31 Julho 2017
"Há três coisas necessárias para a beleza: integridade, harmonia e luminosidade" - Tomás de Aquino, tradução de James Joyce.
"Eles querem que você seja uma coisa só", disse Mick Jagger ao romancista William Gibson, referindo-se à própria carreira de ator. É estranho imaginar uma celebridade milionária que parece tão próxima do coração do rock and roll falando com tanta melancolia de uma ambição frustrada, como se ele tivesse tido um sonho e estivesse conformado ao sistema dominante que o impede de realizá-lo porque é assim que funciona, como se diz. O que pode impedir o vocalista dos Rolling Stones de fazer testes para atuar em uma peça em algum lugar distante ou financiar uma produção de "Rei Lear", incluir-se no elenco e colocá-la no Youtube? E quem são "eles" exatamente? São pessoas reais ou uma abstração, um fantasma, uma adaga da mente?
O comentário é de David Dark, publicado por América, 17-07-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
David Dark é professor na penitenciária feminina do Tennessee (Tennessee Prison for Women) e na Universidade Belmont, em Nashville. Seu trabalho foi divulgado na MTV News e ele é autor do livro Life’s Too Short to Pretend You’re Not Religious.
Abrigados dentro das nossas tradições sagradas, encontramos muitos mantras de cura do redirecionamento dessa neurose: a verdadeira jihad é a jihad interior. Reflita se a luz em você não é escuridão. Tudo que é visto pelos olhos está queimando. Mas o que ouço na minha cabeça quando me preocupo com quem não está do meu lado chega em forma de música: "Não existe 'eles'". É uma frase direta e sorrateira de três palavras que poderia facilmente ser um grafite, parecendo inofensivo, mas se aplicarmos à divisão partidária implacavelmente afirmada por uma tela dividida em um ciclo de 24 horas de notícias, é extremamente contracultural.
Considere o efeito dessa frase no conceito de fronteiras internacionais ou, digamos, na diferença entre um soldado estadunidense e um civil afegão, ou um policial e um ser humano negro que é declarado suspeito de repente, e alguém pode ficar incomodado. Leia este artigo religioso em voz alta em determinados contextos e você pode até sentir a projeção de um certo nível de agressividade sobre você. Como é o caso de tantas outros trechos de música (“Temos que cuidar um do outro”; “O que você achava que era liberdade era apenas ganância”; “Você não vê o que o amor fez?”; “Sonhe com o mundo em que você quer viver Dream up the world you want to live in.”), a frase "Não existe 'eles'" me vem à mente espontaneamente ao pensar na obra imortal do U2, aqueles quatro irlandeses surpreendentemente sábios que se juntaram em uma banda para criar, gravar e tocar música por mais de 40 anos.
O que fazer com o U2? Eles certamente são milionários. Desde o início, houve quem os considerasse insuportáveis, como se a sua sensatez envergonhasse a todos nós. De que se trata? Bem, a observação de Mick Jagger pode ser útil aqui. Gostamos de saber onde colocar as pessoas. Os substitutos são familiares a ponto de anestesiar a mente. Separe religião e política. Você é artista ou ativista? Sagrado ou secular? Essas divisões, sem dúvida, estão a serviço do plano de marketing de alguém, mas sabemos - como nos dizem nosso coração e nossa mente - que não é assim que funciona. Nós amamos o que amamos. Uma revelação conversa com a outra. Nossos supostos limites se desfazem ao entrarem em contato com o real funcionamento da nossa consciência.
Eu já senti isso na pele. Sendo natural de Nashville, eu gostaria de fingir que conheci a vida de Martin Luther King Jr. e a comunidade amada que o promoveu estudando criteriosamente a história e a cultura dos direitos civis. Seria uma mentira. Foi a decisão da MTV e do U2 de criar e divulgar o que se tornou um grande sucesso nas rádios, chamado "Pride (In the Name of Love)", homenageando-o por ser um pioneiro da seriedade humana (mais um em nome do amor) ao longo de uma trajetória de indivíduos que escolheram dedicar suas vidas aos outros, um desfile internacional de consciência. Aos 14 anos, eu ainda adorava Duran Duran, mas ficava no corredor de um supermercado lendo a Rolling Stone e aprendendo sobre Flannery O'Connor e Walker Percy após terem sido citado por Bono em alguma entrevista. Algo novo estava surgindo nesse coletivo artístico irlandês. Meu próprio país começou a ganhar vida para mim. Com o tempo, U2 me conectou a Leonard Peltier, Desmond Tutu e Edna O'Brien e, de forma considerável, os fatos do resto do mundo.
Eles realmente são rock stars que estão envelhecendo, mas também representam um movimento midiático de reflexão, arte, honestidade e cura. Na música pop dos anos 80, havia um processo de atenção moral à fome em massa, ao meio ambiente e à proliferação nuclear, e o U2 estava no centro, indiscutivelmente. Eu me pergunto se o fato de ainda estarem é tão intolerável para alguns que eles ainda estão lutando contra isso para todo mundo ouvir, mergulhados nas contradições de riqueza e consciência. É como se a sua urgência nos constrangesse de alguma forma, acusando o quanto desistimos de conspirar pela esperança, ou pior, nos resignamos à ingenuidade ou à nostalgia.
Esta tensão estava presente quando eu assisti sua apresentação épica no festival Bonnaroo este ano. Como nenhum outro ato popular, é como se as apresentações do U2 recomeçassem a cada performance, argumentando - em uma conversa de vendedor - sobre o valor da troca em que estão entrando ("Even Better Than the Real Thing" é como uma declaração de missão neste aspecto), mas as apostas pareceram mais altas desta vez. Era um público mais jovem que provavelmente conhecia alguns hits e que considerava "The Joshua Tree" um clássico, mas a maioria não sabia a letra e não havia como garantir a habitual chamada e resposta da qual muitas vezes o funcionamento do U2 depende.
Apesar do risco, o U2 superou a resistência desde o momento em que subiu ao palco. Sem imagens ou luzes acompanhando, eles abriram com "Sunday Bloody Sunday", convocando o público para sua invocação comunitária ("Podemos ser como um só esta noite….") e convidando os milhares a gritarem, a respeito da violência armada em Londres e Cabul: "Guerra nunca mais!" E quando prosseguiram com "New Year’s Day", ocorreu-me que só essas duas músicas, lançadas em 1983 e lembrando Pete Seeger em seu peso profético, já confirmariam o status do U2 de ato sagrado entre nós, que vale a pena celebrar e estudar dali em diante.
Mas é isso. O U2 nunca parou. É possível tentar conquistar todo o mundo pop por décadas, para realmente ver que o seu trabalho merece isso, e continuar, de alguma forma, profundo, sensato e socialmente justo ao mesmo tempo? Talvez. De qualquer forma, eles estão dispostos a pagar para ver. Recusam-se a se considerar um ato de nostalgia. Gostaríamos que se considerassem? Preferiríamos que eles parassem de defender o que amam e engavetassem seu ser criativo?
Eu não prefiro. Eles me precederam durante toda a minha vida, defendendo e ampliando a reflexão. Penso neles como um grupo de torcedores famosos- uma banda para animar a torcida - dos movimentos libertários em todo o mundo, celebrando aqueles que têm fome e sede de justiça, aqueles entre nós (Senhor, eu quero estar nesse grupo) que às vezes eles se referem como comediantes.
Para explicar: esta visão de comédia - divina comédia - está por trás de uma verdade terapêutica que Bono apresentou em um agradecimento a antifascistas no mundo todo, contra tanto o fascismo estrutural como o fascismo do coração que Bruce Cockburn se refere como "minha própria arquitetura fascista", levando-se tão a sério a ponto de não conseguir enxergar nada. Apenas um tipo profundo e implacável de comédia pode superá-lo. Lembremos que o título do álbum "Achtung Baby" foi inspirado em "Primavera para Hitler", de Mel Brooks, que tentou provocar o riso a partir da catástrofe do totalitarismo através do teatro. "Ze Führer nunca chamou ninguém de amorzinho! " protesta o dramaturgo nazista do filme. Bem verdade, porque a morte e a negação não podem se dar a esse luxo.
Falando em prol da melhor forma de fazer comédia, Bono afirma: "O riso é a evidência da liberdade". Celebrando médicos, enfermeiros, professores e voluntários, bem como poetas, dramaturgos e outros artesãos da esperança, muitas vezes ele recorre a essa antiga sensação do inesperado, aquele espírito vivaz de uma imaginação que não se cala perante os poderosos. O U2 acessa e transmite essa ideia repetidamente. Bono via isso em Nelson Mandela, um homem que passou anos de encarceramento sem se entregar ao roteiro que havia sido escrito para ele. Ao encontrá-lo, ele observou: "Há comédia nesses olhos".
Mas, em meio ao riso, o U2 é também uma banda que lamenta, que traz uma crítica profética, que nos chama a analisarmos o que estamos fazendo. Tudo isso aparece em "The Joshua Tree" como uma carta de amor aos Estados Unidos, celebrando sua promessa ("God’s Country") ao criticar sua política externa ("Bullet the Blue Sky"). Como todas as músicas da banda, elas têm contextos de onde se originam, mas assumem uma nova significação em todos os ciclos de notícias. Quando os assisti em Louisville recentemente, a música "Red Hill Mining Town" pareceu tornar-se uma espécie de hino dos refugiados, o grito de alguém em busca de abrigo ("Você é tudo o que restou para eu me segurar... Eu ainda estou esperando.").
Entre as músicas, Bono fazia comentários desafiando qualquer identidade dualista por parte do público. Dados os avanços que os Estados Unidos fizeram ao levar remédios que salvam vidas para o continente africano durante o governo George W. Bush, ele argumentou que qualquer um que pague impostos deveria se considerar uma ativista da luta contra a aids. Ainda mais interessante é que a música "Exit", uma reflexão sobre amor e assassinato, fez com que Bono assumisse um personagem que era meio Hazel Motes de Sangue Selvagem e o personagem de Robert Mitchum em "O Mensageiro do diabo". Na transição para "Mothers of the Disappeared", era como se o personagem estivesse despertando para si mesmo, deixando de estar perdido em uma espiral de vergonha envolvendo morte e destruição, reconhecendo-se como parte do todo humano.
Isso nos faz voltar à frase "Não existe 'eles'". Esta doutrina de imparcialidade ficou na minha mente em Louisville naquela noite, porque foi lá que Thomas Merton fez uma das suas realizações mais famosas. Na esquina das ruas Fourth e Muhammad Ali (antiga Walnut Street), ele viveu uma epifania do riso. Sem aviso, de repente, achou estranhamente impossível considerar aleatórios os estranhos que passavam na rua, debaixo dele, ou significativamente separados dele: "De repente, me emocionei ao perceber que eu amava todas aquelas pessoas, que elas eram minhas e eu era delas, que não podíamos ser estranhos uns aos outros, apesar de sermos totalmente desconhecidos. Era como acordar de um sonho de separação, de um falso isolamento de mim mesmo." De repente, ele tinha profunda certeza de que "toda a ilusão de uma existência sagrada separada é um sonho".
Eu acho que o dom da visão ("Visão sobre a visibilidade", como diz a música "Moment of Surrender") que o U2 traz para o nosso mundo é parecido com isso. Por ter os assistido no dia 16 de junho, não posso deixar de mencionar que essa visão também é profundamente familiar à do seu conterrâneo irlandês James Joyce, cujo Ulisses também busca sacramentar todos os dias através desse dia: 16 de junho, Bloomsday. É através desse dia que somos convidados a imaginar todos os outros, cada belo dia, como um presente que não podemos deixar passar por falta da devida reverência.
Com grande reverência, podemos dizer, vem uma grande responsabilidade. E chamá-la de responsabilidade social seria uma redundância, porque na visão do U2, assim como na do grande mandamento, a falsa distinção entre amor ao próximo e amor a si mesmo já foi destruída. Pode ser vislumbrado, este ser essencial, essa imagem divina dentro de cada um, essa alma. Mas não comprovado ou pregado. Só pode ser demonstrado e cantado - testemunhado e proferido como uma forma de ver. Ou nas palavras de Merton: "Não tenho programação nenhuma para essa visão. É apenas concedida. Mas o portão do céu está em toda parte".
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Por que o U2 irrita tanta gente? Um olhar sobre sua luta pela música pop e pela justiça social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU