20 Dezembro 2017
A razão teológica da assembleia da "Chiesa di tutti Chiesa dei poveri". O Evangelho não é a disciplina, não é a doutrina nem a letra das Escrituras, mas é o dom de Deus a todos os homens começando pelo sofrimento de todos os excluídos. Viver na prática da reconciliação messiânica.
O artigo é de Giuseppe Ruggieri, publicado por Chiesa di tutti Chiesa dei poveri, 02 -12-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nas palavras de Jesus com a mulher samaritana: "Mas a hora vem - e agora é – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade: porque o Pai procura a tais que assim o adorem”, está marcado um começo: com o Jesus Messias inaugura-se uma nova forma de relacionamento com Deus. Para dizer a verdade, somos nós que o chamamos de Deus, mas Jesus não o chama de Deus, mas "Pai", aliás, Abbá, papai. Isso já nos permite entender o que desencadeia esse começo: não uma relação entre estranhos, nem mesmo entre criatura e criador, mas uma relação que recende à intimidade entre pai e filhos dentro da própria casa, da casa comum (como a chama o quarto evangelho) que o Pai estabelece com aqueles que o amam.
Mas se lermos não só o Evangelho de João, descobriremos que a Bíblia fala de começo outras vezes. Esse começo é sempre novo, ou melhor, sempre em movimento. O Gênesis coloca o início da criação em si: "No princípio Deus criou o céu e a terra". Mas, depois, o Evangelho de João o transfere e coloca no próprio Deus, para indicar a vida íntima de Deus onde já existe, desde toda a eternidade, a palavra de que se tornará um homem como nós, "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus que estava no princípio com Deus; todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez".
Mas o Evangelho de João move o início novamente com as palavras que acabamos de mencionar: "Mas a hora vem - e agora é – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade: porque o Pai procura a tais que assim o adorem”. Aqui novamente é indicado o início e esse início surge quando a verdade que é Jesus de Nazaré (porque ele manifesta o que era em Deus desde o início), é comunicada com o poder do Espírito. Então surge uma nova morada onde Deus encontra o homem. Essa morada já não é mais algum templo construído pelo homem, seja em Jerusalém ou na Samaria, em nenhuma das nossas igrejas de pedra. É uma morada criada pelo Espírito, mas real. É construída cada vez que um homem e uma mulher acolhem em suas vidas esse início, e assim adoram a Deus em Espírito e verdade, alcançando o começo de tudo, de tudo que existe.
O convite para entrar na casa do Pai, rico em misericórdia, agora nos é dirigida pelo Papa Francisco, Bispo de Roma, que vem "do fim do mundo". Todos temos a percepção, mesmo aqueles que recusam o convite do Papa Francisco, que está acontecendo algo novo, um novo começo. Onde está a novidade desse convite? Se nós não a percebemos, corremos o risco, apesar de tudo, de ficar carrancudos assistindo à festa que se celebra na morada do Pai através da janela, do lado de fora da casa, como aconteceu com o filho justo e obediente da parábola que não queria entrar na casa do Pai onde tinha sido organizada uma festa para o filho perdido que tinha sido reencontrado.
A novidade do Papa Francisco não está na reforma da Cúria. A Cúria, como tal, não pode ser reformada, a menos que se trate de remover o que o Papa Bento chamava de sujeira. Para isso, basta uma equipe dos bons costumes. Mas os poderes da cúria são aqueles que o papa advogou para si, retirando-os dos bispos ao longo do segundo milênio. Deve, portanto, ser reformado o papado. E para essa reforma o Papa Francisco acabou de dar a largada com duas grandes resoluções, retirando da cúria (ou seja, de si mesmo) o poder exclusivo da declaração da nulidade dos casamentos e da tradução da Bíblia.
A novidade do Papa Francisco não está nem mesmo no fato de dormir fora do palácio ou dos muitos outros gestos que fazem manchete na mídia. A novidade reside no fato de que é um convite para a festa com aqueles que anteriormente eram excluídos. Depois de tantos anos, na verdade desde a época jubilosa de Papa João e do concílio que ele tinha convocado contra todos os profetas da desgraça, aos poucos se tinha infiltrado o medo, pai de todas as condenações, exclusões e suspeitas. A atmosfera dentro da Igreja havia esfriado até quase se tornar glacial, como havia claramente percebido Karl Rahner. O evangelho não transmitia mais o mesmo calor que espalhava principalmente na virada dos anos 1960, quando na Sé de Pedro sentava um papa idoso, mas com a coragem de realizar um concílio. É verdade que, por vezes, ressoava o grito "não tenham medo". Mas esse grito muitas vezes escondia a rigidez da lei, o retorno aos frios gabinetes de um edifício onde se infiltrava o gelo das condenações e das exclusões.
O convite do Papa Francisco, ao contrário, é justamente este aqui: redescobrir a alegria do evangelho. É o evangelho anunciado por Jesus, para entrar em um reino onde entram todos aqueles que as igrejas de então, as sinagogas, não acolhiam porque eram doentes, aleijados, cegos, mudos, pecadores e pobres que nem sequer conheciam a lei, mas estavam sedentos por justiça. Esse evangelho não é uma doutrina por mais elevada e refinada que seja, não é uma disciplina que os homens estabelecem para defender a pureza de suas assembleias, mas é "o poder de Deus" (Rm 1, 16), que age no coração do homem " palavra de Deus que opera em vós (energheitai), os que crestes" (cf. 1 Ts 2, 13), assim como operou no coração de Jesus.
O desconforto que muitos, até mesmo bispos, advertem diante desse convite é que eles estão acostumados a confundir o evangelho com a doutrina e a disciplina da Igreja. Por isso ficam escandalizados, até suspeitam do Papa por heresia, por sua exortação pós-sinodal Amoris laetitia, com a qual a concessão da Eucaristia aos divorciados é regulada não pela lei, mas pelo discernimento pastoral da situação das pessoas. Eles confundem, de fato, uma disciplina, típica da Igreja ocidental do segundo milênio de sua história, com a verdade de sempre.
Agora, é verdade que a doutrina e a disciplina, mesmo que não sejam eternas, são necessárias. Nenhuma comunidade pode abrir mão delas. Doutrina e disciplina, como a Lei para o piedoso Israel, colocam ao resguardo, preservam a ternura de um relacionamento. Por essa razão elas não podem obscurecer a luz do evangelho, elas não podem impedir sua força, em vez disso devem mediá-la, comunicá-la.
O evangelho não é mesmo idêntico à letra das Sagradas Escrituras. É a própria força do amor de Deus pelo homem na sua comunicação. O concílio havia afirmado que a revelação desse evangelho ocorre como um convite à amizade pelo Deus trino (Dei Verbum 2: "Em virtude desta revelação, Deus invisível, na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles"). Este é o evangelho que anunciava Jesus de Nazaré, derrotando o mal que escravizava o homem, curando as doenças, readmitindo os excluídos de todos os tipos à sua mesa, para fazê-los sentir o calor do Pai, que envia a chuva sobre os justos e injustos. Podemos até dizer que o evangelho foi o próprio Jesus, precisamente porque o Jesus que conhecemos através dos Evangelhos foi o dom total do Pai aos homens, e nele, segundo a belíssima expressão da Carta aos Colossenses, "habita corporalmente toda a plenitude de Deus" (col 2,9). Observe-se bem o "corporalmente", porque Jesus era o evangelho, a comunicação eficaz do amor do Pai, não só nas profundezas de seu ser, mas em seu próprio corpo. É por isso que os Sinópticos nos dizem que diante do choro de uma pobre viúva pela morte de seu único filho, diante da visão do povo errante como ovelhas sem pastor, ou diante de um leproso que ajoelhado implorava-lhe para ser purificado, Jesus ficou "possuído de íntima compaixão" (esplagnisthe, traduzindo assim o termo do Antigo Testamento que indica o amor materno de Deus, rehem/rahamim, o útero, o ventre materno). O Papa Francisco, portanto, justamente chamou a sua exortação programática de "alegria do Evangelho", porque o evangelho com seu poder só pode causar alegria.
A força dessa alegria que recebemos ao acolher em nós o evangelho nos leva então para expandi-la, torna-nos, como sempre repete o Papa, "Igreja em saída", que "experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, a precedeu no amor (cf. 1 Jo 4,10), e por isso pode dar o primeiro passo, sabe como tomar a iniciativa, sem medo, para ir ao encontro, procurar os mais distantes e chegar às encruzilhadas para convidar os excluídos. Vive um desejo inesgotável de oferecer misericórdia, fruto de ter experimentado a infinita misericórdia do Pai e sua força difusora. Ousemos um pouco mais tomar a iniciativa! Como resultado, a Igreja pode "se envolver". Jesus lavou os pés de seus discípulos. O Senhor se envolveu e envolve os seus fiéis, colocando-se de joelhos na frente dos outros para lavá-los. Mas logo depois ele diz a seus discípulos: "Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes" (Jo 13,17). A comunidade evangelizadora entra através de obras e gestos na vida cotidiana dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se até a humilhação se necessário, e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Aqueles que anunciarem o Evangelho assim terão o “cheiro de ovelhas” e estas ouvem a sua voz. (EG 24)
Doutrina e disciplina são apenas funcionais para a comunicação desse evangelho, devem ser alimentadas pelo espírito de Jesus, o Messias, caso contrário, como afirma Paulo, a letra mata. Mas a hora vem - e agora é – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade do evangelho que é Jesus.
Jesus não veio para os sãos, mas para os doentes. Ouvimos o que nos fala Mateus Passando por ali, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado na coletoria, e disse-lhe: "Siga-me". Mateus levantou-se e o seguiu. Estando Jesus em casa, foram comer com ele e seus discípulos muitos publicanos e "pecadores". Vendo isso, os fariseus perguntaram aos discípulos dele: "Por que o mestre de vocês come com publicanos e ‘pecadores’? " Ouvindo isso, Jesus disse: "Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Vão aprender o que significa isto: ‘Desejo misericórdia, não sacrifícios’. Pois eu não vim chamar justos, mas pecadores".(Mt 9: 9-13).
Quantas vezes lemos essa passagem, mas não é tão óbvio que a compreendemos em toda sua extensão. Em primeiro lugar, aprendemos que Jesus tinha uma casa, uma moradia. Talvez não fosse de sua propriedade, mas, entretanto, percebemos que a brincadeira com a qual respondeu a alguém que queria ser seu discípulo, isto é, que ele não tinha onde reclinar a cabeça é uma hipérbole. Jesus não foi apenas um profeta itinerante, mas também teve uma casa. Nessa casa, que é a morada de Deus entre os homens, ele convida um cobrador de impostos. Por que acolher um cobrador de impostos? Isso talvez signifique que eu deveria ter recebido em minha casa os maiores cobradores de impostos da minha Sicília, até aqueles em conluio com a máfia? Mas, ao contrário destes últimos, que ninguém teria banido da Igreja se quisessem ir, no tempo de Jesus os publicanos eram excomungados porque a serviço dos romanos e não podiam frequentar a sinagoga, ou seja, eram pecadores e excluídos do convívio das pessoas de bem. Mas também eram igualmente excluídos os pobres que ignoravam a lei, os leprosos que Jesus tocava com as mãos, e todos aqueles que eram acometidos por doenças consideradas vergonhosas, porque claramente sinal do domínio de Satanás sobre seus corpos. Esse mundo inteiro, e era a maioria da população judaica na época de Jesus, era o mundo dos excluídos. Eles nem sequer tinham o direito de oferecer sacrifícios, porque isso teria profanado o altar. Mas Jesus derrama sobre eles a vontade do Pai que não quer sacrifícios, mas dá e quer misericórdia. E assim a casa de Jesus torna-se a casa daqueles que são excluídos.
Em um capítulo maravilhoso do livro, infelizmente já não mais à venda, Gesù prima del cristianesimo (Jesus antes do Cristianismo, ndt) Albert Nolan, um dominicano da África do Sul e que inspirou o mais famoso documento de condenação do apartheid, descreve esses excluídos, sofredores, pecadores, “a quem Jesus dirige sua atenção. Os nomes usados nos Evangelhos são tantos: pobres, cegos, aleijados, coxos, leprosos, famintos, miseráveis (aqueles que choram), pecadores, prostitutas, cobradores de impostos, demoníacos (aqueles possuídos por um espírito impuro), oprimidos, prisioneiros, esses que sofrem pelos fardos, a multidão que não sabe nada sobre a lei, as multidões, os pequenos, os menores, os últimos e as crianças, as ovelhas perdidas da casa de Israel. A referência é para uma parcela bem definida e inequívoca do povo. Jesus geralmente se refere a eles como pobres ou pequenos. Para os fariseus eram pecadores ou multidão que não sabia nada sobre a lei. "(Jesus before Christianity, 1992, 27-28). O que tinham em comum todos eles era o sofrimento causado por serem excluídos. Para todos eles, podemos aplicar as palavras de Jó: "Ao que está aflito devia o amigo mostrar compaixão, ainda ao que deixasse o temor do Todo-Poderoso”. (6, 14). O sofrimento humano - mesmo que do pecado - requer a piedade/hesed, termo que no AT inclui o da misericórdia. O sofrimento pelo evangelho de Jesus é mais do que um sacramento. Nas palavras do papa Francisco é a "carne sofredora de Cristo no povo".
Na verdade, esse é o mistério do evangelho vivo que era Jesus de Nazaré, que reconciliou a si mesmo com o homem oprimido pelo pecado, e nessa reconciliação envolveu o Pai. Vamos ler a passagem em 2 Coríntios 5: 17-21, traduzindo literalmente, ou melhor, de acordo com a etimologia original do termo katallage, o texto de Paulo:" Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas! 18 Tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, 19 ou seja, que Deus em Cristo estava reconciliando consigo o mundo, não lançando em conta os pecados dos homens, e nos confiou a mensagem da reconciliação. 20 Portanto, somos embaixadores de Cristo, como se Deus estivesse fazendo o seu apelo por nosso intermédio. Por amor a Cristo lhes suplicamos: Reconciliem-se com Deus. 21 Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça de Deus”.
É um texto muito denso, que contém todo o evangelho, e une em um nexo agora inextricável a realidade do homem historicamente existente e o Pai de Jesus. Desde que o homem não é natureza ou essência abstrata, mas é sempre carregado de história, a da recusa e do desejo do amor. As religiões que buscam restaurar e manter o vínculo desse homem com Deus sempre são, justamente por isso, estradas de purificação do homem dos seus pecados. E onde, como nos dias de Jesus, o pecado era considerado a causa de todos os males, físicos e espirituais do homem, ele excluía, era o muro que impedia a comunicação entre os homens religiosos e os pecadores.
Jesus, no entanto, não veio principalmente para purificar o homem do pecado ou para anunciar o juízo de Deus (como João Batista). O amor do Pai, que, como diz Lucas; através do Seu Espírito "empurrava", até mesmo o "fez pecado", identificou-o ao homem pecador, reconciliou Jesus, que não conhecia o pecado com o escravo do pecado. É por isso que todos os excluídos foram os privilegiados de Jesus, entravam na sua casa, sentavam à sua mesa. Assim como Jesus expulsou Satanás, libertando o homem de todas as doenças.
Os discípulos de Jesus, explica-nos então Paulo, devem também deixar-se "reconciliar", experimentar o poder criativo do acolhimento de Deus, recebendo, por sua vez, com a força do evangelho que agora opera neles, a missão da reconciliação, para serem perfeitos como o Pai celeste, que os reconciliou com si mesmo em seu Filho feito pecado, que envia a chuva sobre justos e injustos. Eles então recebem os mesmos sentimentos que estavam em Cristo Jesus, que tomou a forma dos escravos do pecado até morrer como os criminosos mais desprezíveis, na cruz.
Com esses sentimentos, eles então "tocam" a carne sofredora de Cristo no povo, comovem-se em seu íntimo pelo sofrimento de homens e mulheres que encontram, se encarregam de suas misérias, libertando-os do domínio do pecado que domina o mundo.
Mas esse não é um belo discurso? Não é apenas uma forma agradável e um pouco paradoxal da velha doutrina de sempre? A objeção é séria e deve ser tratada com seriedade absoluta. Se for verdade que o evangelho é o poder de Deus agindo no coração humano, então se anuncia o Evangelho apenas na medida em que se torna atuante, ou seja, torna-se - nas palavras de Bonhoeffer - "confissão viva", e é percebido como mandamento concreto endereçado para mim, que me empurra para a ação na situação em que eu vivo. O evangelho torna-se uma proclamação viva encarregando-se do fardo da situação vivida. Isso implica a leitura dessa situação, com todas as suas contradições. O evangelho, em outras palavras, torna-se operante através da leitura dos sinais dos tempos.
Reportando-se novamente a Bonhoeffer, isso significou para ele não só o distanciamento claro de Hitler, mas também a separação de sua Igreja que era Igreja de estado, para aderir junto a tantos outros para a Igreja confessante, a Igreja que confessava o evangelho na situação histórica em que se encontrava. Mas também significou ultrapassar as hesitações da própria Igreja confessante, a decisão de se envolver na conspiração para matar o tirano. E esta não foi uma decisão fácil. Havia duas objeções a superar. A primeira era como misturar o Evangelho, a Palavra de Deus com uma escolha humana, historicamente questionável, e fazer dessa escolha a proclamação viva do Evangelho? A segunda era uma sua consequência: como evitar o pecado em uma escolha que, especialmente para um luterano, sempre respeitoso da autoridade do Estado, implicava até mesmo em uma negação da teologia oficial da autoridade do Estado? Além disso, juntamente com os companheiros de conspiração que se professavam ateus, levando uma vida semiclandestina, mentindo diante dos tribunais?
Para responder à primeira objeção, Bonhoeffer, mesmo antes que a ascensão de Hitler ao poder o colocasse diante de escolhas mais dramáticas, raciocinava assim: "Para que o Evangelho se torne mandamento vinculante deve ter ... como pressuposto um conhecimento profundo das coisas, precisamente porque não é uma anunciação de princípios, mas mandamento de Deus aqui e agora. Mas é aqui que reside a dificuldade: esse conhecimento das coisas não está sujeito a erro ou parcialidade?
Certamente. Mas essa dificuldade não é superada permanecendo em silêncio diante do que está acontecendo ou escondendo-se nas declarações de princípio. O que é necessário é arriscar o mandamento, confiando na Palavra da remissão dos pecados que vale para ela", ou seja, para toda a Igreja. E assim, como a garantia da remissão dos pecados é o sacramento, "aquilo que o sacramento é para a pregação do evangelho [da remissão dos pecados], o conhecimento da realidade concreta é para a pregação do mandamento. A realidade é o sacramento do mandamento "(Scritti scelti (1918-1933): 463-464). Isso quer dizer que somente através de um conhecimento da situação em que cada um vive é possível dar concretização ao evangelho com escolhas consequentes.
Em outras palavras, nós trazemos o tesouro evangelho em vasos frágeis. O evangelho permanece confiado à nossa liberdade. Mas acima de tudo, e aqui reside a resposta à segunda objeção, o evangelho comporta até mesmo uma assunção de culpa, imitando o próprio Cristo que por nós se "fez pecado". Encarregar-se do outro e de seus fardos também implica encarregar-se de seu pecado. E Bonhoeffer "pecou", declarando-se disponível para matar pessoalmente Hitler, ele, pacifista, que jamais tinha segurado uma arma, mentindo e escondendo a verdade perante os juízes que o questionavam, em contravenção total com a rígida moralidade kantiana em que ele havia sido criado.
Certamente, aqui eu estou extrapolando os termos do problema através de um caso extremo, que foi bastante singular. Mas o evangelho é em última instância uma fusão à quente do amor de Deus e da liberdade do homem, onde o amor de Deus manifestou-se para nós no fato de que Jesus morreu por nós, sendo nós ainda pecadores.
Anunciar o Evangelho implica, portanto, a leitura de sua própria situação histórica, a leitura dos sinais dos tempos. Em relação a esse problema devemos ter o cuidado de distinguir entre uma leitura sociológico-cultural dos sinais dos tempos e uma interpretação cristã, que só aquele que recebeu o evangelho pode fazer. A leitura sociológico-cultural dos sinais dos tempos os identifica com os fenômenos históricos que caracterizam uma época e a distinguem de outra, tais como a revolução sexual ou a primazia do capital financeiro que marcam a nossa época, juntamente com muitos outros fenômenos típicos de nosso tempo. Mas não é essa a leitura "cristã" dos sinais dos tempos. A sua leitura implica e se funde com a prática. A leitura é práxis. Para os cristãos, o "sinal dos tempos" por excelência é, de fato, o próprio Cristo. No Evangelho de Mateus, 16, 1-4 (e o paralelo Lc 12, 54-36), os sinais dos tempos são aqueles da prática concreta de Jesus de Nazaré. Lemos: "E, chegando-se os fariseus e os saduceus, para o tentarem, pediram-lhe que lhes mostrasse algum sinal do céu. Mas ele, respondendo, disse-lhes: Quando é chegada a tarde, dizeis: Haverá bom tempo, porque o céu está rubro. E, pela manhã: Hoje haverá tempestade, porque o céu está de um vermelho sombrio. Hipócritas, sabeis discernir a face do céu, e não conheceis os sinais dos tempos? Uma geração má e adúltera pede um sinal, e nenhum sinal lhe será dado, senão o sinal do profeta Jonas. E, deixando-os, retirou-se."(Mt 16: 1-4). O sinal de Jonas, que é Jesus com sua morte, recebida por Deus na ressurreição, isto é, o sinal dos tempos por excelência, aquele que dá entrada ao Reino de Deus. Na práxis de Jesus, e nas práticas daqueles que o seguem , emergem, se “constituem” então os sinais dos tempos, no sentido literal da palavra “constituir”. Na verdade, eles não se identificam com qualquer fenômeno humano, por mais elevado e espiritual que seja, mas "nascem" da participação no sofrimento da criação. A questão fundamental e decisiva, cuja resposta determina o critério que comanda uma interpretação dos sinais dos tempos, deve ser então assim formulada: por que na história de Jesus de Nazaré advém o reino de Deus, porque nós devemos reconhecer nela o sinal dos tempos, o kairòs na linguagem usada por Lucas?
A gramática necessária para uma leitura dos sinais dos tempos é então a das Bem-aventuranças. J. Dupont em sua obra-prima dedicada à exegese das Bem-aventuranças, tanto na versão de Mt como na de Lc, mostrou seu caráter "teológico". As Bem-aventuranças, em vez de descrever uma escala da perfeição moral, abrem a nossa mente para entender a maneira pela qual o próprio Deus olha para os pobres, os mansos, os puros de coração, os perseguidos pela justiça, aqueles que choram, etc. As Bem-aventuranças, portanto, não contêm, em primeiro lugar, uma lista "ética" de virtudes humanas, mas descrevem os sentimentos de Deus, o objeto de sua complacência.
Aprofundando a interpretação da leitura do texto, podemos dizer então que as Bem-aventuranças, na versão fornecida por Mateus e, especialmente, por Lucas, qualificam a história atualmente vivida por homens e mulheres, como uma história marcada pela divisão em vítimas derrotadas, de um lado, e vencedores violentos, do outro, como história radicalmente diferente, outra em relação à história desejada por Deus. O judeu Jesus, de fato, falava no comprimento de onda dos Salmos do seu povo, com a pergunta que ocorre a todos, sobre o futuro dos pobres, dos mansos, dos justos, em relação ao dos ricos que construíram sua riqueza sobre a violência e a injustiça.
É então constituída, uma práxis messiânica, um sinal dos tempos em que o Reino de Deus aproxima-se do homem, quando em imitação ao Messias Jesus nos encarregamos do fardo do outro que sofre (ver Gal 6,2: cumprir a lei do Messias suportando os fardos uns dos outros). Carregar os fardos do outro não depende das suas qualidades morais, mas do sofrimento como tal.
Finalmente, minha conclusão simplesmente pretende dizer que o convite do Papa Francisco é dirigido não para um grupo de católicos progressistas, não só para a Igreja Católica, mas para todas as Igrejas e para todos os homens e todas as mulheres que querem carregar o fardo da história atual, com todas as contradições e dramas que a caracterizam. De fato, a pregação do papa Francisco está ultrapassando as fronteiras do catolicismo e encontrando uma escuta universal junto com recusas igualmente fortes.
É verdadeiramente uma pedra no caminho. Não é o momento para avaliar completamente esse fenômeno. Os historiadores poderão fazê-lo no devido tempo. Mas basta visitar os sites na Internet do catolicismo estadunidense conservador, além dos sites dos tradicionalistas, para entender de imediato alguma coisa. A leitura que Michael Novak fez em seu tempo da mensagem do Evangelii Gaudium nos diz, por exemplo, qual é a verdadeira pedra no caminho constituída pela mensagem do Papa Francisco. Vou retomar o artigo de Novak da revista conservadora National Review de Nova York de 7 de dezembro de 2013. Michael Novak foi um fiel católico americano, defensor na sua época da política econômica de Reagan, e autor de um famoso livro sobre O espírito do capitalismo democrático e o cristianismo, onde procura demonstrar a compatibilidade entre a doutrina social da Igreja e o capitalismo. Em seu comentário sobre a exortação papal Evangelii Gaudium, mesmo não pretendendo rejeitar em bloco o ensino do Papa, ele quis redimensioná-lo drasticamente. Em sua opinião, de fato, o papa estava correto em sua condenação do capitalismo, mas apenas porque ele via a realidade com os olhos de um argentino. A verdade, ao contrário, seria outra: nos países de tradição anglo-saxônica, especialmente a América do Norte, que logo se libertaram da economia feudal, em regime de liberdade e com mínima intervenção do Estado, registra-se um crescimento para um regime de bem-estar generalizado.
Sem querer entrar no mérito da clara distinção que Novak faz entre os pobres argentinos e os ricos liberais norte-americanos, com um silêncio sobre o fato de que foram os próprios norte-americanos que financiaram as ditaduras sul-americanas destinadas a manter a dependência econômica daquele continente, o que me impressionou na leitura de seu artigo foi a clara identificação daqueles a quem o papa dava voz: os pobres. Mas, se pensarmos sobre isso, também foram os pobres, os excluídos, os sedentos de justiça, a quem Jesus deu voz no seu tempo.
As Igrejas de hoje devem decidir se o que as une e as divide é principalmente a sua compreensão de Evangelho como um evento sempre atual, como voz dada aos pobres e aos sofredores de cada época, ou as peculiaridades doutrinárias devidas à sua história, à diferente localização geográfica, à diferente sensibilidade cultural. Nada ilustra melhor essa alternativa do que o documento sul-africano que leva o nome de Kairos.
O documento, publicado em 25 de setembro de 1985, quando a política do apartheid explodiu em uma série de medidas particularmente opressivas, não foi elaborado por teólogos profissionais, mas foi um exemplo de teologia a partir das bases, redigido coletivamente por pastores das várias denominações eclesiais da África do Sul, embora algumas partes do próprio documento (como a exegese de Rom, 13) tenham sido confiadas a estudiosos competentes. Os problemas que esses pastores tiveram de enfrentar foram particularmente sérios e urgentes ao mesmo tempo. Eles estavam bastante abalados com o que estavam vendo. Eles não estavam envolvidos em ações políticas, mas se perguntavam qual fosse a vontade de Deus e o que lhes era exigido. De fato, a repressão era justificada também religiosamente com a referência a uma teologia do Estado propriamente dita que derivava sua legitimidade, sobretudo das declarações paulinas sobre a autoridade de Rom, 13.
Por outro lado, os pronunciamentos oficiais das várias Igrejas, mesmo aquelas que mantinham distância da repressão, se limitavam a declarações genéricas que não testemunhavam toda a força e desafio contidos no Evangelho de Cristo. Em outras palavras, eram a enunciação de princípios, mas não evangelho concreto. A tentação era de ficar olhando, já que a política não era um problema da Igreja. Na verdade, a Igreja (no singular!) estava dividida em seu interior, com uma divisão que se manifestava dentro de cada denominação, entre quem estava do lado dos brancos e aqueles que ficavam do lado dos negros. Os pastores percebiam que, dessa forma, a Igreja não era portadora de esperança e, portanto, sentiam a urgência de ir além das palavras. A hora de falar já havia passado, as pessoas pediam ações coerentes com o evangelho.
O documento constatava com amargura: "O que a crise atual mostra, embora muitos de nós já tivéssemos conhecimento antes, é que a Igreja está dividida. Mais e mais pessoas afirmam que existem duas Igrejas na África do Sul, uma Igreja branca e uma Igreja negra. Mesmo dentro da mesma denominação, existem na realidade duas Igrejas."
No conflito entre a vida e a morte entre as diferentes forças sociais que agora dominam na África do Sul, existem cristãos (ou pelo menos pessoas que professam ser cristãos) de ambas as partes do conflito e alguns que tentam permanecer neutros. ... Tanto o opressor quanto o oprimido declaram lealdade à mesma Igreja. Ambos são batizados no mesmo batismo e participam juntos na divisão do mesmo pão, do mesmo corpo e sangue de Cristo. Sentamo-nos na mesma Igreja, enquanto do lado de fora policiais cristãos e soldados estão batendo e matando crianças cristãs ou torturando até a morte prisioneiros cristãos, enquanto outros cristãos ficam observando e pedem brandamente por paz".
Sem uma posição clara contra a opressão, a Igreja continuará a permanecer dividida. Em vez disso, é preciso participar da luta contra a opressão, apoiando campanhas em massa pelos boicotes e abstenções; transformando as atividades eclesiais, atos de adoração, escola dominical, etc., para que sejam coerentes com a fé profética ligada aos kairos que a Igreja vive agora; organizando campanhas especiais relacionadas às lutas necessárias para a libertação da opressão; apoiando a desobediência civil que implica desobediência ao estado contrário a Deus; assumindo a orientação moral do povo e ajudando as pessoas a entender seus direitos e seus deveres.
Creio que a provocação que o documento Kairos representou então quando foi escrito e que ainda representa, da mesma forma que a pregação e o testemunho do papa Francisco, seja um exemplo claro do mandamento do evangelho, vinculante para todos, que coloca um vínculo na consciência de cada um e ultrapassa as fórmulas e as doutrinas das várias Igrejas e por isso fala a todos. Isso é, de fato, o que experimentamos agora com o Papa Francisco, assim como gerações anteriores experimentaram com o Papa João XXIII. Então, as fórmulas dentro das Igrejas com que resumem suas doutrinas e sua disciplina, na medida em que pretendem transmitir o Evangelho, também devem se tornar posicionamentos, mandamentos concretos, como teria dito Bonhoeffer. Aqui está o significado último do convite do Papa Francisco: cheirar a ovelhas, de tal forma que as ovelhas perdidas sintam e reconheçam a voz do evangelho.
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