09 Março 2017
O Brasil deixou de ser um destino acolhedor para os refugiados. No ano passado, o governo endureceu a concessão de vistos para quem pediu asilo no País, e a queda em relação a 2015 chegou a 28%.
A reportagem é de Débora Melo, publicada por CartaCapital, 09-03-2017.
Foram 886 solicitações de refúgio deferidas em 2016, contra 1.231 no ano anterior. Menos da metade dos pedidos recebidos foi atendida, demonstram dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão interministerial que cuida do assunto e é presidido por um representante da pasta da Justiça.
Segundo o Conare, houve aumento de solicitações de refúgio fora dos critérios, o que explicaria a alta nas negativas. No ano passado, muitos dos pedidos, aponta o comitê, tinham motivação econômica.
Caso de inúmeros venezuelanos que cruzaram a fronteira para escapar do desabastecimento de alimentos e produtos básicos em seu país. As convenções internacionais e a lei brasileira de 1997 não elencam, no entanto, as flutuações da economia entre os riscos de graves violações aos direitos humanos.
Organizações da sociedade civil ligadas ao tema não descartam, porém, os efeitos das contínuas mudanças na composição ministerial desde o impeachment de Dilma Rousseff. Além da Justiça, têm assento no órgão colegiado representantes dos ministérios das Relações Exteriores, do Trabalho, da Educação e da Saúde.
“Toda essa instabilidade nos ministérios tem refletido negativamente no funcionamento do Conare. E são, principalmente, a presidência e a coordenação que fazem a roda administrativa do órgão girar”, afirma a advogada Larissa Leite, coordenadora de proteção do centro de referência para refugiados da Cáritas São Paulo, que também integra o Conare.
“Existe um discurso que se cria, e com o qual a gente não concorda, de que se abusa do instituto do refúgio e de que é preciso protegê-lo. Para nós, o importante é proteger os refugiados.”
O deslocamento forçado provocado por guerras e perseguições atinge hoje o número recorde de 65,3 milhões de pessoas, conforme relatório mais recente da Agência das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Com 10.418 refugiados (incluindo os reassentados), o Brasil responde por 0,015% dos acolhimentos.
Por aqui, os pedidos de refúgio cresceram vertiginosamente nos últimos cinco anos: de 966 casos, em 2010, para 28.670, em 2015. O aumento da demanda, diz Larissa Leite, evidenciou a falta de capacidade do Conare de analisar as solicitações, o que resultou no fortalecimento da estrutura administrativa do comitê. Deu certo. Entre 2014 e 2015, o passivo caiu de 48 mil para 25 mil pedidos.
Embora acolha poucos refugiados, pondera Camila Asano, coordenadora de política externa da ONG Conectas Direitos Humanos, o Brasil tem uma das leis mais respeitadas do mundo e não pode perder o papel de destaque conquistado ao longo dos últimos anos.
“Vivemos em um País de dimensões continentais, com população grande, mas uma densidade demográfica baixa, e sem dúvida poderíamos fazer mais para abrir nossas portas", diz. “Como ator global e regional de peso, o Brasil deve se manter na vanguarda e dar um exemplo positivo de acolhimento. Isso é ainda mais importante nesse contexto de fechamento de portas nos Estados Unidos", continua Asano.
Uma nova regra do Conare tende, porém, a dificultar os processos. Em vigor desde 1º de janeiro, a Resolução 23 obriga o solicitante de refúgio em viagem ao exterior a se submeter ao “regime de vistos em vigor” para retornar ao Brasil. Os expatriados recebem um protocolo, espécie de documento de permanência provisório.
Duas décadas atrás, quando o Conare foi criado, o protocolo tinha validade de três meses, prazo médio para o reconhecimento da condição de refugiado. Atualmente, com a explosão dos fluxos migratórios e o aumento da demanda, a validade foi ampliada para um ano. Nesse período, não raro, muitos se veem obrigados a sair do País.
“Existe muita especulação, mas nunca foi feita uma pesquisa para apontar os motivos da maioria das viagens. São familiares em perigo, mortos ou doentes. Cidadãos que podem ter uma vida profissional e acadêmica. Muitas famílias estão em diáspora por causa de guerras”, elenca Larissa Leite.
Organizações da sociedade civil integrantes do Conare pediram ao Ministério das Relações Exteriores, responsável pela emissão dos vistos, a revisão do procedimento, de modo a torná-lo coerente com a situação de quem pede refúgio.
“Uma vez que o solicitante cumpriu suas obrigações e fez uma comunicação de viagem ao Conare, que seja facilitada a emissão desse visto, bastante exigente no Brasil. Sempre que houver abuso, ele pode ser verificado. E quando houver uma viagem legítima, não há por que impedir o retorno ao Brasil”, afirma a representante da Cáritas. "Temos levado essa questão às reuniões do Conare e há uma expectativa de que o Ministério das Relações Exteriores corresponda a essa demanda”, continua Leite.
O Itamaraty informou que “o tema será analisado no âmbito do Conare”. O comitê, por sua vez, não se pronunciou a respeito.
Em meio às incertezas, uma nova lei de migração em tramitação no Congresso é vista com bons olhos. O projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados em dezembro e, se confirmado pelo Senado e sancionado pela Presidência da República, revogará o Estatuto do Estrangeiro, criado durante a ditadura.
Um avanço seria a consolidação de iniciativas até então provisórias, entre elas a política de concessões de vistos humanitários, hoje restrita a sírios e haitianos. A modalidade especial de proteção foi criada em 2012, pelo governo Dilma Rousseff, para contemplar os haitianos que chegavam ao Brasil fugidos, principalmente, das consequências do terremoto de 2010. No ano seguinte, por causa do agravamento do conflito no Oriente Médio, o benefício foi estendido aos sírios.
Também seria uma chance de eliminar certas regras. Ao proibir a participação de estrangeiros em manifestações políticas e a filiação a sindicatos, o Estatuto do Estrangeiro trata a migração não como direito, mas ameaça à segurança nacional. Espera-se que a Nova Lei de Migração elimine essa visão.
“Vivemos um momento crítico no âmbito das migrações. Temos de refutar veementemente a falsa associação entre migração e terrorismo ou criminalidade, que parece prosperar não só nos Estados Unidos de Donald Trump, mas também no Cone Sul, com o recente e lamentável exemplo da Argentina”, afirma Camila Asano, da ONG Conectas. A ver.
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Brasil, de portas quase fechadas aos refugiados - Instituto Humanitas Unisinos - IHU