Por: André | 28 Setembro 2015
“A verdade é que o Papa Jorge Bergoglio transformou-se em uma figura política de relevância internacional que participa ativamente da agenda política, introduz temas na mesma e fixa posições a partir de uma perspectiva católica, cristã, mas também humanista e inter-religiosa. Para isso, coloca o acento na defesa do homem e da vida, e muito especialmente no cuidado dos pobres, dos excluídos, dos deslocados de qualquer tipo. O ponto que conecta todas as preocupações é formado pelo cuidado das pessoas e seus direitos. E seu slogan político são os três T: teto, terra e trabalho.”
A análise é de Washington Uranga, em artigo publicado por Página/12, 27-09-2015. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
O Papa Francisco está terminando hoje [domingo] sua visita aos Estados Unidos participando de um ato no marco do Encontro Mundial das Famílias. Será um encontro eminentemente religioso após dias muito intensos que tiveram, tanto em Cuba como nos Estados Unidos, uma forte marca política. O fato de que Jorge Bergoglio tenha escolhido encerrar seu périplo com uma celebração em tom religioso, que, além disso, será a mais massiva de todas, também deve ser lido como parte da estratégia do Pontífice. Em Filadélfia, terá o maior “banho de massas” (são esperadas mais de dois milhões de pessoas) e fará referências a questões claramente “pastorais”. Um duplo limite para aqueles que criticam seu perfil “político”, mas ao mesmo tempo uma nova manifestação de respaldo popular que o reafirma em seu papel de líder. Um broche de ouro para um périplo exitoso que começou em Cuba e que termina nos Estados Unidos após ter passado pela Assembleia das Nações Unidas, em Nova York.
Difícil de decifrar
Para muitos analistas, este Papa está se transformando em uma figura indecifrável em termos políticos e ideológicos clássicos. Ele é de direita? De esquerda? Liberal? Marxista? Dependendo do lugar em que se situa o autor da análise, cada um, mais de um ou todos estes qualificativos valem para Francisco. Mais. Se alguém se dá ao trabalho de analisar sua história pessoal e seus pronunciamentos na Argentina sobre muitos dos mesmos temas que agora aborda (desde a diversidade sexual até seu posicionamento político) seguramente poderá ler contradições. Salvo em um ponto: a defesa dos pobres, que sempre tem sido uma constante, antes e agora. Os admiradores e defensores de Bergoglio sustentam que não há, nem em suas manifestações nem em suas práticas, nenhum tipo de diferença ou contradição. Francisco, para eles, é um autêntico Bergoglio. Mas, existem outros pontos de vista.
O jornalista norte-americano Rush Limbaugh, costumeiro porta-voz da direita daquele país, defendeu sem papas na língua que a exortação apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), documento papal publicado em 2013, é “marxismo puro”. O texto, muito mais “religioso” do que a recente encíclica Laudato si’ (Louvado sejas), sobre a questão ambiental, incluía, no entanto, uma dura crítica ao capitalismo selvagem.
Stephen Moore, economista da Heritage Foundation, disse em Washington que o Papa “mostrou-se muito cético com o capitalismo e o livre mercado e creio que isso é preocupante” e concordou em que Francisco tem “tendências claramente marxistas”.
George F. Will escreveu no The Washington Post que “com o zelo indiscriminado de um converso, (o Papa) abraça ideias impecavelmente na moda, comprovadamente falsas e profundamente reacionárias”. E rematou dizendo que suas propostas “arruinariam os pobres, em cujo nome pretende falar”.
A esquerda
Parte da esquerda, sobretudo a de tradição marxista mais ortodoxa, continua tendo receios de Francisco. Não consegue acreditar na sinceridade de suas propostas, embora os temas da agenda e também muitas das posições coincidam com seus próprios postulados. Existe quase uma questão visceral de rechaço da Igreja católica e da sua institucionalidade. E para além do que diga, Bergoglio é o Papa do catolicismo, considerado retrógrado, reacionário e aliado ao poder antipopular. Para quem vê as coisas dessa maneira, não bastam os “banhos de massa” nem o apoio popular que, provavelmente, são lidos como uma expressão a mais de “alienação” religiosa.
As manifestações de entusiasmo perante as posições do Papa expressadas pelo presidente Barack Obama e outros porta-vozes norte-americanos operam a favor e contra, segundo os casos. John Kerry, o secretário de Estado norte-americano, disse estar “profundamente satisfeito, porque as prioridades da política externa dos Estados Unidos e os bons ofícios da Santa Sé coincidem em muitos temas”. E não se cansa de agradecer a Bergoglio, como também o faz Raúl Castro, a colaboração para a aproximação entre Cuba e os Estados Unidos. Bergoglio reedita, com Obama e do outro lado do espectro ideológico, o diálogo e as coincidências que nos anos 1980 uniram João Paulo II e Ronald Reagan, na época para lutar contra o comunismo.
Frei Betto, religioso católico brasileiro identificado com a Teologia da Libertação e um grande aliado de Cuba e de Fidel Castro, defende, ao contrário, que “toda a esquerda latino-americana que conheço está muito feliz com o Papa Francisco”, porque “é o primeiro Papa que tem claramente uma opção com os pobres e que denuncia as causas das injustiças, não apenas os efeitos”.
Como classificá-lo?
Mas, voltando à questão anterior: pode-se situar com sensatez o Papa Francisco em alguma “caixinha” político-ideológica?
Fortunato Mallimaci, reconhecido e prestigioso sociólogo da religião argentino, disse em declarações à agência Paco Urondo, que “um jornalista do New York Times me perguntou se o Papa era liberal, conservador ou de esquerda. Nada disso. É católico, porque o catolicismo é outra maneira de enfrentar essa concepção liberal e a marxista. Acabado hoje esse marxismo, a Igreja retoma seu discurso antiliberal, anticapitalista para catolicizar”, acrescentou. E sustentou que “o catolicismo não pensa a política afastada da religião”.
Para Eduardo Valdes, embaixador argentino junto à Santa Sé, “o Papa não é marxista, nem populista, nem peronista. É um cristão no sentido mais profundo e quer levar adiante a palavra de Cristo e a conduta de São Francisco de Assis”.
A verdade é que o Papa Jorge Bergoglio transformou-se em uma figura política de relevância internacional que participa ativamente da agenda política, introduz temas na mesma e fixa posições a partir de uma perspectiva católica, cristã, mas também humanista e inter-religiosa. Para isso, coloca o acento na defesa do homem e da vida, e muito especialmente no cuidado dos pobres, dos excluídos, dos deslocados de qualquer tipo. O ponto que conecta todas as preocupações é formado pelo cuidado das pessoas e seus direitos. E seu slogan político são os três T: teto, terra e trabalho.
Pode ser prematuro falar de Francisco como líder mundial. Mas ninguém pode negar sua incidência. Por méritos próprios para ler a conjuntura internacional e, a partir disso, interpretar qual pode ser a contribuição da Igreja e a sua pessoal. Mas, além disso, pela importância que a religião (as grandes religiões) joga no concerto mundial na brecha deixada pelas crises políticas e ideológicas.
Na Igreja
No lado interno da Igreja católica também há temores de mudança. Muitos conservadores estão “decepcionados”. Provavelmente, porque à luz de alguns antecedentes (dos papas anteriores e dos do Bergoglio bispo) esperavam outro discurso e maior proximidade com o poder hegemônico. Não concebem uma Igreja em confronto com o poder. Dizem-no, mas também receiam aquilo que chamam de “relativismo doutrinal”, fazendo alusão às aberturas de Francisco em temas que foram tabu para a Igreja (aborto, diversidade sexual, matrimônio). A bem da verdade, até agora o Papa não se afastou um milímetro da ortodoxia doutrinal. O que mudou é a atitude pastoral colocando o acento na aproximação com as pessoas concretas, com seus problemas e suas angústias.
No aparelho da Igreja há aqueles que se preocupam, porque veem a chegada de ares novos que talvez lhes façam perder o poder. Alguns, inclusive muitos bispos, preferem fazer-se de desentendidos de que algo está mudando ou de que já mudou. Outros, ao contrário, assinalam que “até o momento, Bergoglio não fez nada”, argumentando que haverá verdadeiras mudanças quando for modificada a forma de governo e a estrutura de poder ainda vigente e se avançar para um governo colegial. Para isso, há a necessidade de iniciativas muito fortes de Francisco que, embora tenha dado indícios de caminhar nessa direção, ainda estão longe de sua concretização.
Os “progressistas”, para qualificá-los de alguma maneira, estão satisfeitos com a agenda de Francisco e seus pronunciamentos. Confiam em que está havendo uma mudança que, admitem, era inesperada para eles no momento em que Bergoglio iniciou o seu pontificado. Basta ouvir os elogios de teólogos como Leonardo Boff ou Gustavo Gutiérrez.
Sabemos que os conteúdos não são separados das formas. Menos ainda neste tempo em que a cultura da comunicação traduz tudo em símbolos, em gestos, em imagens. E Francisco apóia seu discurso em uma gestualidade de proximidade, de jovialidade, de simplicidade e austeridade que repercute muito positivamente nas audiências em geral, católicas ou não. A tal ponto que o L’Osservatore Romano, jornal oficial do Vaticano, começou a publicar, pela primeira vez na história da Igreja, caricaturas do Papa. Como o fato de que o Bergoglio escolheu viver em uma residência austera este também é um símbolo de uma nova época.
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O efeito Francisco. Artigo de Washington Uranga - Instituto Humanitas Unisinos - IHU