03 Março 2017
Aos seus 88 anos, Gustavo Gutiérrez, o pai da Teologia da Libertação, é um vovozinho amado, que, apesar da sua fama, não se dá importância, e que todo mundo adora. Baixinho, com seu bastão sempre na mão, segue marcando a pauta da corrente teológica que fundou e pela qual foi perseguido durante 20 anos. Agora, chegam-lhe os reconhecimentos do próprio Papa Francisco e de toda a comunidade teológica mundial. Um dos últimos “gurus” vivos aposta em Francisco, “um kairós, um grande dom”, após participar do Primeiro Encontro Ibero-Americano de Teologia, que aconteceu no Boston College.
A entrevista é de José Manuel Vidal e publicada por Religión Digital, 02-03-2017. A tradução é de André Langer.
Como você chegou à Teologia?
Eu fui vocação tardia. Entrei no seminário quando já tinha completado os 24 anos e após ter feito o curso de Medicina. Uma vez que decidi ser padre, estudei Filosofia e Psicologia em Lovaina e Teologia em Lyon, além de algum curso na Gregoriana de Roma, com o Padre Alfaro. Fui ordenado em 1959 e comecei a lecionar e a trabalhar em uma paróquia.
Entrou para dar aulas na Faculdade de Teologia?
Não. Nunca estive na Faculdade de Teologia. Não queriam saber de mim lá. Dava aulas na Universidade Católica, mas não na Faculdade de Teologia. De fato, minha primeira nomeação para ensinar em uma Faculdade de Teologia remonta há apenas 12 anos nos Estados Unidos. Há alguns anos, passo três meses na universidade estadunidense de Notre Dame.
Que lembranças você guarda do seu trabalho pastoral na paróquia?
Continuo trabalhando na paróquia. Nunca a deixei. De fato, já conheci duas gerações de fiéis. Adoro o trabalho paroquial e, ao mesmo tempo, sinto paixão pela Teologia. Por isso, às vezes, tive dificuldades para compaginar ambas as coisas na minha vida. Gosto de ensinar, mas não em tempo completo. Sou padre pároco.
Você esperava a repercussão que teve o seu livro sobre a Teologia da Libertação?
Nunca pensei que a publicação desse livro fizesse tanto barulho.
E logo começaram os seus “problemas” com Roma.
Passei muitos em diálogo com a Congregação para a Doutrina da Fé. Vinte anos de diálogo. Sempre fui uma nulidade em Direito Canônico, mas aprendi a diferenciar o diálogo do processo. Obrigaram-me ao diálogo, mas nunca abriram um processo contra mim. Por isso, quando os jornalistas me perguntam se o Papa vai me reabilitar, sempre respondo que não pode me reabilitar, porque nunca fui desabilitado. Agora, houve uma pilha de cartas e de idas e vindas.
E, no entanto, sempre se diz que você foi condenado por Roma.
Os meios de comunicação têm uma grande força e esses clichês, divulgados erroneamente, tendem a permanecer e se cristalizar nas pessoas. Há alguns meses, uma senhora, após participar da missa que eu presidi, aproximou-se e me disse: ‘Pensei que estava proibido de celebrar’.
O que pensa do Papa Francisco?
É um momento de ‘kairós’ que ninguém esperava. Um grande dom. Ele vai ao núcleo da mensagem cristã, à jovialidade do Evangelho. Além disso, é muito corajoso. Embora haja quem lhe peça mais, mas esses tais estão loucos. Francisco é uma bênção, tem muito claro a solidariedade com os pobres, as pessoas o entendem e, acima de tudo, tem senso de humor e faz brincadeiras, além de sua impressionante capacidade para criar metáforas. Estou disposto a apoiar o Papa, na medida das minhas possibilidades.
Como aproveitar este ‘kairós’?
A reforma da Igreja exige a mudança da cúria, que detesta o Papa Francisco.
Há resistências ao Papa Francisco?
Conhecemos apenas 10% das resistências. Os outros 90% estão ocultos, mas ele sabe disso e tem uma fibra muito forte. O Papa precisa muito de apoio, porque tem problemas. Há até mesmo cardeais que criticam publicamente o Papa, algo nunca visto em nossa época e prova evidente das resistências que precisa enfrentar.
O que podem fazer aqueles que o apoiam?
Apoiá-lo e torná-lo presente na Igreja. Porque este excelente momento e este dom que significa o Papa pedem de nós uma tarefa. Devemos ter uma ampla visão de Igreja. Devemos preparar a continuidade. E manter-nos firmes. Falta uma bem-aventurança, a ‘bem-aventurança dos teimosos, porque deles é o Reino dos Céus’.
Você se encontrou pessoalmente com o Papa?
Sim, mas não quisemos dar publicidade a esse encontro.
No que está trabalhando agora?
Tenho um livro terminado, mas sem reler.
O título?
Isso não se diz, dá má sorte.
Sobre qual assunto?
O pobre e a situação teológica. O livro e o título vão girar em torno desta frase: ‘Perto do pobre, perto de Deus’. Precisamos resolver a questão da pobreza. A pobreza é morte prematura e injusta. A pobreza é destruidora de pessoas e de famílias. A pobreza nunca é boa, nunca. Como disse Hannah Arendt: ‘o pobre é aquele que não tem direito a ter direitos’. Por isso, o compromisso com os pobres não pode evitar as denúncias das causas da pobreza.
As pessoas se aburguesaram?
As pessoas se cansam. Um cansaço que se dá muito na política. Mas também devemos ter muito presente a experiência do martírio. Há pessoas que deram sua vida. Por exemplo, Enrique Pereira Neto, que mataram aos 28 anos, por defender os pobres. Seria preciso abrir uma nova linha de santidade na Igreja: os santos das causas sociais. O primeiro, dom Romero.
Que lugar ocupa a espiritualidade no trabalho teológico da Teologia da Libertação?
É fundamental, entendida como um estilo de vida e uma maneira de ser. Como dizia [Marie Dominique] Chenu: ‘por trás da teologia está a espiritualidade’. Espiritualidade como comportamento e como prática. A mensagem cristã é como carne congelada: está aí, mas não é possível comê-las. É preciso descongelá-la, isto é, colocá-la na realidade. Como disse Simone Weil: ‘se você quer saber se uma pessoa acredita em Deus, não se fixe no que ela diz sobre Ele, mas no que ela diz sobre o mundo’. Ou como assinala Nicolás Berdiaeff: ‘se tenho fome, isso é um problema material; se outra pessoa tem fome, isso é um problema espiritual para mim’.
Chama a atenção a sua amizade com o atual prefeito da Doutrina da Fé, Gerhard Müller.
Após entrar em contato comigo, Müller foi durante 15 anos seguidos dar aulas aos seminaristas do seminário de Cuzco, no Peru. Nunca vi um teólogo europeu fazer algo semelhante. O próprio Müller disse que ali se converteu.
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“O Papa é um ‘kairós’ que ninguém esperava, um grande dom”. Entrevista com Gustavo Gutiérrez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU