22 Março 2018
“O primeiro ato de resistência moral e política de um progressista digno do século XXI consistiria em fechar imediatamente sua conta no Facebook. Isto, no entanto, parece ser mais árduo que obrigar os diretores da rede social a ser mais responsáveis. Estamos diante de uma aliança liberal ultraconservadora pactuada entre setores políticos e companhias tecnológicas. É uma guerra ideológica sem bombas e devemos deixar de ser os cordeiros inocentes que contribuem às vitórias de seus verdugos”, escreve o jornalista Eduardo Febbro, em artigo publicado por Página/12, 21-03-2018. A tradução é do Cepat.
A crise da primeira rede social do planeta é um ato de justiça que a humanidade merece. O oportunismo delirante dos responsáveis pelo Facebook, o revitalizado projeto político da direita radical e a cumplicidade alucinante dos usuários configuraram um dos roubos e violações mais desastrosos da história da humanidade. Desculpe-me os tecnogenéticos, Facebook e as demais empresas do ramo roubaram uma ideia maravilhosa, a Internet, com a única finalidade de ampliar a dominação liberal do mundo.
O Ocidente cresceu junto com a colonização e agora as redes modernas reinventam uma nova forma de colonização: já não se trata mais de colonizar um território, mas, ao contrário, a rede é o território mediante o qual o liberalismo ampliou a nova colonização.
Silicon Valley é um sistema ditatorial fechado e não um paraíso de onde saem os conceitos de uma humanidade renovada. Os algoritmos do Facebook têm duas finalidades: formatar, censurar, manipular, dirigir, expandir-se e fazer dinheiro. Pouco importa ao senhor Mark Zuckerberg nossas alegrias, nossos prantos ou nossos segredos: só o move a fome de ver suas ações subir e subir. Na rede, nossas vidas são moedas que se acumulam e não perfis de uma humanidade que compartilha suas paixões e relações.
A passividade dos usuários diante das contínuas revelações sobre o rompimento massivo da intimidade e a monetização de seus dados pessoais, a inoperância dos sistemas jurídicos de mastodontes autofelicitados como a União Europeia, a incapacidade ou a vagância diante do desafio de criar redes sadias e alternativas, a fragilidade dos Estados do Sul e o atraso das esquerdas quando se trata de refletir sobre as novas tecnologias e os desafios que estas introduzem na liberdade humana e na reformulação do modelo social, a fascinação diante do brinquedo e o projeto da direita planetária se misturam em uma dança mortífera.
Na crise do Facebook são combinados todos os ingredientes que demonstram sua pusilanimidade e sua indiferença diante daqueles que foram os arquitetos de sua riqueza, ou seja, os usuários. As revelações que o ex-agente da NSA (Agência Nacional de Segurança), Edward Snowden, difundiu em 2013, no jornal The Guardian, já haviam provado fartamente a conivência de Google, Apple, Facebook, Yahoo! e Microsoft com os serviços de inteligência ou setores privados que fazem dinheiro com os dados pessoais ou promovem ideologias retrógradas. Tudo acabou em um grande silêncio que este escândalo retira das catacumbas da indiferença.
O caso é de uma gravidade destrutora: trata-se nada mais e nada menos de empresas privadas que usaram os dados de 50 milhões de usuários do Facebook com a meta de manipular politicamente os cidadãos. A direita mais velha venceu os progressistas das tecnologias e os poetas das ideologias.
Nos Estados Unidos, a consultora Cambridge Analytica obteve e se serviu dos dados como arma de influência na campanha eleitoral de Donald Trump. Na Grã-Bretanha, a filial da Cambridge Analytica, Strategic Communication Laboratories (SCL), especializada nas acreditadas “estratégias de influência” destinadas a organismos governamentais e setores militares, procedeu de forma igual. Apoiou-se nos dados para virar o referendo sobre a permanência da Grã-Bretanha no seio da União Europeia para o lado do Leave, ou seja, o já conhecido Brexit.
Caso se olhe bem as coisas, Facebook e o Big Data presidem a reconfiguração da política mundial, marcada nos últimos dois anos pelo Brexit e a eleição de Trump. A ultradireita navega à vontade. Cambridge Analytica usa a massa dos Big Data para confeccionar um bolo de mensagens e formatos de grande alcance.
Em 2014, o pesquisador Aleksandr Kogan (Cambridge) teve a ideia de criar um teste de personalidade que foi respondido por quase 300.000 usuários do Facebook. Esses dados e todos os links que vão com eles foram remetidos por Kogan para a Cambridge Analytica. Esta empresa também desempenhou um papel preponderante nas eleições do Quênia e, depois, nas primárias do Partido Republicano, nos Estados Unidos, em favor de Ted Cruz. E se ainda restam inocentes que persistem em fechar os olhos diante da vitória esmagadora da direita mundial com a ponte das novas tecnologias, bastaria acrescentar que o principal acionista da Cambridge Analytica não é outro que Robert Mercer, um bilionário de perfil discreto que também é acionista do portal de extrema-direita Breitbart News. E não é tudo: no conselho administrativo da Cambridge Analytica aparece outro ultradireitista distinto: Steve Bannon, o novo ídolo dos populistas globalizados e ex-diretor da campanha eleitoral de Trump.
Os apóstolos do racismo, da xenofobia, da identidade nacional como declaração de guerra, da soberania excludente, da censura, do fechamento das fronteiras e da guerra comercial se deslizaram nos infinitos lençóis da tecnologia para nos oferecer o pesadelo do Brexit, de Trump, da violência contra o outro e das visões mais atrasadas e tóxicas que a humanidade pôde conceber, desde princípios do século XX.
A direita obteve uma brilhante vitória apocalíptica graças, também, não apenas ao Facebook e seus aliados, mas a nossa preguiça quando se trata de introduzir em nossa análise e utilização das tecnologias a variante política. Atuávamos como crianças com um presente de Natal, enquanto o monstruoso Papai Noel conquistava e manipulava nossa inocência. Facebook deu provas de sobra acerca de sua imobilidade, negligência e cumplicidade.
Os algoritmos do Facebook têm uma repercussão perversa e expõem a pertinência da relação entre democracia e rede social. As redes nos vendem e delineiam uma espécie de relação que encoraja compromissos cujos resultados são depois reutilizados por outros setores na sempre reatualizada cruzada colonizadora da consciência humana.
Rob Sherman, chefe adjunto do Departamento de Privacidade do Facebook, disse que a empresa se compromete “fortemente com a proteção dos dados dos usuários”. Uma brincadeira retórica de mau gosto. Prova disso, Facebook não era inocente: há três anos, se “inteirou” do roubo de dados pela Cambridge Analytica... mas não encerrou a conta até o último dia 17 de março.
Não resta a menor dúvida de que, na Argentina, Facebook serviu e serve com os mesmos fins ao liberalismo governante. O primeiro ato de resistência moral e política de um progressista digno do século XXI consistiria em fechar imediatamente sua conta no Facebook. Isto, no entanto, parece ser mais árduo que obrigar os diretores da rede social a ser mais responsáveis. Estamos diante de uma aliança liberal ultraconservadora pactuada entre setores políticos e companhias tecnológicas. É uma guerra ideológica sem bombas e devemos deixar de ser os cordeiros inocentes que contribuem às vitórias de seus verdugos.
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O liberalismo coloniza na rede - Instituto Humanitas Unisinos - IHU