02 Fevereiro 2016
Muito antes de o Papa Francisco falar de uma Igreja pobre para os pobres e de estar conduzindo-a às periferias, Dom Samuel Ruiz Garcia, da Diocese de San Cristóbal de Las Casas, construiu a Igreja no estado sulista de Chiapas.
A reportagem é de David Agren, publicada por Catholic News Service, 28-01-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Dom Samuel Ruiz Garcia é fotografado em 2006. (CNS/Victor Aleman)
Inspirado pelos ensinamentos do Concílio Vaticano II e dos encontros dos bispos latino-americanos em Medellín, na Colômbia, e em Puebla, no México, Ruiz demostrou uma opção preferencial pelos pobres, desacomodou os ricos e entrou em conflito com o Vaticano com a sua abordagem pastoral, especialmente pelas ordenações de diáconos casados e indígenas.
Francisco vai visitar Chiapas em 15 de fevereiro onde celebrará uma missa junto aos povos também indígenas, incluindo idiomas maias locais na celebração. Ele também vai rezar no túmulo de Ruiz, falecido em 2011 aos 86 anos, na Catedral de San Cristóbal de Las Casas. O evento está sendo visto como uma demonstração de respeito por um eclesiástico que, frequentemente, conflitou com a hierarquia católica, embora fosse um pioneiro na abordagem pastoral adotada pelo papa.
Francisco “não pode vir ao México sem visitar a Nossa Senhora de Guadalupe. Ele não poderia visitar Chiapas sem saudar o legado de Samuel Ruiz”, disse Gaspar Morquecho, antropólogo em San Cristóbal de Las Casas. “Estamos falando de nada menos que meio século de ministério social que começou na década 1960, tendo uma opção preferencial pelos pobres”.
A ida a Chipapas – parte de uma visita de seis dias ao México – destaca a preocupação do papa com as questões indígenas e com uma população que tem sido abandonada pela Igreja em grande parte nas Américas. Ao falar na Bolívia em julho passado, o papa se desculpou pelo papel da Igreja na “chamada conquista da América” quase 500 anos atrás.
Espera-se que a sua presença igualmente traga a atenção para um levante zapatista de 1994, quando um grupo rebelde coordenado por indígenas exigia direitos sociais, culturais e de terra. A questão indígena no México, onde tais populações são muitas vezes empobrecidas, vivendo nas localidades mais marginalizadas, continua sendo tão sensível no país que as autoridades eclesiásticas locais disseram que o governo mexicano preferia ver o papa visitar outros lugares.
Mas ver o papa viajar ao México e não ir a San Cristóbal de Las Casas é algo impensável, principalmente depois de ele reverter uma proibição das ordenações de diáconos indígenas imposta depois da aposentadoria de Dom Ruiz. O Papa Francisco também aprovou liturgias nos idiomas indígenas.
“Dom Ruiz precisou constantemente defender a si mesmo e a sua obra diante do Vaticano”, disse Michel Andrés, professor na Chicago Theological Union e que visita frequentemente Chiapas. “Ele costumava dizer: ‘Eu sou católico. Estes são os textos do Concílio Vaticano II, e eu estou seguindo os seus ensinamentos’”.
No final de 1959, São João XXIII elevou Ruiz a atuar, na maior parte, junto às populações indígenas, muitas das quais trabalhavam em condições de exploração em fazendas de café, recebendo pouco – quando recebiam alguma coisa –, não possuindo formação e sem falar o espanhol.
Analistas dizem que Ruiz não começou como um rebelde, mas assumiu a causa diante da pobreza dos povos indígenas em Chiapas. Ele ficou conhecido como “Don Samuel”, ou “Tata”, “pai” nas línguas maias. A sua diocese até mesmo incluía uma obra ministerial para o acompanhamento da “Madre Tierra”.
A discriminação corria solta em Chiapas, ao ponto de os indígenas serem proibidos de caminhar nas calçadas de San Cristóbal de Las Casas.
“A Revolução Mexicana dificilmente chegou a Chiapas, deixando latifundiários que formaram a elite local e que desfrutavam de relações estreitas com a hierarquia católica. Don Samuel rompeu com essa dinâmica porque descobriu a realidade dos pobres e via que o Evangelho poderia trazer uma transformação”, disse o padre dominicano Gonzalo Ituarte Verduzco.
A discordância com as elites era um produto da abordagem pastoral de Ruiz, que valorizava as tradições indígenas, formava líderes locais, falava sobre justiça social e enfatizava a participação. Ituarte disse que isso tudo organizou os indígenas de uma maneira vista pelos latifundiários como ameaçadoras, com alguns deles apelidando o bispo de comunista.
Ruiz aprendeu as línguas indígenas e incansavelmente viajou pela diocese, que cobre uma região de montanhas muitas vezes inacessíveis, precisando chegando em mulas a vilarejos remotos. Ele passou a desenvolver uma “Igreja autóctone”, que incorporaria tradições indígenas permitindo-lhes participar, pelo menos em parte, em seus próprios termos.
“O sistema de dominação fazia com que os indígenas chegassem somente até a porta da Igreja. Eles eram batizados, e nada mais (...) A ideia de Don Samuel é que os indígenas devem entrar na Igreja, serem parte ativa, com todos os direitos”, disse Ituarte. “A Igreja se aculturou em vários lugares, e nós acreditamos que os indígenas das Américas têm o direto de que a Igreja seja também deles, levando em conta a sua cultura e identidade”.
Ruiz formou centenas de catequistas. Alguns deles deram continuidade e se tornaram diáconos permanentes, formados para atuar em áreas sem muitos sacerdotes. Os sacerdotes dizem que apenas homens nas culturais maias podem ser considerados figuras de autoridade, embora suas esposas são automaticamente vistas como autoridades também.
A questão de acolher uma teologia indígena trouxe acusações de se estaria misturando marxismo com religião, e de se estar implementando conceitos da Teologia da Libertação. O Vaticano proibiu a ordenação de diáconos indígenas depois da aposentadoria de Ruiz.
A influência do bispo foi além dos assuntos de Igreja.
“Todos os candidatos a presidentes paravam para vê-lo, alguns para cumprimentá-lo, e alguns para falar sobre política”, informou Morquecho.
Em 1974, Ruiz organizou um congresso dos povos indígenas, o primeiro do tipo desde a chegada dos europeus nas Américas. Analistas dizem que este movimento atiçou a conscientização indígena e, por fim, levou ao levante zapatista de 1994, em que rebeldes pegaram em armas contra o governo e usaram táticas das quais Ruiz discordava.
“Participantes de suas equipes pastorais, catequistas, diáconos e candidatos ao diaconato estavam nas fileiras” dos zapatistas, embora eles haviam deixado de lado os seus cargos na Igreja, disse Morquecho.
“Se não fosse por Don Samuel, não haveria um exército zapatista”, disse Ituarte. “A diocese nunca propôs criar um exército (...) Mas a conscientização nestas comunidades fez com que fosse possível surgir um exército zapatista”.
Ruiz se transformou num mediador na disputa, apesar da desconfiança do governo.
“A certa altura eles o culparam, mas rapidamente perceberam que a única pessoa que poderia mediar era Don Samuel”, completou Ituarte.
“As causas defendidas pelos zapatistas eram as mesmas que estavam sendo defendidas há anos: a luta campesina, a luta indígena”, embora sem o conflito armado, acrescentou.
Os anos finais do bispo de Chiapas foram difíceis. Os Acordos de San Andrés, de 1996, que visavam garantir algumas causas zapatistas, não foram plenamente respeitados, alegam os zapatistas. No ano seguinte, organizações paramilitares massacraram 45 membros de um grupo pacifista católico conhecido como Las Abejas [as Abelhas] durante um encontro de oração, três dias antes do Natal.
“Este foi o Natal mais infeliz na vida do bispo”, disse o padre jesuíta Pedro Arriaga, atual porta-voz diocesano.
Ruiz se aposentou em 2000 e deixou a diocese logo depois. O seu coadjutor, Dom Raul Vera Lopez, foi enviado para a cidade de Saltillo, ao norte, movimento que alguns sacerdotes na diocese dizem ser um sinal de descontentamento dentro da hierarquia católica mexicana para com a abordagem pastoral e com o papel da Igreja na situação política de Chiapas. O número de católicos que deixam a Igreja e vão para outras congregações também aumentou, deixando Chiapas com o número mais baixo de católicos no país.
O legado deste bispo ainda se faz presente, no entanto. O sucessor de Ruiz, Dom Felipe Arizmendi Esquivel, abraçou uma abordagem pastoral semelhante, algo não visto em outras dioceses mexicanas.
Ituarte disse que os indígenas de Chiapas estão, aos poucos, mostrando atitudes mais assertivas, tendo ganhos em áreas como o comércio, a política e educação, assumindo postos mais destacados na sociedade.
“A transformação no México e a sua visão do mundo indígena têm muito a ver com Don Samuel”, disse ele. Este religioso “deixou uma Igreja que está viva ao lado de um povo, povo que redescobriu a sua dignidade, que valoriza a sua identidade e apoia aqueles que compõem a maioria, os povos indígenas”.
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Em Chiapas, México, Dom Ruiz deixa grande legado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU