21º Domingo do tempo comum – Ano B – Só Tu tens palavras de vida eterna

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23 Agosto 2024

"Jesus pergunta então a Pedro que permanece diante dele: e você? “Não quer partir?” A pergunta de Jesus é firme, intrigante, exige posicionamento. Pedro então faz sua confissão de fé: “onde iria? Se Tu tens palavras de vida eterna”. Pedro confia, reconhece Jesus como o Santo de Deus, como o Salvador. Responde pelos doze, assume a responsabilidade também por eles.

"E nós? A pergunta feita a Pedro nos é dirigida também hoje. É pergunta que exige uma escolha, um compromisso. Exige de nós fazer uma opção fundamental que determina quem nós somos. As palavras duras de Jesus exigem compromisso concreto. Essa é a dificuldade do cristianismo, que não pode se limitar a penitências e abstinências, mas que consiste em abrir mão da autossuficiência e entregar-se à comunidade reunida por Cristo em serviço, seguindo o caminho de Cristo, em doação total, colocando a Ele no centro de nossas vidas."

A reflexão é de Lucíola Cruz Paiva Tisi, teóloga leiga, bacharel em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (2017) e mestranda em Teologia sistemática também pela PUC-Rio. Atua junto à Congregação dos Agostinianos da Assunção como leiga e na paróquia agostiniana da Santíssima Trindade no Rio/RJ,  no catecumenato  de adultos e como ministra extraordinária da eucaristia. Também integra um grupo de reflexão e estudos de leigos do qual faz parte.

Referências bíblicas

1ª leitura: Js 24,1-2.15-18
Salmo: Sl 34 (33)
2ª leitura: Ef 5,21-32
Evangelho: Jo 6, 60-69

Eis o texto.

Para comentar essa passagem do evangelho, que começa se referindo às palavras duras de Jesus, escandalosas, como ele mesmo expressa aos discípulos, precisamos voltar à perícope anterior, ao trecho do Evangelho de João, onde encontramos a passagem que se referem aos discípulos ao falar de tais palavras. Jesus, em Jo 6,51, fala que dará a sua Carne para a vida do mundo, que Ele é o pão vivo descido dos céu. E um pouco adiante, no versículo 54, diz: “quem come de minha carne e bebe de meu sangue tem a vida eterna”. Jesus faz uma promessa, uma afirmação e usa o verbo no presente: a promessa se realiza no já, no agora, no hoje da história dos discípulos e discípulas, assim como no hoje de nossa história, de nosso cotidiano.

Os discípulos da época e nós discípulos e discípulas de hoje, não compreendemos direito a que se refere essa afirmação. "Esse modo de falar é duro demais. Quem pode continuar ouvindo isso?" (Jo 6,60). Jesus, então, ilustra com a previsão de sua ressurreição, não como reavivamento, voltar a viver, mas como permanecer vivo, mesmo fora da matéria, do corpo concreto que possuímos. Tudo o que foi dito, assume um outro significado diante da ressurreição, da glorificação pelo Pai e do dom do Espírito Santo que dela procede. Ele afirma que o Espírito é que vivifica e que a carne para nada serve. No entanto, ao falar de carne e espírito se refere às duas maneiras de viver, sem oposição ou separação, mas como complementação da integridade humana. Ao se referir à carne, fala da entrega do ser humano a si mesmo, de seu fechamento e sua autossuficiência, refere-se à materialidade visível que nos envolve, realidade concreta que construímos a nossa volta e que acreditamos fazer parte de nós, mas não faz. É externa, nos rodeia, nos insere, nos proporciona sensações de conforto, prazer, alegrias passageiras, mas que não é o que realmente somos. Ao se referir ao espírito fala da vida que ilumina o ser humano e abre seus olhos para discernir a Palavra.

Na primeira leitura (Js 24,1-2.15-18) vemos o chamado de compromisso. Josué reúne os representantes das tribos logo na chegada a Siquém, organiza a renovação da aliança - a aliança feita entre Deus e seu povo na figura de Abraão - pronunciando um discurso que recorda os grandes feitos do Senhor a favor de seu povo. Essa memória, exige uma opção, uma escolha. Pergunta “a quem desejam adorar” e os hebreus respondem de modo enfático e seguro: “Longe de nós abandonar ao senhor Deus para servir a outros deuses”. “Ele realizou ante nossos olhos esses grandes sinais: protegeu-nos ao longo de todo o caminho”. “Também nós serviremos ao Senhor”. Assim como o povo de Israel, com discernimento e gratidão, é preciso rever a nossa história pessoal e comunitária e recordar as graças e dons a nós dispensados para também podermos responder: E nós? Será que preferimos os deuses do mundo que presumimos serem capazes de nos dar bem-estar e progresso? Palavras duras...

O salmista (Sl 34/33)) vem também fazer memória e agradecer: “Bendigo e testemunho a graça aos humildes” - testemunho de acompanhamento, de fidelidade, de participação - e diz ainda: “o Senhor resgata a vida de seus servos, nenhum que nele tem refúgio será punido”. Como podemos ter refúgio em alguém com quem não nos relacionamos, em alguém com quem não temos laços? Para isso não é necessário compromisso? Mesmo o servo se compromete com seu patrão, e em outra passagem do Evangelho de João (Jo 15,15) Jesus também afirma já não sermos servos, mas amigos porque só o amigo se revela ao outro de maneira sincera. Onde fica o nosso compromisso então com tão grande amigo que se oferece como refúgio? Palavras duras...

Na Carta aos Efésios (Ef 5,21-32) Paulo pede a submissão de uns aos outros, pede humildade, empatia, e a nossa colocação a serviço em tudo! (v.24) Compara o amor esponsal ao amor de Cristo pela Igreja, povo de Deus, todos nós. Cristo se entrega pela humanidade, pela salvação de todos. Se faz servo e sofre por nós, pela nossa salvação, para a nossa santificação. Deixa-nos seu legado, seu exemplo, sua caminhada no meio dos feridos, dos vulneráveis, marginalizados se pondo sempre disponível a serviço deles. Foi por isso motivo de escândalo, provocando as autoridades da época. “Quis sua Igreja santa e irrepreensível, sem mancha nem ruga” diz o apóstolo (v. 27), comparando-a à esposa de um amor esponsal que deve ser profundo como o amor que temos por nós mesmos. Compara a Igreja a seu corpo como sua esposa, derramando sobre ela o seu amor; pede, no entanto, a ela, o serviço e o respeito imbuído de amor e reconhecimento de ser ele o seu Senhor. Palavras duras...

Jesus nos deixa como legado Ele mesmo, como alimento; quer comungar conosco, habitar em nós, e quer que também nós nos façamos comunhão, partilhando o pão, partilhando a vida com os irmãos e que sejamos também, alimento de amor e de esperança, nos fazendo Igreja, nos fazendo serviço. Pede que caminhemos até ele, e que com ele continuemos o caminho. Essas são as palavras duras, porque são palavras de compromisso. Os discípulos perceberam que há o compromisso que precisa ser assumido. Nós também precisamos compreender que receber o Cristo não pode se limitar a um ato ritual, precisa ser ato transformador, interior e exterior, concreto. É preciso para isso buscar o essencial da nossa existência, deixar para trás o desnecessário. O compromisso implica em colocar o amor em primeiro lugar. Os discípulos de Jesus acharam suas palavras duras, suas exigências difíceis de serem cumpridas. Vão embora, a evasão é devido à firmeza de suas palavras...

Jesus pergunta então a Pedro que permanece diante dele: e você? “Não quer partir?” A pergunta de Jesus é firme, intrigante, exige posicionamento. Pedro então faz sua confissão de fé: “onde iria? Se Tu tens palavras de vida eterna”. Pedro confia, reconhece Jesus como o Santo de Deus, como o Salvador. Responde pelos doze, assume a responsabilidade também por eles.

E nós? A pergunta feita a Pedro nos é dirigida também hoje. É pergunta que exige uma escolha, um compromisso. Exige de nós fazer uma opção fundamental que determina quem nós somos. As palavras duras de Jesus exigem compromisso concreto. Essa é a dificuldade do cristianismo, que não pode se limitar a penitências e abstinências, mas que consiste em abrir mão da autossuficiência e entregar-se à comunidade reunida por Cristo em serviço, seguindo o caminho de Cristo, em doação total, colocando a Ele no centro de nossas vidas. Consiste em acreditar na grandiosidade de Deus que Cristo nos aponta, com sua glorificação consequente de toda a sua vida, paixão, morte e ressurreição, atendendo ao chamado, ao convite. É esse o compromisso ao qual somos chamados, compromisso de amor.

Jesus Cristo se faz alimento e bebida. Alimento e bebida asseguram a vida, e o caminhar até ele é voltar ao lugar onde Ele estava desde o princípio, na gloria do Pai; ele é o caminho, para voltar a Deus, de onde viemos e para onde devemos retornar. Na obscuridade do momento da cruz, é preciso discernir a sua glória, e reconhecer a verdade, suas palavras, seus gestos. Os relatos posteriores à ressurreição nos fazem compreender o processo e sua força, sua missão de amor, de obediência e de fidelidade.

Cabe então a nós refletirmos: Para onde iríamos depois de descobrir o tesouro escondido?

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