25 Agosto 2014
"É verdade que, à margem da lei, ocorreram avanços no Brasil, e acomodações entre a lei e a realidade migratória foram produzidas. Sem a revogação do Estatuto do Estrangeiro, contudo, não há como evitar um serviço à la carte", escreve Deisy Ventura e Rossana Rocha Reis, professoras da Universidade de São Paulo, integrantes do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais e parte da Comissão de Especialistas criada pelo Ministério da Justiça para elaborar o Anteprojeto de Lei de Migrações, em artigo publicado pela revista CartaCapital, 21-08-2014.
Eis o artigo.
Dezenas de milhares de migrantes sul-americanos chegaram ao Brasil a partir dos anos 1990, de forma lenta e contínua. Ou talvez centenas, não se sabe bem. Deles ouvimos falar pouco e, em geral, pejorativamente. Por exemplo, quando dos incontáveis flagrantes de trabalho em condições análogas à escravidão. De regra, dos países mais pobres da América Latina não conhecemos mais do que os estereótipos de sua história, literatura, música ou gastronomia.
Com a crise econômica no Velho Continente, nos últimos anos cresceu igualmente a migração de europeus. Mas foi a recente chegada de alguns milhares de migrantes negros que levou a política migratória brasileira à pauta das grandes redações, quase sempre apresentando a migração como "problema" ou "crise" a solucionar.
“Fechar as fronteiras” para a imigração em um contexto de intensa mobilidade humana e enorme desigualdade entre os países não tem ajudado a diminuir as migrações, apenas tem ajudado a tornar os trabalhadores imigrantes mais vulneráveis à exploração e ao preconceito. Na Europa e nos Estados Unidos, a crueldade tem sido inversamente proporcional à dissuasão, como bem demonstram os naufrágios na costa italiana e as crianças da América Central que caminham a pé até a fronteira norte-americana. A boa notícia é que o ser humano, mesmo nas condições mais adversas, não desiste de tentar uma vida melhor. Os migrantes só deixarão de vir quando o Brasil deixar de ser uma potência emergente.
Assim, as migrações internacionais, outrora dirigidas ao Norte, hoje repartem-se quase igualmente entre Norte e Sul. Além disso, uma política migratória restritiva implicaria, no caso das porosas fronteiras do Brasil, um investimento descomunal no aparelho de segurança, em detrimento das políticas públicas que nos fazem tanta falta.
Por outro lado, desde que os haitianos chegaram às manchetes, diante da opinião pública a migração e o refúgio parecem ser a mesma coisa, embora nomeiem processos bem distintos. Enquanto o migrante se desloca por vontade própria, quase sempre em busca de trabalho e vida digna, o refugiado teme por sua integridade física e moral caso permaneça em seu país de origem. No entanto, como a lei vigente no Brasil não permite que os estrangeiros em busca de emprego – ou que trabalhem no mercado informal, como quase metade dos brasileiros – permaneçam regularmente no país, muitos deles são levados a solicitar refúgio apenas para ter algum documento (o protocolo do pedido), esperando conseguir um emprego até a esperada resposta negativa do Estado brasileiro.
Ocorre que nem um emprego aqui conquistado será garantia da regularização migratória, pois no Brasil, em relação ao estrangeiro, o Estado tudo pode. Para os imigrantes, a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) é bem mais do que uma lembrança. A eles se aplica o Estatuto do Estrangeiro (Lei n. 6.815), assinado pelo general João Figueiredo em 1980, cujas principais características são o alto grau de restrição e burocratização da regularização migratória, a discricionariedade absoluta do Estado, a restrição dos direitos políticos e da liberdade de expressão, além de explícita desigualdade em relação aos direitos humanos dos nacionais.
É verdade que, à margem da lei, ocorreram avanços no Brasil, e acomodações entre a lei e a realidade migratória foram produzidas. Sem a revogação do Estatuto do Estrangeiro, contudo, não há como evitar um serviço à la carte. É o caso das empresas que desejam trazer trabalhadores estrangeiros, para quem o governo tem facilitado a tramitação dos pedidos de autorização para trabalho. Promove, assim, a migração seletiva tão sonhada pelos setores que necessitam de "mão-de-obra qualificada". Detalhe: a ser descartada quando não mais for necessária.
Cabe, então, questionar: quem ganha com a dificuldade de regularização migratória, além dos coiotes? No terreno da mistificação, talvez haja sentido em tornar impossível ou sofrida e lenta a regularização migratória.
Há quem tema uma invasão estrangeira, embora, apesar do fluxo contínuo de migrantes nos últimos dez anos, em pleno 2014, as maiores estimativas da presença de estrangeiros no Brasil não ultrapassem o percentual de 0,5% da população, muito menos do que os cerca de 1% de brasileiros que teriam emigrado para o exterior. Há quem confunda estrangeiro e criminoso, embora não exista estudo sério que comprove maior criminalidade entre os estrangeiros, em lugar algum do mundo. Ademais, a lei penal é igual para todos, dela não escapando nem brasileiros, nem estrangeiros.
Num país pródigo em surtos de dengue e endemias diversas, outro mito é de que os estrangeiros nos trarão doenças. Há até quem fale como se os estranhos, sobretudo se forem pobres e pretos, nos fossem roubar o paraíso. Trocando o mito pela realidade, nós que vivemos num país marcadamente desigual, onde campeiam violência, machismo, racismo e homofobia, temos uma grata surpresa: apesar de tudo, há quem aqui veja esperança e oportunidade de trabalho.
Em contrapartida, há quem calcule dividendos políticos ao atender demandas de setores específicos; para não olvidar os que costumam explorar a vulnerabilidade adicional dos estigmatizados como “clandestinos”.
Nas diferentes esferas federativas, o Estado também padece com a falta de uma lei decente. Não há estatísticas confiáveis sobre migrações, pela óbvia razão de que a situação irregular convida à sombra. O custo político também é elevado para os governantes, obrigados a enfrentar os fluxos pontuais de migrantes sem o devido amparo legal, o que acarreta grande desgaste para todos os envolvidos, como foi o caso na chegada dos haitianos ou dos ganeses. Sem o intenso trabalho de entidades sociais, alguns desses fluxos pontuais se converteriam em verdadeiras crises humanitárias.
Por tudo isto, o Ministério da Justiça criou uma comissão de especialistas que, depois um ano de trabalho, e sobretudo de escuta das instituições públicas e das entidades sociais que se ocupam do tema das migrações no Brasil, apresentou um anteprojeto de lei de migrações.
A palavra estrangeiro é substituída por migrante. O ideário da segurança nacional dá lugar ao alinhamento da lei com a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil. Uma autoridade migratória civil passa a se ocupar da regularização migratória, facilitada e desburocratizada, tornando possível que um migrante aqui permaneça regularmente por até um ano em busca de emprego. Os direitos entre nacionais e migrantes são equiparados, nos limites da Constituição.
Caso prospere, o anteprojeto honra uma dívida histórica do Brasil para com os migrantes que contribuíram, de modo decisivo, com seu desenvolvimento. Honra também a democracia, eliminando mais um entulho autoritário que parasita o presente e hipoteca o futuro do país.
Esperamos que, em breve, o Brasil se torne um exemplo de política migratória inclusiva, explorando todo o potencial da mobilidade humana internacional a seu favor. As migrações constituem um terreno privilegiado para que o Brasil se transforme num novo tipo de potência, abrangendo em suas políticas públicas os migrantes, e deles colhendo, mais do que seus impostos e sua força de trabalho, sua extraordinária riqueza cultural. A que sabemos discernir facilmente nos europeus pobres que aqui aportaram no passado, assim como nos ricos que hoje chegam, mas que nossos preconceitos, também importados, dificultam que a reconheçamos naqueles que mais se parecem conosco.
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Criação de lei de migrações é dívida histórica do Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU