03 Março 2017
“Naquele tempo, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo” (Mt 4,1)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o evangelho do 1° Domingo de Quaresma (05/03/2017) que corresponde ao trecho de Mateus 4,1-11.
O deserto é um lugar instigante na vida humana. Apresenta-se como o lugar da tentação e também como o lugar onde o Senhor nos fala ao coração. O interior não se expande sem períodos de deserto.
Há desertos que são buscados, e há também desertos que a vida nos traz, surpreendendo-nos. Sempre aprofundam e alargam em nós uma dimensão do amor que nosso ego fechado quer roubar-nos.
Os evangelhos sinóticos (Marcos, Mateus e Lucas) colocam o relato das tentações de Jesus no início de sua atividade pública. Talvez com isso eles estão querendo dizer que, antes de começar uma missão libertadora, é necessário enfrentar-se com os próprios “demônios interiores”.
“Demônios interiores” é tudo aquilo que nos divide (“dia-bolum” – o que divide), que alimentam nosso ego-centrismo, rompendo a comunhão com os outros, com Deus e com suas criaturas; são forças que permanecem ocultas, mas bem ativas em nós, conduzindo-nos aonde não queríamos ir.
O “dia-bolum” não quer que reconheçamos o Criador, e muito menos que lhe honremos nos outros. Ele gosta dos verbos que afirmam o ego: possuir, conquistar, adular, mandar, competir, destacar, impor...
E lhe causa repugnância aqueles verbos que nos fazem sintonizar com outros: doar, servir, colaborar, agradecer, suscitar, partilhar...
Os “demônios”, dos quais os relatos sinóticos nos falam, são três e caracterizam bem o nosso ego: o ter, o poder e a aparência (vaidade). É neles onde o ego se entrincheira e onde se apega para sentir-se que é “algo”. Bens materiais, poder e influência, imagem e prestígio: eis aí os interesses do ego.
Em outras palavras, o que o ego busca nesses apegos é uma só coisa: segurança. Precisamente por isso, a maneira de “lidar” com esses demônios interiores é reconhecer e des-velar (tirar o véu) as carências pen-dentes em nossas vidas e descobrir a falsidade de suas promessas. Fica claro que são “tendências narci-sistas”, próprias de um ego imaturo, que buscam um lugar ao sol e que desencadeiam um processo de auto-centramento e ruptura de aliança com tudo e todos.
Des-velar as “vozes dia-bólicas” de nosso interior pode nos ajudar a compreender que a segurança que elas prometem são vazias: todo o dinheiro do mundo, todo o poder e toda a fama são incapazes de conferir segurança e plenitude. Não só isso: aquelas vozes nos confundem e nos fazem distanciar de nossa verdadeira identidade. Cedo ou tarde reconheceremos que o futuro do ego não tem fundamento e que, como dizia Jesus, viver para ele é “perder a vida”.
A segurança não se encontra ao alcance do ego. Por isso, ele se desespera ao perceber que, por mais esforço que faça, não pode tê-la sob seu controle. Tampouco se encontra fora de nós, em outro lugar ou no futuro; nem sequer podemos situá-la em nossas ideias ou crenças.
Porque, o que ardentemente aspiramos não é “algo” que imediatamente nos complete. Aspiramos nada menos que o Absoluto (“adorarás ao Senhor, teu Deus, e somente a Ele prestarás culto”), mas não como “algo” ou “alguém” separado, mas essa Presença intima e amorosa que nos habita. Essa Presença é segurança e constitui o núcleo de quem somos; ela é o “objeto” de nossa sede e de nossa busca porque é reveladora de nossa verdadeira identidade. Onde a estávamos buscando?
Jesus, também tentado, nos ajuda quando tentados. Ele também “foi provado em tudo como nós” (Heb. 4,15). Ele precisou superar a “divisão interna”, própria do ser humano, para poder viver a densidade humana, aberta e oblativa.
No tempo do deserto viveu um processo de humanização profundíssimo, deixando-se pacificar e conduzir pelo Espírito, reencontrando, na própria história, pontos de referência fundamentais que vão situá-lo na condição de Filho de Deus. As tentações não foram um momento da vida de Jesus, mas uma “sombra escura” que o acompanhou ao longo de toda sua vida.
Frente ao ídolo do poder e do ter, Ele se mantém de pé, despojado; frente ao desejo de utilizar sua condição de Filho em seu próprio benefício, elege o caminho da obediência sintonizada no Pai; frente ao discurso do êxito e da fama, Ele elege o do serviço.
As tentações são expressão do conflito permanente de sua vida e de sua obra.
No deserto, Jesus tomou uma consciência tão plena de sua condição de Filho, a Palavra do Pai lhe deu tanta segurança e iluminou de tal maneira sua vida, que já se torna impossível confundir Deus com os falsos ídolos que o tentador lhe apresenta: um “deus” contaminado pelas piores pretensões da condição humana: possuir, fazer ostentação de prestígio, exercer domínio.
Jesus não veio para que os anjos esvoaçantes o carregassem, mas para carregar sobre seus ombros a ovelha perdida; não veio para converter as pedras em pães, mas para entregar-se Ele mesmo como Pão de vida; suas mãos não se fecham possessivas sobre as riquezas porque Ele precisa delas livres para levantar caídos, sarar feridos ou lavar os pés cansados do caminho; não veio para trocar a pérola preciosa do Reino que o Pai lhe confiou por outros reinos que o tentador lhe mostrou a partir do monte.
Neste tempo quaresmal, identificados com Jesus na estadia do deserto, vamos “des-velando” nossos dinamismos “dia-bólicos” que se instalam em nosso interior, atrofiam nossas forças criativas e nos distanciam da comunhão com tudo e com todos.
O mundo em que vivemos nos condiciona a viver em torno do ter, do poder, da ambição do prestígio, da idolatria... Jesus nos ensina a pedirmos ao Pai que não nos deixe cair nessas tentações que destroem o projeto de um mundo fraterno e igualitário.
A tentação é a que promete o bem e nos conduz ao mal; aquilo que parece atrativo e inclusive bom, mas nos afasta de Deus e dos outros; aquilo que parece algo evidente, inevitável em nossa vida quando na realidade não é; aquilo que, com enganos, nos mata aos poucos.
Do nosso interior, esta força do mal se encarna nas nossas atividades, instituições, estruturas (externa-lizado), provocando violência, gerando tensões, injustiças... e criando uma sociedade opressiva, dividida, conflituosa, preconceituosa... Esta situação, com suas seduções e ilusões se constitui em permanente tentação coletiva para o egoísmo, a insensibilidade e a ruptura da fraternidade.
Viver humanamente consistirá em deixar o Espírito circular livremente por todos os cômodos de nossa morada, arejando-os, ventilando-os, religando-os, dando-lhes vida, reorientando-os. A missão do Espírito é ajudar-nos a fazer a travessia do deserto interior, tanto nas sombras como nas zonas de luz, até ao centro de nós mesmos. O Espírito procura entrar para fecundar, recolocar em ordem, restaurar, unificar.
Precisamos nos abrir para uma verdade maior quanto à nossa humanidade, ou seja, que todos os nossos recantos merecem ser visitados, olhados, ouvidos e abraçados; que cada aspecto de nossa vida contém uma dádiva maior do que podemos enxergar e cada sentimento merece uma expressão saudável.
A oração sobre as “tentações de Jesus” nos ajuda a tomar consciência das alianças e cumplicidades nas quais podemos cair em nossas relações com o mundo e com aqueles elementos que de modo mais decisivo põe em perigo nossa liberdade: as riquezas, o poder, o prestígio. Nessa "embriaguez existencial" a alteridade desaparece, a abertura a Deus se atrofia e a gratidão frente aos bens se esvazia.
Dar nomes aos “demônios interiores” que desumanizam.
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Os "demonios" interiores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU