24 Fevereiro 2016
Entrevistamos o Arcebispo de Saltillo, Dom Raúl Vera, durante a passagem de Francisco pelo México. Analisando a postura do Papa contra o clericalismo (“não têm que andar fazendo tratos às escondidas com faraós”), Vera confessa que esperou um boicote à visita papal mais por parte das altas esferas eclesiásticas do que pelo governo mexicano. Além de falar sobre seus temores, fala dos êxitos da visita e de como o Papa segue mudando o mundo por optar radicalmente pelos pobres.
A entrevista foi realizada por José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 21-02-2016. A tradução é de Henrique Lucas.
Eis a entrevista.
Imagino que esteja feliz pelo sucesso da visita do Papa.
Na verdade sim, pois o Papa soube aproveitar todos os espaços que teve, não apenas para ressaltar as situações de decadência em que o povo mexicano vive, mas também o movimento de deterioração em que a Igreja se apresenta, e que ele salientou claramente no discurso para os Bispos.
Esses foram os dois aspectos que o Papa apresentou em todas as suas mensagens: por um lado, uma realidade vista pela perspectiva da teologia latino-americana, a partir dos pobres, pois em seus discursos eles estão sempre presentes; por outro, a crítica à estrutura que está causando danos severos a esses pobres. É que o mal no México é estrutural.
E quanto a nós, membros da Igreja, dos Bispos aos jovens religiosos, incluindo os sacerdotes, aos empresários que se supõe serem católicos... O Papa nos salientou com toda a clareza a responsabilidade que temos ante a essas situações. Ele quer que nós sejamos luz, sal da terra, signo de esperança.
Nesse sentido, fazendo um balanço da passagem do Papa, com certeza fico feliz. O Santo Padre sem dúvida teve que vencer muitos obstáculos. Uma visita pastoral unida a uma visita de Estado, todos sabemos o que significa. É complexo. Então, bendito seja Deus por permitir que o Papa pudesse ter liberdade de falar a seu povo!
Como pastor, ele nos exigiu compromisso, mas também nos deu esperança. Uma esperança que ele vê que vem do povo mesmo. O Papa sente muita responsabilidade pelo povo mexicano e por isso nos motivou a lutar contra esta situação em todos os lugares.
O senhor esperava que o Santo Padre fosse tão corajoso e profético?
Eu já estava convencido antes mesmo que ele chegasse ao México: temos um profeta. Pude seguir seus passos já quando ele foi aos Estados Unidos; na Bolívia estive no Encontro dos Movimentos Populares, naquele segundo Encontro Mundial... e o Papa sempre foi, em todos lugares, muito corajoso. Este Santo Padre que fala de uma forma que o povo pode entender. E isso acontece também quando se dirige a nós, os Bispos... Ele não nos fala em linguagem criptografada, pois a Igreja é o povo e a mensagem é para todos. O povo entendeu.
“Não têm que andar fazendo tratos às escondidas com faraós”, nos disse claramente. Que não fizéssemos tratos com o poder. Que não nos condicionássemos mais que o desejo do povo. Além disso, nos disse “não andem preocupados por coisas que a vocês não compete: sua opção é Cristo”. Então todo o mundo entendeu que nós Bispos somos sacerdotes. Nem políticos, nem empresários.
Quando falou a sacerdotes e aos consagrados, incluiu a nós, os Bispos. Nos disse que não nos deixássemos cair na tentação da inércia, porque produz resignação. Nestes termos, nos falou. O povo sabia o que o Papa estava dizendo. Ele nos fala a todos, não nos divide.
Nesse sentido, o Papa não se privou em demonstrar que o que tinha à sua frente era a massa de um país destruído. “Reconstruam o México”, nos disse ao final. O fez sentindo uma responsabilidade pessoal muito grande: ele é um homem muito humilde e sabe que se todos os discípulos de Cristo não reagirem, pouco poderá ser feito.
Sobretudo, ele manejou muito bem o tema da esperança e o enfocou ao grupo de jovens. Disse-lhes, “vocês são a riqueza”, e que essa riqueza deve ser cultivada para que cresça. A riqueza só é riqueza quando se transforma em esperança. “E essa esperança vai se manter firme se vocês entenderem sua dignidade.
Utilizou uma pedagogia muito simples porque sabia que iam lhe entender: se há alguém com ilusões e esperanças, são os jovens. E também ali falou a nós, os velhos. Foi uma verdadeira festa a que os jovens ofereceram em Morelia. O Papa semeou do seu jeito isto que chamam “carinhoterapia”: esperança e consolo.
Você acha que existirão resultados concretos para os pobres? As elites políticas estão dispostas a converter-se ou darão novamente uma resposta silenciosa?
Creio que o Papa, a partir de sua experiência de vida, acerta quando diz que todos os que cometeram erros podem confiar na misericórdia de Deus. Falou disto de uma forma muito especial. O Papa não descarta a possibilidade, pois conhece as interpretações que existem do Evangelho.
Sem dúvida, ele sabe aquilo que Jesus disse diante dos apóstolos: que difícil que é um rico entrar no Reino dos Céus! E os apóstolos se questionaram... Quem vai entrar então? “Para os homens é difícil, mas para Deus não é impossível”.
Por isso o Papa, que se sente pastor de todos nós, é consciente de que o que tem de ser organizado para que as coisas mudem é o povo, e não somente a Igreja. Além do mais, o Papa valoriza muito a organização da sociedade civil.
Em Santa Cruz de la Sierra falou aos movimentos populares com toda a clareza: “vocês, os excluídos, que se organizam para defender o direito à terra, ao teto e ao trabalho, são os que vão mudar o mundo”. O Santo Padre sabe que a mudança vem daqueles aos quais Jesus disse “Não temais, ó pequeno rebanho, porque a vosso Pai agradou dar-vos o reino”. Seu reino.
O Santo Padre, em definitivo, crê e confia que a mudança virá dos pequenos. Mas é a Igreja que deve anunciar o Reino aos pequenos, e por isso o Papa insiste, por outro lado, em que o clero não se resigne. Que não cruzemos nossos braços. Não nos falou de covardia. Nos falou diretamente de temor.
Do mesmo modo, disse diante dos empresários, que os escravistas terão que render contas a Deus. E diante do presidente da República, de sua esposa e de toda a classe política que estava na Basílica, Francisco disse que a “casinha dos sonhos de Maria” também está no país de onde deve desaparecer a corrupção e a desigualdade.
Quando em Juárez comentou o texto de Jonas, também disse que Nínive foi destruída porque não se pôde suportar a deterioração social. Voltou a enumerar problemas que refletem a terrível corrupção que existe no México. “Nínive estava destinada a destruir-se por esses motivos”, disse. “Mas Deus não desconfia do homem, e com sua misericórdia manda o profeta Jonas, para que o povo reaja. E Nínive se salva”.
Então, começou a falar do que acontece no mundo no que diz respeito a emigração, especialmente no México. Francisco disse que a condição para mudar é crer nos profetas. Cremos que se pode mudar ao introduzir a ética e a justiça: não há sustento para o mundo sem estes valores.
Falando com a hierarquia do episcopado mexicano, houve um “puxão de orelhas” nos bispos. Haverá mudanças de atitudes nas pessoas da hierarquia mexicana?
Depende de nós, se foi entendido o que o Papa nos disse com tanta transparência. Assumamos que estamos de braços cruzados, deixando que façam com nosso povo o que quiserem, o que fazem as estruturas de poder.
Estes faraós com os quais o Papa nos pediu que não estivéssemos fazendo tratos no escuro. Nos pediu que não criássemos aspirações que não nos competem, que nos retirássemos do clericalismo, que é um princípio de poder. Falou expressamente que os Bispos, se foi entendida sua mensagem, temos de falar claramente.
Teremos eleições no próximo mês de abril... Então, ao criar uma nova estrutura, ao mudar as direções, temos de fixar as prioridades, fixar o que tem importância. E assumir de uma maneira organizada o problema grave que enfrenta o México.
O Papa permitiu que o víssemos de diversas formas... Mas agora depende de que o tenhamos entendido. No meio de nossos irmãos, temos que nos converter em profetas. Seguir nisto com uma maior capacidade crítica para ver como houve coisas nas quais nos equivocamos por inteiro.
Na Igreja o poder sempre tem sido o contrapeso, e temos que ser autocríticos. O Papa explicou claramente que a Igreja não é uma sociedade perfeita: é formada por pessoas defeituosas que temos de fazer autocrítica. Nem sequer a organização da visita papal estava perfeita.
Você segue pensando, durante a visita papal, que o “efeito Francisco” se nota mais na gente do povo do que entre os Bispos?
Desde que o Santo João Paulo II veio pela primeira vez e eu era um sacerdote jovem, as coisas têm mudado muito. Me lembro de uma multidão que chegava até Puebla, e são muito quilômetros! Aí pensei eu na responsabilidade que nós temos, os Bispos. Isso era esperança, a do povo, e diante ela devíamos organizar a Igreja.
Para ver o Papa, pelo que representa, o povo espera toda a noite. Por isso seguramente considero que o povo, nosso povo pobre, é o que não mudou, mas permaneceu – eu fiz parte durante três anos, de 2011 à 2014, do Tribunal Permanente dos Povos – em firme esperança. Os pobres foram aos montes denunciar as coisas que o Estado mexicano e os empresários fazem contra eles.
Os pobres creem na justiça, e se organizam, são uma força incrível. No encontro com os movimentos populares na Bolívia, o Papa disse que os excluídos da terra são a esperança para este mundo. Creio que esse é o “efeito Francisco”: o impacto de sua palavra sobre os pobres.
O Papa usou como exemplos para o episcopado a Tata Vasco e Dom Samuel. Você acha que ele quer esse modelo?
Quando fui à tumba de Dom Samuel, me propus a estar perto do Papa. Porque eu sei que Francisco representa a maneira em que os Bispos latino-americanos entenderam o Concílio, desde a Gaudium et Spes. Em Medellín os Bispos disseram abertamente que temos de fazer uma evangelização dos pobres. Depois, os pobres seguiram sendo a base da reclamação de Aparecida. Com certeza, na atualidade o Papa Francisco demonstra por todos os lugares por que passa que seu discurso existe a partir dos pobres.
Não esqueçamos, por outro lado, que antes de Dom Samuel existiu o frei Bartolomeu de las Casas. Desde lá, em Chiapas, vimos brilhar diante do Papa, a raiz indígena. Dom Samuel foi o Bispo que mais fez pela liberação indígena, desde o Bartolomeu de las Casas. Eles foram humildes, e o Papa quer Bispos com espírito de serviço. Serventes do mundo que direcionam sua atenção as periferias existenciais.
Definitivamente ele não quer Bispos ensimesmados, que se criam superiores. E disse aos porta-vozes desde o princípio: “Não quero que elejam príncipes para o episcopado”. O Santo Padre quer Bispos profetas, não clericais. Nos disse com todas as letras na catedral do México. Bispos com liberdade profética, pessoas que tenham clara sua opção por Cristo, por causa do Reino.
O que você sentiu diante do túmulo de Samuel Ruiz, rezando junto ao Papa?
Senti o mesmo que senti no dia que soube que o Papa iria visitar o túmulo de Dom Samuel. Nesse momento soube que seria fantástico, que o Papa queria dar algo que equivale ao que deu quando abriu o processo de Dom Óscar Romero, com o objetivo de colocá-lo nos altares como um mártir. Para mim, recaiu a responsabilidade de palestrar dois meses antes ou menos, quando foi o aniversário de morte de Romero, no ano passado.
Para a conferência me pediram que falasse do valor dado ao martírio pela Igreja. Eu disse que a Igreja estava dando um passo imenso por ver o Monsenhor Romero mártir ao invés de dizer que “aquilo havia acontecido por causa da política”. Como se a fé cristã, ao traduzir-se na vida, não tocasse o político! Essa ficção acontecia enquanto, por conta do clericalismo, estávamos ligados ao poder, tanto econômico como político, e ninguém protestou...
O Papa disse desde o princípio, em sua missa do dia 19 de março de 2013, que a Igreja tem poder, que existe poder em São Pedro. No entanto, também disse que o poder da Igreja deve ser o serviço, e o amor. E que ambos tenham seu vértice na cruz, com os mais pobres. Assim foi a interpretação do Papa acerca do poder da Igreja, nesse sermão.
Então, definitivamente, nós temos que entender isto mais a fundo. Zelar pela liberdade das ovelhas, não criar distâncias, sermos afetuosos. Não estamos em um nível superior. Não temos que estar com os poderosos, senão mover o mundo a partir da humildade da pobreza.
Desde o signo que fez o Papa ir viver em Santa Marta, trocar o carro por um mais austero, sair de branco, sem a esclavina de seda e a estola de ouro... nos tem predicado simplicidade e naturalidade.
O Papa quer pessoas que creiam que o conceito de poder ou de superioridade não os separa dos pobres, mas que os assimila a eles. Por isso disse “quero pastores com cheiro de ovelhas”.
Tem-se dito muitas coisas negativas sobre estes Bispos latino-americanos, sempre do lado dos pobres, e no entanto, Romero chegou aos altares. Você crê que Samuel Ruiz também o fará?
Até este momento, a Diocese de San Cristóbal não movimentou nada. O povo é que dirá.
Que leitura você faz do fato de o Papa tê-lo convidado para que o acompanhasse em sua viagem ao México?
Bom, creio que foi o jornal El País que interpretou que havia sido o Papa quem me havia pedido. Foi eu quem disse que iria a todos os lugares que ele fosse no México. Não foi nada especial: ele nos pediu que anotássemos os lugares que quiséssemos acompanhá-lo e eu me inscrevi em todos. Eu quis acompanhá-lo, pois sabia que iria ser uma coisa esplendorosa. Eu não quis perder nada.
Definitivamente agradeço a Deus que tenha me permitido ir, pois o Santo Padre teceu o México ideal que todos nós almejamos e que, hoje em dia, é apenas um quebra-cabeças a se reconstruir. Nossa mente necessitava esperança, a referência de um México justo, no qual haja dignidade e paz para todos, onde o sentido do bem comum viva e todos tenhamos acesso às necessidades básicas.
Temos que construir o México com suas estruturas de todo o tipo, sejam elas políticas, econômicas... E que cada serviço tenha verdadeiramente como centro a pessoa, a convivência e a participação de todos. Construindo o México desta maneira, haverá um sentido de vida igual ao do coração de Deus.
Retomando a autocrítica, você sentiu falta que o Papa abordasse o tema dos Legionários de Cristo, em seu feudo em Michoacán?
Sinceramente, acredito que o Papa viu que havia coisas mais urgentes. Essa página do Padre Maciel está em nossa memória sem que nos recordem. Perceba que o mesmo Salmo diz que o as pessoas que sofrem não precisam se desesperar: Maciel já não está mais entre nós, por que nos preocuparmos, trazer a memória de novo... Não sei.
O Santo Padre realmente quis encontrar as crianças em Morelia e os disse que não permitiria que os fizessem mal algum. Foi o mesmo que disse aos jovens quando lhes advertiu não permitir que fossem seduzidos pelas riquezas da sociedade de consumo, pois a riqueza interior vale muito mais.
E quem errou com o Papa, para que não se enchesse a Praça do Zócalo? Os ingressos foram bem distribuídos? Que problemas ocorreram?
Devo dizer uma coisa sobre os famosos ingressos: para nós nos deram a desculpa de que não fossem clonados os ingressos. Estávamos de mãos atadas, não sabíamos nada, nem mesmo quando deveríamos buscá-los... O Papa chegava na sexta-feira e até terça-feira os ingressos estavam em suspenso!
Foi uma grande confusão que não entendemos. Nos disseram que tudo foi controlado pelo Estado Maior Presidencial e assim foi. Em minha vida eu havia visto que a Conferência Episcopal não dera os ingressos. Foi tudo muito estranho.
Não passaram pela Conferência Episcopal?
Não entendi por que mãos passaram. Creio que todas estas deficiências se devem a quem está com o poder nas mãos no México. Quais são suas intenções. Desde San Cristóbal, para tomar o avião rumo a Morelia, sofri com o controle policial e do Estado na rodovia. Se o Papa estava vindo, por quais motivos tínhamos de passar por isso? Por que estes tipos de eventos são utilizados pelo governo para mostrar o poder que tem sobre a população.
Então houve uma tentativa de boicotar a visita papal por parte de algum movimento político dos mais conservadores na camada eclesiástica? Ou apenas houve pouca colaboração...?
Bom, não posso responder a esta pergunta. Não me ocupei disso. Eu tinha muito mais reservas no que se refere às altas esferas da Igreja do que ao que diz respeito ao governo mexicano. Tinha muito medo disso. Mas, quando tudo começou, não tive mais medo. Nunca me preocupei, visto que a presença do Santo Padre era esplêndida. A preocupação veio antes, mas depois, somente calma.
Não via claramente, a princípio, a logística que teríamos. Tive de pegar o telefone quando me disseram que Bispo emérito não poderia participar, e o presidente da Conferência disse que não sabia deste assunto, sendo ele mesmo o presidente! Então ele não pode me responder. Mas, quando voltei a ligar para a secretaria, me disseram que o Bispo emérito poderia comparecer ao evento.
Mas sozinho.
Exatamente. Nós iríamos mandá-lo juntamente com uma pessoa. Como vamos mandar sozinho, como nos sugeriram, um homem de 95 anos?!
Terrível.
Expliquei que isso não poderia ocorrer e me disseram que ele poderia estar acompanhado. O que estava acontecendo então? Cada um respondia de diferentes formas. Sinceramente, aí havia algo. Eu não quis mais me intrometer e não me envolvi tanto.
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Raúl Vera, Bispo de Saltillo: “Com Francisco temos um profeta que não rejeita ninguém” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU