18 Agosto 2018
A proposta do Ministro do STF, Alexandre de Moraes, pode ser considerada como mais um tijolo na construção da distopia de dados brasileira.
A reportagem é de Brunno Marchetti, publicada por Vice Brasil, 16-08-2018.
Desde o início de julho, com a aprovação da lei de proteção de dados pessoais no Senado, o país aguardava a tão sonhada sanção presidencial de Michel Temer. Embora ela não tenha chegado da melhor forma, o processo significou um avanço do debate em diversas esferas do poder público,. Ainda assim, parece que nem todas as autoridades entenderam muito bem o espírito da coisa.
Na segunda-feira de 30 de julho, em evento destinado a peritos criminais, o ministro do STF Alexandre de Moraes sugeriu a criação de um banco de dados genéticos da população brasileira para, além de identificação dos cidadãos, ajudar em investigações criminais. “Se você pode e deve, constitucionalmente, dar sua identificação, que é a digital, hoje mais moderno que isso é o DNA”, falou o ministro segundo o jornal Folha de S. Paulo.
Moraes relatou ter sugerido ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral que não apenas a biometria, mas também o DNA fosse coletado durante o recadastramento eleitoral. "Qual o problema de se realizar um cadastramento de DNA, que é um exame nada invasivo?”, questionou.
A pergunta do ministro pode ter sido retórica e como foi feita em um evento fechado poucos se atentaram à ela. Mas não tem problema, a gente responde mesmo assim: os problemas são bem grandes e, na prática, essa é uma ideia péssima. Se fosse colocada pra valer, criaria um problema tão grave ou pior do que o compartilhamento de dados financeiros de toda a população sem consentimento prévio.
“A medida é no mínimo desproporcional”, comentou o especialista em Direito Digital, Renato Leite Monteiro, fundador da empresa Data Privacy Brasil. No caso de usar as informações genéticas como meio de identificação, a sugestão do Ministro seria como usar uma bala de canhão para matar uma formiga, pois foge totalmente a um dos princípios básicos da proteção de dados pessoais, o “princípio da necessidade”. “Se posso atingir aquela finalidade com outro tipo de dado que é menos arriscado, devo utilizar esse dados mais seguros e isso não é uma opção, é uma obrigação”, observou Monteiro.
Ele explica que o código genético é um dado extremamente sensível, pois, além de ser um “identificador único universal” — em que cada código pertence a uma pessoa identificável —, é possível, por meio dele, descobrir uma série de outras coisas sobre o dono do DNA: o sexo, a etnia, possíveis doenças e outros dados.
Conforme aponta Monteiro, quem tiver acesso a essas informações poderia utilizá-las para fins discriminatórios. O problema já existe hoje com a questão do Score de Crédito e do Profiling, em que empresas financeiras podem avaliar o quanto você vale e a sua capacidade de pagamento de dívidas por meio de critérios que não são exatamente claros e muito menos favoráveis a você. “Imagina se essa informação cai em mãos não autorizadas e, por exemplo, elas são utilizadas por uma empresa privada. Isso pode ser desde o cálculo de uma apólice de seguro de saúde ou até mesmo a recusa a uma vaga de emprego”, comentou Monteiro.
Ele defende um banco de dados dessa natureza poderia, em um caso mais extremo, favorecer políticas de “higienização da sociedade”, uma vez que há acesso a informações étnicas que podem ser utilizadas contra a pessoa. “Se você for remeter a questões históricas, você teve um registro de todas as pessoas e suas características, por exemplo, na época que a Alemanha invadiu determinados países”, comentou.
Um caso que ilustra esse risco de limpeza aconteceu com a ocupação alemã nos Países Baixos. O país mantinha registros detalhados sobre a população desde o século XIX. O banco de dados governamental acabou por facilitar o trabalho de busca e captura de judeus no país, que teve um dos maiores índices de judeus mortos ao final da Segunda Guerra.
“Ter um banco de dados com as informações genéticas de toda a população brasileira se tornaria um alvo muito precioso para quem quisesse ter acesso a essas informações”, observou Monteiro. Para ele, manter a segurança desse banco de dados seria uma tarefa que beira o impossível e infelizmente o governo brasileiro não é exatamente famoso pela forma segura como maneja os dados da população.
A ideia do ministro também não é melhor do ponto de vista da investigação criminal. Como explica Monteiro, ela viola a presunção de inocência. “Você só pode coletar evidências ou algum outro registro se houver suspeita de que houve algum crime”, pontua.
Desde 2012 o Brasil possui uma lei que prevê a coleta de dados genéticos de pessoas que cometeram crimes hediondos ou dolosos com violência grave. Apesar da lei atual ser bem menos ampla do que a proposta de Moraes e delimitar razão e prazo para o armazenamento dos dados genéticos — a prescrição do crime —, isso não a torna menos problemática.
Como apontou o coordenador de Violência Institucional da Conectas, Rafael Custódio, “a criação de um banco de dados desse tipo acaba funcionando na prática como um banco de suspeitos preferenciais que passarão a ter o estigma de possíveis culpados durante anos, pelo menos aos olhos do Estado”.
Custódio aponta que uma das consequências dessa prática é o aprofundamento da estigmatização do que ele aponta como “cliente preferencial” do sistema penal brasileiros: os jovens, pobres e negros.
Um outro problema apontado por Custódio em relação a legislação atual é o armazenamento desses dados ser feito pelas próprios órgãos de segurança. Isso não ocorre em países com leis semelhantes para essa área, como no caso dos EUA. “É muito problemático e que pode gerar um conflito de interesses. No Brasil você não tem prevista a possibilidade de uma contra prova ou algum tipo de cuidado maior na manutenção desses dados”, argumenta.
A Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF) diz que apenas 2% dos perfis de criminosos investigados foram cadastrados no banco de dados. Ainda assim, a lei gera polêmicas até hoje e, pelo que Moraes sinalizou, pode se expandir para outros termos.
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A criação de um banco de DNA no Brasil é uma ideia tão ruim quanto parece - Instituto Humanitas Unisinos - IHU