28 Março 2018
A difusão de notícias falsas nas redes sobre a vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada no Rio de Janeiro na noite de 14 de março, é vista por pesquisadores como uma prévia de como poderá ser o ambiente digital durante a campanha eleitoral no Brasil em 2018.
"Se alguém ainda tinha dúvidas de que as redes sociais vão ser um território de disputa fortíssima de narrativas durante as eleições, o caso dos boatos sobre Marielle mostrou que as redes serão, sim, um tremendo campo de batalha", diz Marco Ruediger, diretor de um grupo da FGV que analisa as redes sociais, a Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV DAPP).
A reportagem é de Juliana Gragnani, publicada por BBC Brasil, 27-03-2018.
Segundo a instituição, Marielle foi tema de 2,14 milhões de tuítes entre a noite de 14, quando ela e o motorista Anderson Gomes foram assassinados, e a meia-noite de domingo, 18 de março. Para efeito de comparação, ainda de acordo com dados da FGV, o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff atingiu 1,5 milhão de menções no Twitter, mas no período de um dia.
Ruediger diz que a dinâmica nas redes sociais durante as eleições brasileiras serão "centrais e paradigmáticas" no mundo, vistas como um "case" global de democracia e redes sociais, considerando as notícias falsas espalhadas no Brasil e as recentes polêmicas envolvendo o Facebook, após a revelação de que dados privados de mais de 50 milhões de usuários foram usados para fins políticos.
"Veremos uma disputa nas redes entre esquerda e direita e uma disputa das plataformas para mostrarem que papel podem exercer", afirma.
Mark Zuckerberg, presidente do Facebook, afirmou na semana passada que as eleições no Brasil são uma das preocupações da rede social.
Para entender o que pode acontecer durante as eleições com base no que se viu das notícias falsas sobre Marielle e pensar em possíveis soluções, é preciso começar traçando uma linha do tempo.
As notícias falsas sobre a vereadora se difundiram de maneira já tradicional nas redes: começaram no WhatsApp, aplicativo de mensagens fechado onde não é possível detectar a origem de notícias falsas, e depois foram parar no Twitter e no Facebook. Também houve boatos publicados em vídeos do YouTube.
"A construção do boato me pareceu sofisticada e planejada. Foi uma pequena amostra do jogo sujo que veremos na campanha eleitoral deste ano", opina Pablo Ortellado, pesquisador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da USP.
Os boatos com diferentes textos, áudios, fotos e vídeo tentavam ligar Marielle com o tráfico. Depois do WhatsApp, as notícias falsas chegaram às redes sociais na noite de quinta, 15 de março, um dia após o assassinato da vereadora, e, com mais força, na manhã de sexta, 16 de março.
Um dos primeiros tuítes com uma notícia falsa sobre Marielle, identificado pela FGV DAPP, foi às 10h45 de sexta, 16. Um usuário reproduz um vídeo, sem qualquer relação nas imagens com Marielle, mas ligando "garotos de chinelo sem camiseta" ao Comando Vermelho e afirmando que Marielle era ex-mulher do traficante Marcinho VP. A informação é falsa.
No próprio dia 16, entrando na onda dos boatos, o deputado federal Alberto Fraga (DEM-DF) e a desembargadora Marilia Castro Neves reproduziram e reiteraram as notícias falsas em suas páginas no Twitter e no Facebook.
Estudo da FGV mostra grupos no Twitter que deram resposta às notícias falsas e grupos que as difundia (Foto: BBCBrasil.com)
A partir daí, observa Ortellado, da USP, "o principal vetor de difusão foram os sites de notícias, inclusive os da grande imprensa, que publicaram matérias na noite do dia 16".
Isso porque alguns veículos da imprensa publicaram reportagens com títulos que relatavam as publicações do deputado e da desembargadora, deixando claro apenas no texto que as autoridades estavam replicando, na realidade, uma notícia falsa. "Assim, mesmo quando eram compartilhadas com intenção de mostrar que as alegações eram absurdas, elas terminavam ajudando a difundir o boato, agora validado por uma autoridade do Judiciário", observa o pesquisador.
Para ele, "como uma parcela expressiva dos usuários" se informa somente pelos títulos de reportagens, eles "precisam ser informativos e completos". "Ou seja, não devemos supor que os leitores lerão a matéria completa."
Quando as notícias falsas vêm acompanhadas de endereços de sites – de veículos confiáveis ou não – "cria-se a ilusão de que o boato tem alguma evidência", diz a pesquisadora Jieun Shin, da Universidade do Sul da Califórnia.
Ela estudou os padrões temporais de boatos que circularam no Twitter em 2012, durante as eleições presidenciais americanas. Por meio de sua pesquisa, chegou à conclusão de que os boatos voltam às redes em épocas diferentes e com roupagens diferentes. E que sites colados às notícias falsas acabam dando maior respaldo a elas. "Quando as pessoas leem notícias ou histórias nas redes sociais, elas não costumam clicar no link ligado à postagem."
A pesquisadora sugere que veículos de imprensa ou agências de checagem de fatos não repitam "alegações falsas" em títulos. "Exemplo: Não diga 'Obama não nasceu no Quênia', diga 'Obama nasceu no Havaí", afirma, citando uma das notícias falsas que circularam sobre o ex-presidente americano.
A boa notícia, segundo relatório da FGV DAPP, é que a onda de desmentidos posterior às notícias falsas superou sua propagação. A instituição analisou tuítes sobre Marielle da noite do dia 14 até a meia-noite de domingo, 18 de março. Na noite de sábado, 17, os tuítes com desmentidos dos boatos alcançaram um pico e representaram quase o dobro dos tuítes que propagavam as notícias falsas, que acabaram minguando.
Levantamento do Monitor da USP mostra que uma reportagem do Aos Fatos, uma agência de checagem de fatos, foi uma das mais compartilhadas na rede, com 30 mil compartilhamentos. A publicação dizia no título: "Não, Marielle não foi casada com Marcinho VP, não engravidou aos 16 e não foi eleita pelo Comando Vermelho".
Segundo Tai Nalon, jornalista e diretora do Aos Fatos, o site teve recorde de acessos com a publicação – um milhão só no fim de semana.
"Quando as notícias falsas estão restritas ao WhatsApp, não temos como saber para quem estão chegando. Temos dificuldade de entender qual é o alcance das notícias falsas e, se checando as informações, vamos acabar dando mais evidência aos boatos em vez de fazer o 'debunking' (quando se 'derruba' uma notícia falsa)", diz.
"A diferença é que, nesse caso, vimos que os boatos ultrapassaram todas as bolhas. As mensagens estavam sendo compartilhadas por WhatsApp e em outras redes, e nós deduzimos que tinham relevância."
Estudo da FGV mostra que onda de desmentidos alcança um pico muito maior que o alcançado pelos boatos no Twitter (Foto: BBCBrasil.com)
O relatório da FGV DAPP mostra que, entre 14 e 18 de março, o grupo que difundiu as respostas sobre notícias falsas e cobrou punições a quem difundia o conteúdo no Twitter era majoritário – 73% do total. O grupo que difundiu notícias falsas ou criticava aqueles que não protestam quando policiais morrem compunham 22% do total.
Marco Ruediger, da FGV, diz que o debate rompeu "a polarização muito tradicional da sociedade brasileira vista desde 2014" porque Marielle representava "temas e valores transversais". Para ele, um indicativo de que "parte do centro conservador não compra a 'agenda' mais radicalizada de um setor da direita".
"A divisão dos partidos foi superada e a polarização perdeu terreno. Isso aponta que talvez uma das chaves para o sucesso eleitoral de propostas não é a insistência na polarização dos campos, mas sim a discussão de temas transversais à sociedade brasileira, focada em valores", afirma.
Os dados também mostram, de acordo com ele, que os robôs e a propagação de notícias falsas têm um papel grande, mas não necessariamente vão hegemonizar a discussão durante as eleições. "Pode haver um levante contra a propagação de notícias falsas na medida em que afeta valores mais porosos à sociedade brasileira."
Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), diz que "houve uma sincronização de muitas redações, blogs, sites alternativos, boa parte da classe política e os ótimos serviços de checagem de fatos (incluindo aí os colaborativos, feitos por usuários não jornalistas) para desmentir boatos, denunciar outros e ser mais pronunciativos quanto ao assassinato de Marielle e Anderson".
Mas, segundo sua análise, as checagens de fatos - embora em grande quantidade, como ressalta o relatório da FGV - não penetraram nas bolhas de polarização política nas redes, tanto à esquerda quanto à direita. Segundo ele, os boatos minguaram mais por causa das denúncias feitas por usuários contra a desembargadora Marilia Castro Neves, que virou "arquétipo da mentira".
Também se reduziram após uma "nuvem de criminalização" - ameaças de processos a quem estava espalhando as notícias falsas. Esses dois fenômenos serviram como ponte entre os desmentidos e as bolhas polarizadas mais que a própria checagem de fatos. Malini diz que, por isso, "é preciso criar pontes" com veículos nas redes que não possuam, necessariamente, "uma linha editorial que não se socorre no princípio da imparcialidade". "Eles hoje representam grandes audiências e não é possível deixá-los de fora de um pacto informativo. É preciso pontificar aí nesse terreno", afirma.
Pesquisa Datafolha realizada no Rio em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que notícias falsas sobre Marielle chegaram à maioria dos entrevistados – o boato de que era casada com Marcinho VP, por exemplo, alcançou 60%. Mas a maior parte das pessoas conseguiu identificar as notícias como falsas. No caso do boato sobre Marcinho VP, 45% do total dos entrevistados haviam identificado a notícia como falsa, 6% como verdadeira e 9% não sabia avaliar.
A pesquisa também mostrou uma tendência um pouco maior, por parte de quem era favorável à intervenção federal no Rio, de avaliar os boatos como verdadeiros. Foram entrevistadas 1.012 pessoas nos dias 20 ao 22 de março, com margem de erro de 3 pontos percentuais para mais ou para menos.
Mas o fato de que os desmentidos superaram os boatos em quantidade não significa que veremos a mesma coisa durante as eleições, repletas de "propostas mais granulares" e com vários candidatos, observa Ruediger. "A difusão de informações não vai ser centralizada em um único caso, então a identificação de notícias falsas não vai ser tão fácil", afirma.
Além disso, as campanhas políticas têm um preparo prévio, diferentemente do que aconteceu com o assassinato de Marielle, uma notícia inesperada. "Acho que as tentativas de todos os campos de manipularem com informações falsas ou enviesadas o debate político vão ser mais sofisticadas."
A publicação no Facebook com maior compartilhamento, ainda segundo análise do Monitor, grupo da USP, era uma da página Ceticismo Político, promovendo o posicionamento da desembargadora que associou Marielle ao tráfico de drogas. A página, segundo reportagem do jornal O Globo, tinha ligação com o MBL (Movimento Brasil Livre). O MBL nega.
No fim de semana, o Facebook retirou a página do Ceticismo Político do ar – seu criador tinha um perfil falso na rede social, o que viola suas normas.
O grupo da FGV também monitorou os tuítes sobre Marielle associados aos presidenciáveis. Até quarta, 21, ou seja, uma semana depois do crime, a instituição identificou 156,8 mil postagens no Twitter associando Marielle aos possíveis candidatos, "com notável presença de referências ao único dos principais candidatos que não se manifestou – Jair Bolsonaro". O levantamento não detalha o teor dos tuítes.
Um assessor do deputado federal do PSL afirmou ao jornal Folha de S.Paulo que ele não se pronunciaria sobre o assassinato de Marielle porque sua opinião sobre o fato "seria polêmica demais", provocando reação nas redes.
Foram 80,9 mil publicações mencionando Bolsonaro ou seus filhos políticos e a vereadora – quase um quinto de todo o debate sobre o deputado naquela semana. Temer e Lula também foram objeto de tuítes associados a Marielle, com 34,4 mil e 44,2 mil, respectivamente.
Análise da FGV mostra análise de difusão de notícias falsas no caso Marielle (Foto: BBCBrasil.com)
É possível aprender com um caso como o das notícias falsas sobre Marielle, pensando na campanha eleitoral de 2018. Pesquisadores dão sugestões sobre como governo, imprensa e leitores podem combater as notícias falsas.
A pesquisadora americana Jieun Shin, da Universidade do Sul da Califórnia, aprendeu com seus estudos sobre a campanha presidencial nos Estados Unidos. Ela diz que, a longo prazo, os governos devem investir na promoção de "alfabetização midiática", ou seja, dar à população noções e conhecimento sobre meios de comunicação e novas tecnologias, além de "enfatizar a reflexão crítica, especialmente para jovens consumidores".
Quando os boatos sobre Marielle estavam circulando, o Conselho Nacional de Justiça publicou no Facebook dicas de como identificar notícias falsas: "Não tem fonte? Não repasse", "Pesquise outra fonte", "Leia a notícia inteira", "Está em dúvida? Não repasse".
Campanha do Conselho Nacional de Justiça explica o que fazer quando se recebe boatos pelo celular (Foto: BBCBrasil.com)
Marco Ruediger, da FGV, diz que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) deve ampliar e fortalecer sua capacidade de monitoramento das redes sociais durante as eleições, "estabelecendo parcerias mais amplas com gente da sociedade civil". 0,Ele mesmo participa de um grupo criado pela corte no ano passado para estudar a influência das redes sociais no pleito. "O TSE precisa ter regras mais claras para a difusão de notícias falsas", afirma, "mas com muito cuidado para não invadir a liberdade de expressão".
Para Ruedigar, no caso das notícias falsas sobre Marielle, "o mais significativo foi que ninguém se calou". "Teve uma quantidade enorme de influenciadores, celebridades, políticos, partidos se manifestando contra essas notícias falsas e extremamente toscas. O engajamento e o fato das pessoas não se calarem e colocarem determinados limites sobre o que é razoável e o que não é foi algo muito importante. Não foi censura, foi uma exposição de alta transparência."
Para Tai Nalon, do Aos Fatos, o jornalismo precisa se atentar ao fato de que "a indústria das 'fake news' se apropriou da linguagem jornalística, transformando a linguagem da propaganda e da desinformação em uma semelhante ao do jornalismo de qualidade". "Eles 'hackearam' a linguagem do jornalismo e se utilizam disso para propagar informações com ares de credibilidade. O jornalismo talvez tenha que se diferenciar pensando em novas formas de apresentar a informação."
Malini, da Ufes, faz uma reflexão sobre as notícias falsas que poderemos ver circular durante as eleições. "Sempre onde existir política, haverá o rumor. Por motivos simples: a política se move na incerteza, nos arranjos, nas negociações, no jogo de presença e ausência. Não acredito então que a notícia, iniciada como rumor, e depois confirmada ou não como verdadeira vá desaparecer. E muito menos a desinformação criada ao redor delas pelas militâncias", afirma.
"Creio que teremos eleições tóxicas. Isso vai acabar criando um certo afastamento do eleitor médio das redes sociais. Por conseguinte, os sites com linhas editoriais mais dentro da polarização tradicional eleitoral (sobretudo no segundo turno) devem continuam ganhando no número de viralidades, apesar da descoberta, dia a dia, que esta é artificializada por causa de 'bots' humanos, contas anônimas com função de replicar mensagens", acrescenta.
"Tanto a acusação preliminar de quem havia matado Marielle e Anderson eram milicianos, quanto as trágicas notícias falsas caça clique relacionando a vereadora a bandidos, são produtos da mesma dinâmica: a alta carga viral emocional que recebemos com tantos vídeos, fotos, gifs, textos e lives sobre o caso. Nosso maior dos aprendizados é tentar reduzir a ansiedade e manter equilíbrio emocional, mesmo que existam fluxos de raiva, indignação e medo."
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Como combate a mentiras sobre Marielle superou racha ideológico e pode antecipar guerra eleitoral nas redes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU