“As palavras que vos falei são espírito e vida” (Jo 6,63)
A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 21º Domingo do Tempo Comum, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto de João 6,60-69.
Segundo o evangelista João, Jesus resume assim a crise que vai se estabelecendo em seu grupo: “As palavras que vos falei são espírito e vida”. Jesus desperta um “espírito novo” naqueles que o seguem; suas palavras tem um peso e ativam vida; são palavras inspiradoras porque brotam do mais profundo do seu coração; são palavras provocativas, que colocam em questão o verdadeiro motivo daqueles que o seguem.
Por isso, elas despertam uma ressonância no interior dos ouvintes e desencadeiam um movimento de ruptura com o antigo, movendo-os a um distanciamento das “palavras domesticadas” pela tradição e pela religião. As palavras de vida pronunciadas por Jesus podem gerar um movimento capaz de orientar o mundo para uma vida mais digna e plena.
Um dos maiores dramas de nossa atual cultura é que temos esvaziado as palavras de sentido, e, com frequência, as utilizamos para expressar coisas totalmente diferentes e até opostas ao seu significado original. Chamamos liberdade o que na realidade é arbitrariedade e imposição; felicidade passou a significar consumo e vaidade; a qualidade de vida está ligada à quantidade de coisas; negócio passou a ser grosseira especulação e roubo; ordem estabelecida à dominação e à injustiça; diplomacia ao engano e à mentira; sinceridade à falta de respeito; amor à atração física, ou ao desejo de posse... Uma gravíssima desvalorização da palavra acaba se expressando na desvalorização da ética, da política, da vida. Há palavras que, de repente, se põem de moda entre nós, expressões felizes que por força da repetição acabam se esvaziando.
Os “comerciantes da morte” mataram as palavras, arrancaram dela o coração e as transformaram em meras máscaras ocas, em sons sem alma, com os quais pretendem nos seduzir, nos enganar e nos manipular. Não há pior escravidão que a mentira; ela oprime, tortura, impede sair de si mesmo para viver uma comunicação sadia com quem pensa, sente e ama diferente. Não há nada mais desprezível que a eloquência de uma pessoa que não diz a verdade. É preciso libertar a consciência dizendo sempre a verdade. É preferível perturbar com a verdade que agradar com adulações.
Vivemos hoje uma “crise gramatical”, ou seja, temos cada vez menos palavras. O leque de palavras carregadas de sentido é muito limitado. Daí a dificuldade de encontrar palavras para nomear a experiência de Deus, para expressar as grandes questões da vida, para dar sentido a uma busca existencial. Vivemos tempos de “fratura da palavra” e, portanto, “fratura de sentido”. E a raiz disso tudo está na carência de uma interioridade, lugar da gestão das palavras de sabedoria que inspiram nossa vida.
Vivemos cercados de “palavras vãs”, condenados a uma civilização que teme o silêncio (há demasiado ruído em nós e em torno a nós). Fala-se muito para dizer bem pouco. Jornais, revistas, tevê, outdoors, celular, whatsapp, internet, correio eletrônico... há demasiado palavrório. Carecemos de profundidade. Se, segundo o Gênesis, Deus fala e com sua Palavra cria, as palavras nos fazem sentir como “deuses”: com elas podemos fortalecer a vida ou asfixiá-la, expressar amor ou ódio, elevar o outro ou afundá-lo... Há palavras que são golpes, bofetadas; e palavras que são carícias, estímulos, abraços. Com as palavras podemos criar ou destruir, dar vida ou matar. A palavra pode se converter em insulto e condenação, mas também em canção ou poema que cultiva a sensibilidade e nos abre à beleza. “Tomem cuidado contra a murmuração inútil, e da maledicência preservai a língua. Não há palavra oculta que caia no vazio e a boca mentirosa mata a alma” (Sab 1,11).
No momento final do discurso no cap. 6, de João, Jesus busca aclarar as condições de pertença à sua nova comunidade: adesão a Ele e revestir-se de sua proposta de vida; deixar que Sua Palavra desperte palavras mobilizadoras em nosso íntimo, palavras abertas, oblativas e que apontem para o sentido de nossa própria existência. Mas, não basta estar em seu grupo para garantir a adesão ao modo livre de ser e viver de Jesus; há aqueles que resistem aceitar seu espírito e sua vida. Sua presença em torno a Jesus é fictícia, seu seguimento se restringe a um ritualismo vazio. A verdadeira crise no interior do cristianismo sempre é esta: cremos ou não cremos em Jesus? Somos seguidores(as) de uma Pessoa ou meros cumpridores de alguns ritos, normas, doutrinas… que nos fazem estéreis e esvaziam todo compromisso com os outros?
São muitos os que resistem aceitar o “espírito e vida” de Jesus. O narrador do Evangelho deste domingo nos diz que “muitos discípulos o abandonaram e não mais andavam com Ele”. É na crise que se revela quem de fato são os verdadeiros seguidores de Jesus. A opção decisiva é sempre esta: quem volta para trás e quem permanece com Ele, identificados com seu espírito e sua vida? Quem está a favor e quem está contra Seu projeto em favor da vida?
Para os despreparados (imediatistas) a crise representa estresse e colapso. Para os atentos (contemplativos), significa um trampolim para o aprendizado e para o novo. A crise provoca uma decisão que abre um novo caminho de crescimento e rasga um horizonte de possibilidades que vão moldando um novo estilo de vida. Não havendo decisão, protela-se a crise, e as forças positivas nela contidas nunca chegam a se manifestar. Crise é o momento crítico da decisão, onde algo é deixado para trás e se abre um patamar superior que possibilita uma nova forma de vida. Nos momentos de crise vive-se com especial intensidade o “kairós” (momento de graça), onde o essencial surge com mais clarividência. Tudo o que é acidental, periférico, perde sua consistência e validade. É chance de vida nova num outro nível e dentro de um horizonte mais aberto. Se compreendermos que a crise é o lugar generoso onde se prepara o amanhã, então teremos a oportunidade de amadurecer e de dar um salto para dentro de um horizonte mais rico de vida, humana e divina. Nesse sentido, a crise é oportunidade para despertar nossa humanidade; ela nos humaniza.
O grupo que seguia Jesus começa a diminuir, mas Ele não teme o fracasso, não se irrita e não pronuncia nenhum julgamento contra ninguém. Só faz uma pergunta aos que permanecem junto a Ele: “Vós também quereis ir embora?” Seguimento é questão de decisão pessoal, é exercício da liberdade. Esta é a pergunta que ressoa no interior de cada um de nós: Quê queremos? Por quê permanecemos? É para seguir a Jesus, acolhendo seu espírito e vivendo seu estilo? É para trabalhar em seu projeto? A resposta de Pedro é exemplar: “Senhor, a quem iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna”.
Os que permanecem o farão por Jesus. Só por Ele; comprometem-se com Ele. O único motivo para permanecer em seu grupo é Ele. Ninguém mais.
O messianismo triunfal fica definitivamente excluído. Jesus não busca glória humana ou divina, nem a promete aos que o seguem. Segui-lo significa renunciar toda ambição, e aceitar a entrega total de si mesmo em benefício dos outros.
Fazer memória das crises na vida pessoal: elas foram ocasião para uma mudança ou acomodação, movimento em direção do novo ou retraimento? Medo ou ousadia? Criatividade ou “normose”?
- Que implicações tem para sua vida o fato de ser seguidor(a) de Jesus? Faz diferença?...