Será que, para Vereza, a nudez feminina só é legítima se servir ao gozo do homem, como foi por tantos séculos (e ainda é em muitos espaços)? Será que seria preciso passar por uma seleção coordenada por Vereza para que ele nos diga se nosso corpo é bom o suficiente para ser exposto sem ofender sua sensibilidade? Por que essa necessidade de atacar as mulheres desqualificando seu corpo?
E, então, a frase mais elitista: “protesto tem que ser com calça jeans e uma camisa Lacoste”. Para quem não sabe, Lacoste é uma marca francesa, cara, cujo produto mais famoso são as camisas polo. É aquela que tem um jacarezinho, amplamente pirateada pelos camelôs. O que Vereza está dizendo é que protesto é para homens, usuários mais habituais de camisas polo do que mulheres, gente vestida com roupas de grife, brasileiros capazes de pagar por isso. Protesto, portanto, não seria para pobres, na opinião do ator que já foi um símbolo de resistência contra o autoritarismo.
Não me parece que essa coincidência de vozes seja apenas mais um dos ataques que as mulheres sofrem há tanto. A eleição de Bolsonaro, cujas frases desqualificando as mulheres já são bem conhecidas, destampou o ódio – e também o medo – de certo tipo de homem, que sofre por perder seus privilégios. Inclusive o privilégio de poder assediar uma mulher sem ser reprimido por isso. E não destampou apenas entre seus eleitores. Destampou no geral.
A dificuldade em perder privilégios de gênero marca tanto a direita quanto a esquerda, parte dela também machista, misógina e homofóbica. Atravessa as diversas classes sociais – e atravessa também as raças. Às vezes o único “privilégio” que um homem pobre tem é o de se sentir superior à mulher e poder assediar todas as que quiser livremente. Só que, se isso é entendido como privilégio, é preciso começar a compreender que não é um privilégio. É desigualdade e é violência. É inaceitável.
Esse aprendizado foi conquistado pela luta histórica das feministas e, mais recentemente, por movimentos como #primeiroassédio, no Brasil, e #MeToo, nos Estados Unidos, assim como o “Nenhuma a menos”, que se espalhou pela América Latina. Os avanços recentes das mulheres, com a emergência de jovens feministas e o nascimento de novos feminismos, com uma marca forte do crescente protagonismo das mulheres negras, assinalam este momento. Nenhum outro movimento se mostrou tão forte e fez tantas conquistas nos últimos anos quanto o das mulheres.
Bolsonaro reage também a isso. Ele jamais admitirá, mas ele e seus seguidores temem as “fraquejadas”. Bolsonaro é o macho destampado, que disfarça a ignorância como “sinceridade” e “autenticidade”, que se orgulha de poder dizer qualquer barbarismo simplesmente porque é homem e porque é branco. É um macho em defesa feroz do seu lugar no topo da cadeia alimentar. O presidente eleito majoritariamente por homens, mas também por muitas mulheres, representa bastante gente, até quem não confessa que, neste quesito, sente-se secretamente vingado por ele.
A ofensiva contra as mulheres não é algo colateral ou secundário na eleição de 2018, como pode parecer. É central. Na minha opinião, a grande marca desta eleição é gênero, raça e classe social. Como mostrou pesquisa do EL PAÍS, no primeiro turno Bolsonaro venceu nas dez cidades mais ricas do país e Fernando Haddad (PT) ganhou em nove das dez cidades mais pobres. Como é sabido, no Brasil a maioria dos mais pobres é negra e a maioria dos mais ricos é branca. Na pesquisa do Ibope, encomendada pela TV Globo e pelo jornal O Estado de S. Paulo, Bolsonaro ganhava por muito entre os homens (54% a 37%) e perdia por pouco entre as mulheres (41%, contra 44% de Haddad). A pesquisa foi realizada nos dias 26 e 27 de outubro, com margem de erro de 2 pontos e nível de confiança de 95%.
O candidato de extrema direita também ganhava por muito entre os mais escolarizados (53% a 35%) e perdia por muito entre os menos escolarizados (36%, contra 54% de Haddad). O populista também perdia por muito entre os que vivem com até 1 salário mínimo (32%, contra 56% de Haddad) e ganhava por muito entre os que recebem mais de cinco salários mínimos (63% a 29%). O candidato autoritário também ganhava por muito entre os brancos ( 58% a 31%) e perdia por pouco entre os negros (41%, contra os 47% de Haddad).
Esta é a polarização que revela bastante sobre o atual momento do país e sobre o peso das lutas identitárias nesta eleição. Não é a única variável determinante, mas sem dúvida uma delas. A religião, como já havia ficado claro, também é uma variável fundamental. Segundo a mesma pesquisa do Ibope, se entre os católicos houve empate técnico dos candidatos, entre os evangélicos Bolsonaro disparou.
A grande oposição a Bolsonaro – e também a mais visível – é representada pelas mulheres. Mas é preciso lembrar que as mulheres não são um genérico. Bolsonaro perdeu mais votos entre as negras do que entre as brancas, entre as nordestinas mais do que entre as do Sul e Sudeste. A divisão regional, que já havia ficado clara na eleição de 2014, é outro indicador importante da partição histórica do Brasil.
A maior manifestação organizada por mulheres da história do Brasil foi o #EleNão, que colocou centenas de milhares de pessoas nas ruas em 29 de setembro. O #EleNão foi também a maior manifestação da eleição de 2018. Esse protesto foi contra Bolsonaro. E começou numa página de Facebook – “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro” – criada por Ludmilla Teixeira, uma mulher nordestina da Bahia, de origem periférica e negra.
Negar a centralidade desse movimento de mulheres na oposição a Bolsonaro e ao autoritarismo que ele representa, na eleição mais complexa da democracia brasileira, obedece à mesma lógica sexista, machista e patriarcal que o presidente eleito representa. Parte da esquerda foi rápida em “culpar” o movimento #EleNão pelo aumento das intenções de voto em Bolsonaro. Intelectuais inteligentes fizeram questão de esquecer de outras variáveis e também que política não é instante, mas processo.
Excluído o #EleNão, haveria muito pouco para a parcela dos brasileiros que rejeitou Bolsonaro poder contar ao mundo, assim como afirmar que fez oposição consistente ao projeto autoritário de poder. O #EleNão foi o principal movimento de resistência a Bolsonaro e, num momento tão polarizado, conseguiu unir pessoas que até então nem se falavam, para muito além dos partidos políticos. Provou algo transgressor em um contexto tão precário: é possível conviver com as diferenças e lutar por aquilo que é comum.
Como Fernanda Lima entra nesta história? Ela, tão sulista, tão branca, tão loira, um modelo de beleza tão padrão que talvez fosse aprovado até mesmo pelos rigorosos critérios de seleção de Carlos Vereza, o que não quer ver “corpos feios” nas ruas? Quando “Amor & Sexo” começou, em 2009, possivelmente muitos esperavam apenas a excitação (no sentido Silvio Santos) de uma mulher jovem e bonita falando de sexo com pouca roupa. Fernanda mostrou que é possível discutir sexo com inteligência e franqueza sem nem se tornar um clichê de revista “feminina” nem uma Barbie para consumo masculino. Com boa direção e equipe de redatores, Amor & Sexo é um programa que foi se tornando cada vez mais interessante.
Especialmente nas últimas duas temporadas, o programa soube interpretar o momento político das lutas identitárias e levou o debate ao palco. Mas não apenas na boca de Fernanda. A apresentadora branca e heterossexual “soube compreender seu “lugar de fala”. Fernanda compartilhou o microfone e o programa tornou-se um espaço para ecoar várias identidades de gênero e de raça. E fez isso num momento em que outras vozes, em especial a de pastores evangélicos neopentecostais e a de sua bancada no Congresso, negociavam poder e recursos públicos a partir de ideias como a de que só existe um tipo de família, a do homem com a mulher, e a de que homossexualidade pode ser “curada”, como se doença fosse.
De objeto do desejo de homens pelo país, a Fernanda que não se deixou objetificar passou a ser odiada por uma parcela dos machos nacionais – e nacionalistas. Ela não só falava de sexo sem ser para o gozo dos homens como repudiava publicamente o assédio sexual. Ao compartilhar o microfone com outras identidades de gênero e raciais, a apresentadora, de certo modo, tornou-se uma traidora de seu gênero e raça, num país marcado pelo racismo e pela homofobia, que agora também tem um presidente declaradamente racista e homofóbico.
Fernanda Lima poderia ser apenas a mãe daquela que alguns consideram a “família perfeita”. Tem um marido igualmente branco, loiro e bonito, tem um casal de gêmeos igualmente brancos, loiros e bonitos. Estão prontos para posar para as revistas de celebridades, o que também fazem. Mas Fernanda recusou o que para muitos era seu melhor papel, ou o único, e usou o espaço que conquistou para debater as outras possibilidades de existir neste mundo. É chamada de “imbecil” pelo eleitor de Bolsonaro exatamente por não ser a “imbecil” que esperavam que ela fosse. Se fosse “imbecil”, o clichê da “loira burra”, o bolsomacho estaria coçando a barriga satisfeito, porque acreditaria que tudo tinha voltado ao seu lugar.
Fernanda é exatamente aquela que não se tornou “bela, recatada e do lar”, como foi descrita a mulher de Michel Temer (MDB), em perfil da revista Veja. O alvoroço causado pela jovem e loira esposa de Michel Temer ainda precisa ser melhor estudado. Ela foi vendida como uma personagem de propaganda de geladeira dos anos 60, mas muitos de seus admiradores, ao falar sobre ela, soavam como personagens de folhetim de Nelson Rodrigues. Quem ela é, de fato, o público não sabe.
O marido de Marcela traiu a companheira de chapa, Dilma Rousseff (PT), a primeira mulher presidente da história do Brasil – ou presidenta, como ela preferia, que tomou posse ao lado da filha e não de um marido. Temer, o vice conspirador, estreou como presidente, por força de um impeachment, com um ministério totalmente branco e masculino, como se o Brasil ainda estivesse na República Velha.
O deslocamento do lugar da mulher, da primeira presidenta, o papel de máximo protagonismo de um país, para o de uma primeira-dama clássica, a sombra por trás do “grande homem”, não é um dado qualquer. O roteiro do impeachment tem muitas faces, uma delas é a da primeira mulher que assumiu o poder no Brasil sendo expulsa pela traição ética de um homem que ocupava um lugar subalterno e pela imoralidade corrupta de um Congresso composto majoritariamente por homens. A tragédia culminou com a declaração do então deputado Jair Bolsonaro ao votar pelo impeachment: “Em memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff....”.
Naquele momento ninguém afirmaria que, apenas dois anos depois, Bolsonaro seria eleito presidente. Mas talvez sua corrida rumo à vitória tenha começado ali, com a intersecção da tortura sofrida durante a ditadura por uma mulher, a presidente que seu voto ajudava a expulsar do posto para o qual foi eleita, e a apologia ao torturador. Quando nada aconteceu após a fala criminosa e sádica de Bolsonaro, quando o impeachment sem justificativa consistente foi consumado, a sociedade brasileira ultrapassou um limite para o qual já não sabemos se há retorno. Naquele momento, o impeachment deixou de ser um instrumento previsto na Constituição. Bolsonaro o converteu em um novo episódio de tortura para Dilma Rousseff. As instituições compactuaram com o crime, e/ou se omitiram, mostrando-se aquém da democracia.
Durante o processo eleitoral, outra vítima de tortura foi atacada pelos seguidores de Bolsonaro. De novo, uma mulher. E, de novo, não acredito que sexo e gênero sejam coincidências. De Amélia Teles, o herói de Bolsonaro primeiro mandou que lhe arrancassem a roupa. Depois, aplicaram choques em seus seios, na vagina, no ânus, no umbigo, nos ouvidos e dentro da boca. Em outra sala de tortura estava seu marido, também sendo torturado. Ele entraria em coma pelos golpes infligidos em seu corpo. Quando Amelinha já estava urinada e vomitada, o militar mandou chamar seus dois filhos: uma menina de cinco anos, um menino de quatro. O menino não reconheceu a mãe, pelo tanto que a tortura a tinha desfigurado. “Só reconheci você pela voz”, ele lembraria muito mais tarde. A menina perguntou: “Mãe, por que você está azul?”. Só então Amelinha percebeu que os hematomas tinham deixado seu corpo inteiramente azul.
No segundo turno da campanha eleitoral, a pedido da equipe de Fernando Haddad (PT), Amélia e sua filha gravaram um depoimento para o programa político na TV, testemunhando o que viveram. Na sequência, seguidores de Bolsonaro promoveram um linchamento nas redes sociais: inventaram que ela tinha esquartejado dois militares quando fazia a resistência à ditadura. Criaram uma ficção em que a vítima seria a torturadora e assassina. Inverteram e subverteram a realidade. E a ameaçaram de morte. Agora com 74 anos, é como se Amélia estivesse sendo torturada mais uma vez. O judiciário, que nada fez com relação a apologia ao torturador, cometida por Bolsonaro, desta vez censurou a voz de Amelinha, ao proibir o programa. A liminar que a calou foi concedida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Tribunal Superior Eleitoral, com a justificativa de que o programa promovia uma “distopia simulada”.
Os depoimentos das torturadas na ditadura revelam que havia um sadismo particular no ato de infligir sofrimento às mulheres. Primeiro, muitas delas foram estupradas. Ou seja. A violência sexual era usada como tortura. Baratas e ratos enfiados em suas vaginas era outra “técnica” habitual. Ao dar seu depoimento sobre a tortura que sofreu no regime de opressão, a jornalista Miriam Leitão relatou que os torturadores botaram uma jiboia viva em sua cela, apagaram a luz e a deixaram lá. O presidente eleito, Jair Bolsonaro, comentou na ocasião: “Coitada da cobra!”.
Choques nos seios, no ânus e na vagina eram habituais. Muitas mulheres, como Crimeia Schmidt, foram torturadas mesmo estando grávidas. Irmã de Amelinha, Crimeia foi espancada diretamente por Ustra. Ela estava com sete meses de gestação. Ustra a tirou da cela pelos cabelos e começou dando tapas em seu rosto. Ela foi sendo arrastada pelo corredor, sempre apanhando. Desmaiou e, quando recuperou a consciência, já estava na sala de tortura, toda urinada. Era só o primeiro dia. Nos seguintes, Crimeia foi torturada pela equipe do coronel. Ustra só entrava na sala de tortura para dar uns tapas e ia embora. Este é o homem que inspira Bolsonaro e cujo rosto foi estampado em camisetas exibidas por seus filhos e seguidores durante a campanha eleitoral, sem que o judiciário achasse que fosse um problema.
O ódio das mulheres que ousam sair do lugar destinado a elas emergiu com toda a força neste momento, depois de ser reprimido nos últimos anos pelo “politicamente correto” que Bolsonaro e seus seguidores tanto abominam. Fernanda Lima é só o alvo mais recente. Haverá muitas outras. Logo depois do episódio, um site anunciou que a Globo teria decidido encerrar o programa Amor & Sexo, após o fim da temporada em exibição. A razão seria a “baixa audiência”. Seguidores de Bolsonaro urraram de gozo. É o que acontece com mulheres que enfrentam o “mito”, vociferavam. Não há confirmação oficial.
Quando começa um estado de opressão? Quando a exceção se instala? Em The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia), a excelente série de TV baseada num livro de Margareth Atwood, há um diálogo sobre isso. “Mas quando isso começou?”, pergunta a personagem. E a resposta: “Estava acontecendo aos poucos e não percebemos”.
Para quem não viu, The Handmaid’s Tale é a obra que mais reflete o momento do Brasil – e de parte do mundo. Quem só viu a primeira temporada, não deixe de assistir à toda a segunda. “Submissão” (Alfaguara), o já tão falado livro do francês Michel Houellebecq, é outra obra que hoje faz muito mais sentido do que ontem. Tanto a série quanto o livro têm na opressão das mulheres a base do regime comandado por homens. O poder é exercido a partir do controle dos corpos femininos, do sexo e da reprodução. A boa ficção só vai melhorando com o tempo, porque foi capaz de ecoar o que apenas se balbuciava nos cantos da realidade.
Há muitos começos para a eclosão do autoritarismo representado pela eleição de Bolsonaro. Um deles é a escolha da sociedade brasileira e das instituições que a compõem de silenciar sobre os crimes da ditadura, deixando de punir os assassinos, torturadores e sequestradores do regime que oprimiu o país por 21 anos e abdicando de produzir marca e memória. Naquele momento, a democracia se corrompeu e passou a girar em falso. O outro começo, este decisivo para a vitória de Bolsonaro, foi o silenciamento diante da apologia à tortura em pleno parlamento, ligando um torturador, Ustra, à tortura sofrida por Dilma Rousseff – no passado e no presente.
O terceiro começo, este talvez definitivo, foi o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), em 14 de março deste ano. Negra, lésbica e criada na favela da Maré, no Rio de Janeiro, Marielle ecoava uma multiplicidade de vozes até então silenciadas. No legislativo, ela representava as várias periferias que avançavam sobre o centro. Então a calaram com quatro tiros na cabeça.
A aterradora impunidade do crime, há mais de oito meses sem resolução, com uma investigação povoada de estranhezas e de censuras, é mais um silenciamento. No sentido simbólico das forças opressoras que se moveram nesta eleição, a execução de Marielle pode ser considerada o ato inaugural da campanha de 2018. Mais tarde, seguidores de Bolsonaro arrancariam a placa de rua que a homenageava no Rio. Dias depois, opositores espalharam mil outras placas com o nome de Marielle.
O abismo vivido pelo Brasil foi escavado por silenciamentos. Em particular pelo silenciamento das vozes de mulheres, no caso de Marielle Franco literalmente. A melhor maneira de enfrentar a opressão que se infiltra desde o cotidiano, nos pequenos atos e nas pequenas desistências, dia após dia um pouco mais, é falar. Junt@s. Mulheres e homens que amam as mulheres: “ninguém solta a mão de ninguém”. Não sabemos quando acabará. Mas o fim do que só começou – ou continuou – depende do tamanho da resistência. E da capacidade de voltar a dar significado às palavras pelo debate e pelo confronto das ideias. O Brasil não pode mais tolerar silenciamentos. Como enfrentar a opressão? Recusando-se a silenciar.
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O ataque dos machos brancos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU