Por: Jonas | 05 Mai 2014
"É fácil entrar no Brasil, mas é difícil aqui permanecer e trabalhar regularmente. Há direitos, mas são limitados e é difícil exercê-los. Ricos são bem-vindos, pobres bem menos. A sociedade valoriza muito seus antepassados imigrantes, mas raramente trata os imigrantes de hoje como gostaria que seus bisavós fossem tratados há décadas atrás", escreve Deisy Ventura, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, em artigo publicado pelo portal UOL, 03-05-2014.
Eis o artigo.
Dentro de poucas semanas, a Copa do Mundo dará ao Brasil imenso destaque nos meios de comunicação planeta afora. Será dito que o Brasil é um país de imigração e que a variedade de origens, traços e sobrenomes faz dele um país aberto e plural.
Mas também será inevitável que a Copa revele ao mundo qual é a situação jurídica do estrangeiro no Brasil. E a surpresa será grande, talvez até para os próprios brasileiros.
Em resumo, é fácil entrar no Brasil, mas é difícil aqui permanecer e trabalhar regularmente. Há direitos, mas são limitados e é difícil exercê-los. Ricos são bem-vindos, pobres bem menos. A sociedade valoriza muito seus antepassados imigrantes, mas raramente trata os imigrantes de hoje como gostaria que seus bisavós fossem tratados há décadas atrás.
Legislação
A lei em vigor no Brasil ainda é o Estatuto do Estrangeiro de 1980, assinado pelo ditador João Baptista Figueiredo, conforme o credo da segurança nacional. Já comprovada a colaboração direta dos Estados Unidos com o golpe de 1964, torna-se fácil entender que o problema da lei não era o estrangeiro em si, e sim alguns dos estrangeiros.
Logo, a discricionariedade - possibilidade de escolha ou margem de manobra para decisão, dentro da lei - do Estado quanto à permanência do estrangeiro em nosso território é absoluta, por meio de um processo altamente burocratizado de regularização migratória. Por sua lentidão e ineficiência, ele expõe, ainda hoje e inutilmente, centenas de trabalhadores estrangeiros à vulnerabilidade. Sem documentos, resta a precariedade.
Mesmo para o residente regular, a lei mantém numerosas proibições, parte delas nitidamente anacrônica. Por exemplo, o estrangeiro não pode organizar ou participar de desfiles, passeatas, comícios e reuniões cuja natureza possa ser interpretada como política; nem possuir, manter ou operar, mesmo como amador, aparelho de radiodifusão, de radiotelegrafia e similar.
Embora incompatível com a Constituição Federal de 1988 e com tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, o Estatuto do Estrangeiro sobrevive porque não há consenso a respeito de sua substituição. O que evoca a expressão "no man's land", cuja origem militar refere-se ao território entre duas trincheiras ou em disputa, onde não há proteção de lado algum e o risco de ser abatido por qualquer dos contendores é iminente.
Em sentido figurado, "no man's land" remete a um tema a respeito do qual os interesses antagônicos se equivalem, impedindo que uma decisão seja tomada.
Interesses envolvidos
No caso do Brasil, há por certo interesses antagônicos: do mercado, que defende a imigração seletiva, triando a mão de obra da qual precisa no momento, para depois descartá-la; dos conservadores, que se preocupam apenas em atrair e bem acolher os ricos, especialmente investidores; das polícias, que amiúde confundem estrangeiros com criminosos; e até mesmo de alguns setores do governo federal, que preferem esta lei ruim a uma eventual perda de poder, recursos ou prestígio.
Estas disputas, de que pouco se fala, aparecem, por exemplo, nas resoluções do Conselho Nacional de Imigração (CNIg). Forçado a preencher as lacunas de uma lei obsoleta e submetido à pressão de diferentes setores, o CNIg produziu uma colcha de retalhos, que vai do chamado "visto humanitário" para os haitianos ao procedimento célere para concessão de visto a quem vem trabalhar na Copa do Mundo ou na Olimpíada, desde que vinculado à Fifa ou ao Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos.
Há também desinteresses. Um deles é o do Congresso Nacional, no qual tramita, desde 2010, a Convenção das Nações Unidas sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e membros de suas famílias. A classe política a ignora solenemente, mas aprovar esta convenção seria um passo importante rumo ao reconhecimento de que migrar é um direito humano.
Apesar de tudo, é falso pensar que o Brasil não possui uma política migratória. Evidente que ele não possui uma política restritiva, de controle ostensivo de fronteiras, como é o caso da Europa e dos Estados Unidos. No entanto, embora fragmentada, opaca e casuísta, nossa política existe, e garante a mesma discricionariedade absoluta do Estado da época da ditadura militar.
Ademais, grande parte de sua execução está a cargo de um órgão de segurança, que é a Polícia Federal, por meio de trabalhadores terceirizados, cujo despreparo para tal função é proverbial.
Gol contra para o Brasil. A urbanização e a globalização econômica geraram, nas últimas décadas, fluxos migratórios lentos e contínuos. Não se trata de uma invasão, mas de uma certeza. Estima-se atualmente que, entre os cerca de 240 milhões de migrantes internacionais, metade deles se tenha dirigido ao Sul, tanto no sentido norte/sul como sul/sul.
Qualquer um de nós partiria em busca de uma vida melhor. Aliás, segundo o Itamaraty, 2,5 milhões de brasileiros encontram-se hoje no exterior, número muito maior do que qualquer estimativa da presença de estrangeiros no Brasil.
O Brasil só teria a ganhar caso investisse numa política migratória clara, capaz de garantir o igual tratamento entre migrantes, devidamente acompanhada de uma lei à altura dos desafios contemporâneos. Retirar estas pessoas do fogo cruzado da clandestinidade, acolhendo sua riqueza cultural e sua força de trabalho, é a melhor, senão a única, resposta ao crime organizado e à exclusão social.
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Política migratória brasileira é obsoleta e dificulta vida de estrangeiros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU