01 Dezembro 2017
"A regulamentação da nova lei causou-nos perplexidade e grande apreensão. Submetido a uma brevíssima consulta pública que durou não mais do que alguns dias, o texto do Regulamento foi alvo de numerosas críticas formuladas por especialistas, entidades sociais e instituições que se ocupam do tema em nosso país. Malgrado a plena pertinência jurídica, técnica e política de tais críticas, elas foram ignoradas pelo Poder Executivo. Caberia perguntar qual o sentido de uma consulta pública realizada nestas condições".
O comentário é de André de Carvalho Ramos, Aurelio Rios, Clèmerson Clève, Deisy Ventura, João Guilherme Granja, José Luis Bolzan de Morais, Paulo Abrão Pires Jr., Pedro B. de Abreu Dallari, Rossana Rocha Reis, Tarciso Dal Maso Jardim e Vanessa Berner, em artigo publicado por Consultor Jurídico, 23-11-2017.
Os autores integraram a Comissão de Especialistas constituída pelo Ministério da Justiça que teve a finalidade de elaborar uma proposta de Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil (2013-2014).
Graças à nova Lei de Migração (Lei 13.445/17), cuja vigência teve início 21 de novembro, o Estado brasileiro enfim revoga o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6815/1980), triste herança do regime ditatorial pretérito. Embora adotada em período de grande turbulência na história de nosso país, a nova lei representa um significativo avanço no que diz respeito à proteção dos direitos dos migrantes no Brasil, como já foi ressaltado em artigo já publicado anteriormente por um dos autores.
Não se pode olvidar que tal diploma foi aprovado por unanimidade quando de sua tramitação no Senado Federal. Apesar de limitado por um significativo número de vetos apostos pela Presidência da República, a nova lei também representa um importante trunfo para a imagem internacional do Brasil, tão combalida pelas sucessivas crises que temos enfrentado. De um país que se pretende inserido na economia global e confiável em suas relações internacionais não se poderia esperar menos do que uma legislação migratória moderna e atraente, comprometida com as obrigações assumidas pelo Brasil por meio dos tratados de direitos humanos vigentes em solo pátrio.
No entanto, a regulamentação da nova lei causou-nos perplexidade e grande apreensão. Submetido a uma brevíssima consulta pública que durou não mais do que alguns dias, o texto do Regulamento foi alvo de numerosas críticas formuladas por especialistas, entidades sociais e instituições que se ocupam do tema em nosso país. Malgrado a plena pertinência jurídica, técnica e política de tais críticas, elas foram ignoradas pelo Poder Executivo. Caberia perguntar qual o sentido de uma consulta pública realizada nestas condições.
Ao longo de mais de três centenas de artigos, o Decreto que regulamenta a nova lei, Decreto 9.199, de 20 de novembro de 2017, é visivelmente alheio ao debate que acompanhou o longo processo de elaboração do novo diploma, transcorrido sobretudo ao longo dos últimos dez anos, e não é exagero dizer que ele desvirtua o espírito da nova lei. Assim, representa uma grave ameaça a conquistas históricas, tanto no que se refere aos direitos dos migrantes como no que tange à capacidade do Estado brasileiro de formular políticas adequadas em relação a esta matéria de relevância crescente.
Não temos a pretensão de esgotar, neste breve artigo, a listagem das numerosas deficiências do Regulamento em apreço. À guisa de exemplo, limitamo-nos a mencionar apenas alguns de seus problemas mais graves.
Antes de mais nada, o emprego do termo vulgar “clandestino” ao se referir a uma pessoa humana, que figura artigo 172 do Decreto regulamentador, bem revela suas graves limitações técnicas. No mesmo sentido, ignorando o artigo 123 da nova lei, em virtude do qual “Ninguém será privado de sua liberdade por razões migratórias, exceto nos casos previstos nesta Lei”, o Decreto abre a possibilidade de prisão do deportando.
Destacamos, a seguir, uma das mais importantes inovações trazidas pela lei de migração, qual seja a possibilidade de concessão de um visto temporário para os migrantes que vêm ao Brasil em busca de trabalho (artigo 14 e). A entrada regular em território nacional dos principais fluxos migratórios de nosso tempo, vinculados à busca de trabalho e vida digna, traria tripla vantagem ao Estado brasileiro. Primeiro, os migrantes não arriscariam suas vidas e de suas famílias, e não gastariam suas economias em trajetórias perigosas e amiúde degradantes que desaguam em nossas porosas fronteiras, por vezes envolvendo redes criminosas (os chamados “coiotes” ou “passadores de pessoas”).
Segundo, ao chegar de forma regular e digna no Brasil os migrantes não apenas poderiam dispensar redes de assistência destinadas aos que se encontram em situação de precariedade, como tornar-se-iam menos suscetíveis à ação de redes criminosas que exploram o trabalho dos migrantes, valendo-se odiosamente para tanto de sua situação irregular. Enfim, a segurança do Brasil seria aumentada graças à possibilidade de controle prévio pelo Estado de quem pretende aqui aportar com o intuito de buscar um emprego, facilitando a elaboração de políticas públicas compatíveis com esta demanda.
É preciso reconhecer que o texto final da nova lei promoveu uma mudança negativa na proposta originalmente formulada porque passou a exigir, em virtude do seu artigo 14 §4º, uma “oferta de trabalho formalizada por pessoa jurídica em atividade no país”. Assim, a lei deixou de proteger um vasto contingente de migrantes, provavelmente os mais vulneráveis, que ainda não possuem oferta de trabalho no Brasil. No entanto, causa espécie que o regulamento agrave sobremaneira o defeito da lei ao afrontar claramente o seu texto, estipulando que “a oferta de trabalho é caracterizada por meio de contrato individual de trabalho ou de contrato de prestação de serviços” (artigo 38 I da proposta). Ora, um contrato não constitui uma oferta e sim a consumação de uma relação trabalhista ou de prestação de serviços, o que por certo dificultará sobremaneira a obtenção de tal visto pelos migrantes.
Ainda mais grave é admitir que os vistos temporários para pesquisa, ensino ou extensão acadêmica; para trabalho; para realização de investimento ou de atividade com relevância econômica, social, científica, tecnológica ou cultural; e para atividades artísticas ou desportivas com contrato por prazo determinado (artigos 34, § 6º; 38, § 9º; 42, § 3º e § 4º; 43, § 3º e § 4º; e 46, § 5º do Decreto em comento) dependam de deferimento, pelo Ministério de Trabalho, de autorização de residência prévia à emissão desses vistos temporários. Ora, a autorização de residência não pode ser condicionante da emissão de visto. Tampouco existe base legal para que o Ministério do Trabalho seja dotado da competência de “selecionar” migrantes para o ingresso regular no território nacional, o que representaria um retrocesso, não apenas em direção ao regime militar (1964-1985) mas ao próprio Estado Novo.
A intenção de erodir direitos que a lei atribuiu ao migrante fica evidenciada em diversos outros dispositivos do Decreto. É o caso do seu artigo 45 I que, ao regulamentar a concessão de visto temporário para fins de reunião familiar de cônjuge ou companheiro prevista pela nova lei, acrescenta indevidamente ao texto a expressão “nos termos da legislação brasileira” — de todo ausente do respectivo texto da lei de migração. Na verdade, em virtude do artigo 37 I da nova lei, tal concessão deveria ocorrer “sem discriminação alguma”.
Além de pecar por ação, o Decreto em exame peca igualmente por omissão. Um primeiro grave exemplo é a total ausência de menção à Política Nacional sobre Migrações, Refúgio e Apatridia, instituída pelo artigo 120 da nova Lei de Migração, em que se inscreve a regra de participação da sociedade civil, bem como de outros atores sociais e governamentais.
Um segundo exemplo de omissão figura nos artigos 28 V e 133 V do Decreto, que deixam de regulamentar qual seria o “ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal” capaz de justificar a denegação peremptória de visto a um migrante. Neste sentido, faz persistir em nossa ordem a perniciosa discricionariedade das autoridades federais em matéria de ingresso no território nacional que caracteriza o Estatuto do Estrangeiro, típico de um regime militar.
No mesmo sentido, o de falta de regulamentação do que de fato necessitaria ser regulamentado, o Decreto atribui a regulamentação de importantes dispositivos a atos normativos posteriores, sem que um prazo seja estipulado para a adoção de tais atos, como é o caso da concessão do relevantíssimo visto temporário e da autorização para residência relativos à acolhida humanitária, cuja disciplina fica pendente de um ato conjunto dos Ministérios das Relações Exteriores, da Justiça e da Segurança Pública, e do Trabalho. Esse adiamento sine die do exercício do poder regulamentar, além de incompatível com a natureza do próprio visto, tumultua a incorporação à legislação desta prática do Estado brasileiro, já utilizada em relação aos migrantes haitianos e aos refugiados sírios, que foi promovida pela nova lei.
Tais exemplos configuram uma pequena amostra das deficiências flagrantes do Regulamento quando cotejado ao texto da nova lei de migração. Ocorre que, em virtude do artigo 84 IV da Constituição Federal, o Poder Executivo dispõe de competência privativa para expedir regulamentos para a “fiel execução” da lei, jamais para seu desvirtuamento. Assim, quando o Estado, ao exercer o poder regulamentar, atua contra a lei (contra legem) ou “fora da lei” (praeter legem, no sentido de produzir novas normas que não encontram respaldo na lei regulamentada), a ordem constitucional permite evocar não apenas o controle jurisdicional dos atos do Poder Executivo: a Carta Magna admite até mesmo que o Congresso Nacional suste os atos normativos regulamentares considerados exorbitantes. É o que assegura assentada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o abuso de poder regulamentar (por exemplo, AC 1.033 AgR-QO, rel. min. Celso de Mello, j. 25-5-2006, P, DJ de 16-6-2006).
Causaria dano irreparável ao interesse público que a regulamentação da Lei de Migração fosse alvo de longas e extensas batalhas judiciais, gerando insegurança jurídica para os migrantes e para todos os que com eles se relacionam. É imprescindível que o governo brasileiro demonstre abertura e sensibilidade diante das críticas formuladas, e apresente uma nova proposta de decreto compatível com o espírito da nova lei. Também é fundamental que esta nova proposta atente para a necessidade de prover o Estado brasileiro das condições indispensáveis para que deixe de ser reativo nesta matéria, passando a promover ativamente uma política migratória coerente e eficiente, comprometida com os direitos dos migrantes, em benefício de todos os cidadãos brasileiros.
Por todo o exposto, chamamos a atenção da comunidade jurídica brasileira para a gravidade do assunto. E conclamamos o governo federal a reconhecer no interesse público o seu próprio interesse, garantindo uma nova regulamentação à altura da grande conquista nacional que deveria representar a nova Lei de Migração.
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Regulamento da nova Lei de Migração é 'contra legem' e 'praeter legem' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU