‘O Tempo e o Vento’ narra as contradições e potencialidades de uma terra ao sul do Brasil que tem, desde sua origem, uma grande interferência das oligarquias rurais
Não é possível contornar a história da literatura e do Rio Grande do Sul sem passar por Erico Verissimo. As transformações de sua vida são a moldura daquilo que se tornaria sua obra e seu legado artístico e cultural.
“Eis um romancista que traz atrás de si essa bagagem de leitura, que sabe articular e contar histórias e que viveu um período doloroso de decadência. A decadência é, para os artistas, muito constitutiva”, descreve o escritor, professor e pesquisador Sergius Gonzaga, na entrevista concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “A geração de 1930, como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Drummond, no caso da poesia, o Manuel Bandeira, todos gênios da literatura brasileira têm atrás de si essa derrocada social e familiar. Isto os leva a conceber, adequar e adaptar-se a novos procedimentos, a novos padrões de existência”, complementa.
Do ponto de vista político, Gonzaga define Erico, a partir da autodescrição do romancista, como um “liberal humanista”, definição capaz de desagradar as correntes mais ortodoxas de ambos os espectros políticos, mas coerente com a trajetória de um dos principais autores gaúchos do século XX. “Mesmo uma democracia bastante imperfeita, é melhor do que um sistema ditatorial, um sistema despótico. E ele [Erico] se definiu, então, como liberal humanista. Qual é o limite do liberal? Como o liberal defende as liberdades, ele pode defender os direitos humanos, a democracia obrigatoriamente. O liberal tem que ser democrata, está dentro da concepção. Mas nem sempre as ideias dos liberais, junto às suas justas crenças na liberdade e na democracia, são acompanhadas por aquilo que é indispensável a qualquer visão política de mundo. Isto é, a compaixão pelos desfavorecidos e pelos que não são abonados. Então, ao colocar esse adjetivo ‘humanista’, o Erico acrescia a ideia de que os regimes que fossem liberais e democráticos teriam que, concomitantemente, ter políticas sociais a favor daqueles que estavam na parte mais baixa da pirâmide social. É esse o sentido”, explica.
Sergius Gonzaga (Foto: Reprodução do Facebook do entrevistado)
Sergius Gonzaga é formado em Letras pela UFRGS e doutor pela mesma instituição com a tese “O esplendor da ficção: o ‘boom’ da literatura latino-americana”. Foi professor de Literatura no Colégio Israelita Brasileiro e de História da Literatura Ocidental na FAPA, na década de 1970, e de Literatura e Cultura Brasileira, na UFRGS, por mais de 40 anos. Atuou como diretor da Editora da UFRGS entre 1985 e 1994 e do Instituto Estadual do Livro (IEL) nos anos de 2003 e 2004, sendo responsável pelo site “Literatura/Educação” do grupo Terra entre 2002 a 2006 e fundador do pré-vestibular Unificado e do Colégio Leonardo da Vinci. Foi secretário de Cultura de Porto Alegre de 2005 a 2012 e coordenador de Literatura e Humanidades da Prefeitura de Porto Alegre de 2017 a 2023. É autor de inúmeras obras, como: “Curso de Literatura Brasileira” (8. ed. Leitura XXI), “Erico Verissimo” (2. ed, IEL) e “Josué Guimarães” (2. ed., IEL).
IHU – Como Erico Verissimo chegou a Porto Alegre vindo de Cruz Alta, depois da falência da farmácia da família, e como ele ingressou no mundo da literatura?
Sergius Gonzaga – O Erico vem com muita audácia, coragem e com uma ambição praticamente impossível de ser realizada no Brasil daquela época – até hoje é muito difícil –, que é viver exclusivamente da literatura. Mas um conjunto de fatores positivos possibilitaram que isso ocorresse.
Ele encontrou um emprego na Editora Globo, se ele não estivesse conseguido o trabalho na Editora teria que trabalhar em um açougue ou mercadinho. Lá na Globo logo conseguiu fazer traduções.
O Erico vinha munido de uma sólida cultura, talvez não organizada, mas uma sólida cultura de leitura, porque tinha dois tios muito cultos, um que lhe ensinou francês e outro inglês, e assim ele chega em Porto Alegre. Esse rapaz que chega na cidade com 25 anos, tem um background intelectual, uma força de leitura que é impressionante e que vai ajudá-lo. E o fato de trabalhar na Editora Globo constituiu certamente um acaso feliz, que o ajudou trabalhar com aquilo que era a sua ambição.
Lendo as histórias de outros autores do século XX, como, por exemplo, o Gabriel García Márquez, o Mário Vargas Llosa, o próprio Júlio Cortázar, eles têm em comum a crença no poder da literatura ao mesmo tempo que acreditam poder viver dela.
IHU – O que caracteriza a Porto Alegre dos anos 1930 e como esse cenário social, político e cultural aparece em suas obras?
Sergius Gonzaga – Erico, ao mesmo tempo, vem para Porto Alegre não apenas para se tornar um escritor, mas porque o mundo cruzaltense tornara-se para ele muito asfixiante. A ruptura com o pai foi dolorosa e talvez, até mesmo, violenta.
A falta de perspectivas de Pelotas, a decadência econômica da família, procedente da oligarquia por parte dos pais – dos avós paternos – e descendente de uma classe média do campo que também tinha falido – dos avós maternos. Ou seja, ele tem uma experiência que será retratada em suas obras. É essa experiência de sufoco, de mundo acabrunhante de uma cidade, também em declínio – outrora poderosa e, mas naquele momento, em declínio. Erico vai retratar isso em uma cena famosa, que não nos interessa para essa entrevista, no romance Um Lugar ao Sol (1936).
O Erico vem para Porto Alegre em busca da literatura, liberdade, soberania e de ar, enfim, de nova atmosfera. Por isso, basicamente todos os seus protagonistas vêm do interior, são jovens como ele e querem alcançar, como é o título do romance Um Lugar ao Sol. Ele consegue fazer isso do ponto de vista de uma investigação sobre o sentido da vida, de uma forma talvez um pouco superficial, mas a partir de uma investigação mais complexa dos novos valores da nova classe média – classe à qual ele vai integrar após sair da categoria dos pobres. Ele intui, genialmente, os valores novos aos quais essa classe média almejava e que não tinha convicção, não tinha certeza quais eram esses valores.
O velho mundo oligárquico estava começando a ruir e, portanto, aqueles valores tradicionais que constituíam o horizonte médio, não só da oligarquia, mas de todas as classes sociais [estavam em transformação].
Mas o que ele encontra em Porto Alegre é a possibilidade, primeiro, de ascensão social via literatura e, segundo, a percepção que em Porto Alegre era muito mais clara que em Cruz Alta, dessa nascente – chamava-se antigamente pequena burguesia – pequena classe média, um pouco aturdida pela movimentação do país e da cidade.
Porto Alegre é uma cidade que cresce muito nos anos 1920 e 1930, transfigura-se. É aquela cidade provinciana, medíocre mesmo, que enriquece com a chegada de vários grupos étnicos e muitos interioranos que aqui vêm. A cidade oferece um leque de opções de emprego e condições para pessoas que tivessem um certo nível educacional e audácia de ascender.
Os romances de Erico tratam frequentemente desse tema, desse “arrivismo positivo”. E o Erico, ao se interrogar a respeito da ascensão, esse questionamento se faz juntamente com a ideia de novos procedimentos éticos – éticos aqui no sentido de comportamento. Ou seja, a nova classe média precisava de uma nova escala de valores.
E Erico oferece esses valores nos seus romances explicitamente, em especial no livro mais vendido da sua carreira, Olhai os Lírios do Campo (1938). Ou seja, eis um romancista que traz atrás de si essa bagagem de leitura, que sabe articular e contar histórias e que viveu um período doloroso de decadência. A decadência é, para os artistas, muito constitutiva.
A geração de 1930, como Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade, no caso da poesia, o Manuel Bandeira, todos gênios da literatura brasileira têm atrás de si essa derrocada social e familiar. Isto os leva a conceber, adequar e adaptar-se a novos procedimentos, a novos padrões de existência. É isso que o Erico discute claramente em Um Lugar ao Sol, em Caminhos Cruzados (1935), mas sobremodo, em Olhai os Lírios do Campo. O Erico justifica a busca pela ascensão, a luta mais do que pela sobrevivência, por uma boa vida, a luta pela cultura, mas desde que essa ambição tenha um viés também, não apenas de acumular dinheiro, imóveis, qualquer coisa, mas no sentido de gestos de bondade e de valorização dos elementos culturais. A ideia de mundo do Erico é de um mundo de beleza, bondade, pleno emprego, mas é também um mundo onde tudo se resolverá de forma individual. Ou seja, é através da conscientização, é chegando à consciência do outro, é percebendo que todos têm o direito de ter coisas similares e de ter chances na vida.
É essa percepção solidária do Erico, mas ela não se dá sob o arco, sob o peso de qualquer tipo de ideologia coletivista, seja de qual ordem for. Estávamos na época das grandes utopias coletivistas da União Soviética e, por que não dizer também da Alemanha nazista e da Itália – naturalmente mesclado com o imperialismo e a dominação etc. Então, este Erico que aqui chega vai escrever sobre essa cidade e essa cidade vai reconhecê-lo como o seu escritor. Não só essa cidade, como esse movimento, esse fluxo, essa nascente que é muito significativa numericamente, classe média que despontava no horizonte do país. Já existia em São Paulo e no Rio, mas Porto Alegre, em especial, porque será a cidade que até recentemente tinha o maior índice populacional de classe média no conjunto total da população.
Então, essas camadas intermediárias serão aquelas que encontrarão no Erico, não apenas belas histórias, histórias com emoção, às vezes com sentimentalismo, às vezes até um pouco demasiado, mas vão encontrar, simultaneamente, ótimas narrativas. Há uma concepção que ele tem de contar bem histórias, municiado que estava pela leitura dos grandes clássicos da literatura, que se soma e sintetiza com essa perspectiva de compostura de dignidade humana. Isso faz com que ele seja lido, especialmente pelos jovens, em proporções extraordinárias.
Nos anos 1940, talvez o Jorge Amado, então, venha a se equiparar em prestígio e sucesso a Erico. Muitas vezes ambos eram atacados por alguns críticos. Primeiro porque crítico, às vezes, não gosta que alguém faça muito sucesso. Segundo porque, apesar de serem pessoas generosas, embora fossem distantes ideologicamente e politicamente, Jorge Amado era militante comunista já nos anos 1930 e, Erico, é o que nós chamaríamos hoje de um liberal no sentido inglês, um liberal humanista, seria o liberalismo do Partido Trabalhista ou do Partido Social Democrata, ou os Democratas, um pouco mais à esquerda, dos Estados Unidos.
Mas o Erico não tinha nenhuma simpatia por essas formulações apriorísticas que prometem uma igualdade absoluta e depois acabam, na verdade, convertendo-se em regimes terrivelmente totalitários e desiguais. Então, isso é o que me parece justificar o sucesso de livros como Olhai os Lírios do Campo, fora a história, que de fato é, principalmente da primeira parte, bem emocionante, bem contada e bem narrada. Enfim, virtudes positivas que o Erico tinha como escritor, independentemente das ideias.
IHU – Que retrato Erico Verissimo fez da oligarquia? Por que sua crítica era importante?
Sergius Gonzaga – Esta questão me parece muito interessante. É preciso compreender que a crítica mais forte do Erico à oligarquia, da velha oligarquia, já aparece, como eu disse, em Um Lugar ou Sol, e teria a sua culminância no Incidente em Antares (1970), o último dos romances do Erico. Já é um romance quase de realismo fantástico, puxando para o fantástico, com aqueles mortos voltando para o centro da cidade – é mais uma alegoria.
No entanto, a grande obra do Erico é realmente O Tempo e o Vento. E se lermos essa obra na sua na sua totalidade, [veremos que] é um romance magnífico. É o grande romance do Erico, é o grande romance histórico brasileiro. É um romance que fez sucesso em alguns países onde foi traduzido na época, como Alemanha e Estados Unidos, um pouco menos na Argentina e na França.
Na Alemanha, até a chegada de Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, O Continente [era o maior sucesso]. As pessoas leem O Continente, que é chamado de O Tempo e o Vento, mas que, na verdade, O Tempo e o Vento são três grandes blocos narrativos, que é O Continente (1949), O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961).
Mas o que fica de O Tempo e o Vento, é a visão que o Erico traz da história do Rio Grande do Sul, entre os seus primórdios colonizadores, quando chegavam aqui os paulistas e os portugueses, simultaneamente pelo litoral e os paulistas pela serra, descendo em direção ao Pampa.
O Tempo e o Vento é a genialidade literária, é o livro superior, é o livro que vai permanecer, os outros eu não sei dizer, porque não saberemos o que permanecerá, mas se pudesse apostar, eu diria que essa obra permanecerá. Isso porque ele vê a formação histórica do Rio Grande do Sul a partir da classe dirigente, que seria o que nós chamamos de oligarquia rural.
Embora no começo tenhamos a aventura daquela família sorocabana da Ana Terra que aqui chega, vejamos os índios e os padres jesuítas, logo em seguida, especialmente a partir do episódio que sucede Um Certo Capitão Rodrigo, quando já há o sucessor do Capitão Rodrigo, o Bolívar. Já neste momento a família Cambará, que era uma família que começou com um gaudério, um gaucho [em espanhol], que na verdade era “recebido a bala” geralmente nas fazendas, era quase um pária social. O Rodrigo é indiscutivelmente o gaúcho idealizado. A partir de Bolívar, essa família tornou-se grande proprietária e passa a ser uma das duas famílias dominadoras da cidade imaginária de Santa Fé, mescla de Cruz Alta, Bagé, Uruguaiana, “sei lá” de quantas cidades da metade sul do Rio Grande do Sul.
Na história, os Cambarás são vistos simultaneamente como oriundos de uma classe despossuída e oligarcas e isso é importante, porque a visão do Erico não é de desmistificar a história do Rio Grande do Sul, embora ele não fosse “um ufanista com essa história”, no sentido mais rústico da palavra, mas sim desejava mostrar a complexidade dessa colonização, desse domínio e desse poder incrível que a oligarquia gaúcha teve. Porque essa oligarquia dominou de maneira ampla o país, próceres gaúchos sob o comando de Getúlio Vargas dominaram o país entre 1930 e 1945 e tiveram peso político decisivo, pelo menos, até meados dos anos 1960. Getúlio ficou no poder praticamente 38 anos. Impressiona como uma elite regional pode ter essa capacidade de poder, à medida em que, primeiro, tinha um projeto para o país.
Projeto que mal ou bem os republicanos executaram aqui no Rio Grande do Sul de forma autoritária, totalitária, muitas vezes desvalendo-se do assassinato, do crime, do silenciamento da oposição, mas que transfigurou o Rio Grande do Sul de um estado “semibárbaro” para um estado desenvolvido. Em dado momento chegou, do ponto de vista do desenvolvimento humano, a ser o mais adiantado do país, com menor taxa de analfabetos, com uma consciência política que os outros estados não tinham, uma consciência política coletiva, que sempre impressionava – isso já é passado –, mas que impressionava os paulistas, os cariocas, enfim, os demais brasileiros.
Ele captura, com essas mesmas antenas que tinha capturado de uma maneira um pouco ainda rápida, breve, o mundo urbano, a modernização. Porque tudo aquilo que eu falei a respeito de Porto Alegre dos anos 1930, significa uma cidade que se modernizava velozmente, com todas as consequências de uma modernização, de uma urbanização em que as relações humanas tornam-se mais densas, complexas, têm maior abrangência e a vida muda – é diferente a vida na cidade e da vida no campo. Mas ele consegue, no romance O Tempo e o Vento, fazer a seguinte façanha: ao mesmo tempo em que é um romance épico, que tem um lado de saga épica, é também crítico. Ou seja, ele consegue mostrar facetas do real, ele consegue ter uma abrangência que, por exemplo, o José Lins do Rego, ao retratar a oligarquia açucareira, não teve, porque na verdade eles são mostrados como decadentes e ele tem nostalgia. O Jorge Amado tem uma coisa parecida, mas ele é menos rico em variantes, digamos que o arsenal das experiências humanas e das paixões humanas é mais limitado no Jorge Amado do que no Erico Verissimo.
É possível ler O Tempo e o Vento percebendo que havia, apesar da brutalidade daquela gente e da aspereza daquela vida, uma grandeza indiscutível. Como também havia sordidez, baixezas, sobremodo, muita violência – o sangue jorrava os borbotões no Rio Grande do Sul. Então é essa dinâmica, essa capacidade dialética de absorver os aspectos positivos e negativos dessa colonização, é que dá a ela essa sua extraordinária amplitude, uma amplitude que nenhum outro romance histórico brasileiro conseguiu atingir.
IHU – Como Olhai os Lírios do Campo se organiza a partir de uma filosofia salvacionista, como o próprio Erico descreveu sobre sua obra, e como o autor olhava para a sua própria obra?
Sergius Gonzaga – Sim, a obra é salvacionista. Ele está, de alguma forma, sendo pedagógico, quase educativo. Já n’O Tempo e o Vento, ele não apresenta com a mesma espessura, o que favorece o texto. Porque o ideal do romance é que as ideias nasçam dos confrontos diretos com a existência, que nasçam das ações humanas. As discussões de ideias na literatura normalmente são um pouco tediosas. Para que elas sejam interessantes, é preciso que elas sejam vividas.
Mas, sem dúvida nenhuma, sobre Olhai os Lírios do Campo, o Erico diz “eu tenho constrangimento do sucesso desse livro”. Mas, a primeira parte é muito boa e muito atual, ainda que se referindo a uma Porto Alegre nascente da década de 1930. Na segunda parte, o narrador e o personagem começam a transmitir conceitos sobre a vida, certas abstrações e concepções teóricas sobre a existência e o livro perde em vigor.
Em relação ao Olhai os Lírios do Campo, eu quis explicar, sobremodo, as razões do sucesso: Coadunou com uma nascente classe que vinha, que estava estudando, a classe média estava ingressando nos colégios, as primeiras universidades não tinham sido criadas ainda, mas já havia os cursos universitários de Direito e Medicina. Havia oportunidades para as pessoas e diante de um mundo que se transfigurava de forma candente, era preciso encontrar nova escala de valores existenciais. É isso que ele propunha.
IHU – Por que Verissimo caracterizou Saga, de 1940, como seu pior livro? Do que se trata o livro?
Sergius Gonzaga – Saga é um romance que o Erico considerava o seu pior livro. É uma opinião também dos críticos que se debruçaram sobre sua obra.
Quando ele publicou Saga, o principal crítico brasileiro de então, Álvaro Lins, [fez uma crítica contundente] – eu cheguei um dia a falar com ele, era um advogado muito culto, muito sofisticado, católico de formação, mas seria hoje o católico aberto, cosmopolita. Juscelino Kubitschek designou Álvaro Lins para ser embaixador do Brasil no governo salazarista e ele protegeu lá aqueles que eram oprimidos, que tentavam escapar de Portugal, era uma grande pessoa.
O Álvaro Lins disse o seguinte: o Erico é um grande talento de romancista, mas é um mau escritor. Com isso ele queria dizer que o Erico estava escrevendo demais, mas que tinha talento, sabia contar histórias e manejar a técnica – não falei da técnica, mas isso é uma outra questão que tem que ser abordada.
Mas, em Saga, o Erico é movido por ideais justos, porque houve a Guerra Civil na Espanha, que foi uma antecipação da Segunda Guerra Mundial. Esta última colocou, de um lado, nazistas e fascistas e, de outro, a humanidade. A Segunda Guerra colocou a França, a Inglaterra e mesma União Soviética lado a lado. [Era uma época em que] A maior parte das populações tinha simpatia pelos republicanos contra os fascistas. E o Erico resolveu dar um depoimento também sobre isso.
Assim, escreve esse romance. O problema é que, para escrever sobre guerra, a pessoa tem que se informar muito e o Erico ainda não estava preparado, pois era um escritor que ainda não havia descoberto a sua verdadeira essência, o último grão da sua criatividade. Então, realmente, é um livro muito ruim. A parte de Porto Alegre já é ruim, o Vasco vai lutar na Guerra Civil Espanhola, nada convence. Um grande romance tem que ser persuasivo.
Se lermos Guerra e Paz, Crime e Castigo, Madame Bovary, Grande Sertão: Veredas, a Paixão Segundo GH, o leitor tem que acreditar que aquilo está ocorrendo, tem que dar a máxima impressão de realidade. E não é o caso. Percebe-se que há um certo teor, um certo tom, uma certa dicção de falsidade sobre o modo da experiência do Vasco na Guerra Civil Espanhola.
IHU – Erico Verissimo se descrevia como um liberal-humanista. No contexto de Erico Verissimo, o que é esta posição?
Sergius Gonzaga – Essa é uma questão também muito importante, a ideologia do Erico. Eu já disse que ele, na verdade, professa os melhores valores liberais. Hoje, o liberal está deturpado, tem até um Partido Liberal aqui num país grande, o maior país da América do Sul, da América Latina, que se chama “Partido Liberal” (é uma ironia).
Mas ele apoia o liberalismo naquilo que tem de positivo: a defesa dos direitos humanos, a defesa da liberdade, da plena liberdade de expressão, de escolha, e, fundamentalmente, a defesa da democracia.
Eu que era um jovem militante de esquerda não gostei do livro O Senhor Embaixador na época. Porque o Erico não tinha nenhuma simpatia pela União Soviética, como também, por outro lado, fazia duras críticas aos Estados Unidos, onde ele morara por um tempo.
Mas, mesmo uma democracia bastante imperfeita, é melhor do que um sistema ditatorial, um sistema despótico. E ele se definiu, então, como liberal humanista. Qual é o limite do liberal? Como o liberal defende as liberdades, ele pode defender os direitos humanos, a democracia obrigatoriamente, claro. O liberal tem que ser democrata, está dentro da concepção. Mas nem sempre as ideias dos liberais, junto às suas justas crenças na liberdade e na democracia, são acompanhadas por aquilo que é indispensável a qualquer visão política de mundo. Isto é, a compaixão pelos desfavorecidos e pelos que não são abonados. Então, ao colocar esse adjetivo “humanista”, o Erico acrescia a ideia de que os regimes que fossem liberais e democráticos teriam que, concomitantemente, ter políticas sociais a favor daqueles que estavam na parte mais baixa da pirâmide social. É esse o sentido.
Ele não quis ficar como “liberal” porque poderia passar a ideia de que defende liberdade no geral, liberdade nos negócios e não tem nenhuma percepção e não quer ter dos problemas sociais do mundo. Não só sociais, pois o Erico também é um pacifista militante, sempre defendendo a paz, criticando abertamente no romance O Prisioneiro a intervenção americana no Vietnã. Uma vez o Luis Fernando me disse que “o pai era um social-democrata” – seria esse social-democrata dos modelos alemão e americano. Eu poderia até estar dizendo aqui no Brasil, no tempo em que o Partido Social-Democrata era social-democrata.
IHU – Como a literatura de Erico e Luis Fernando Verissimo dialogam?
Sergius Gonzaga – A rigor, entre Erico e Luis Fernando, há diferenças e há aproximações. A diferença substancial reside no fato de que um dedicou sua vida a escrever romances. Ele [Erico] tem uma autobiografia magnífica, o primeiro volume do Sol de Clarineta é uma obra-prima, tem excelentes livros de viagem, o livro México, o livro Israel em Abril, Gato Preto em Campo de Neve, A Volta de Gato Preto, são de primeira classe.
O romance tem uma perspectiva totalizante que o torna mais – não consigo encontrar o adjetivo correto – aberto à totalidade do humano, porque o romance se desdobra. Erico tem os grandes romances, como O Tempo e o Vento, como O Senhor Embaixador ou Incidente de Antares, que têm vários planos, vários focos, várias perspectivas, portanto é uma arte das artes da prosa. Sem dúvida nenhuma, a prosa é a arte melhor para se trabalhar, produzir, desde que se produza, e é muito difícil também por isso mesmo. O romance teria que ser comparado com a poesia, embora também sejam completamente distintas nas suas estruturas, na sua formulação, na sua linguagem, na sua “gramática literária”.
A crônica é um gênero menor, porque se faz no dia a dia, o Gustave Flaubert, dizia ele, escreveu 50 vezes o Madame Bovary, no tempo que se escrevia com pena de ganso. A crônica o sujeito escreve uma vez, dá uma rabiscada ali, porque tem que entregar na tarde do dia anterior. Os grandes cronistas brasileiros – não tem ordem de qualidade, todos são grandes – são: Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino e Luis Fernando Verissimo. Poderia colocar ainda a Clarice Lispector, mas seus textos eram “menos crônicas” e “mais contos”. Portanto, essa comparação entre ambos parece difícil de ser efetivada.
Se tu tivesses me perguntado, “achas que os dois vão ficar na história literária”? Eu diria sim. Mas acredito que o Erico, por ter feito sua carreira em um gênero de maior permanência por si próprio do que a crônica, e essa permanência não é só da necessidade urgente que o cronista tem de entregar o trabalho amanhã de manhã, e o romancista com frequência não tem isso. A não ser o Dostoiévski, que teve que fazer lá em poucas semanas O Jogador, sob pena de ser preso. As potencialidades do romance são muito superiores às da crônica. Além disso, o romance trata do cotidiano, mas, por exemplo, quando trata da política, se vê os grandes romancistas.
Eu li um livro um romance genial muito bom, cerca de um ano atrás, Tempos Ásperos, em que o Vargas Llosa pega a invasão da Guatemala por tropas americanas e com o auxílio de um ditador de extrema-direita, o Trujillo, para derrubar um governo social-democrata que havia lá na Guatemala. Então o autor dá um toque, faz um quadro. Nos grandes romances históricos, eles inscrevem as paixões, as atitudes humanas e os comportamentos humanos dentro de um quadro histórico que tem que ser nítido e, principalmente, um quadro histórico que atue sobre a personalidade, sobre a vida, sobre a concretude existencial dos protagonistas. A crônica, não.
Por exemplo, o Luis Fernando Verissimo tem um livro que reuniu todas as suas crônicas sobre o Collor – um delicioso livro de crônicas. Mas, o Collor, para quem hoje nasceu nos anos 1990 e não se dedica com muito afinco na história do Brasil, é um nome longínquo, é como para mim Washington Luis ou como para ti, o nome do Marechal Dutra.
A crônica tem um compromisso com o imediato, não é só com o tempo de entrega da crônica, o leitor tem que se reconhecer imediatamente e o cronista não tem condições de estabelecer um quadro, um cenário sedutor, tem que dizer isso em duas linhas. Então, os romances do Erico vão permanecer, O Tempo e o Vento vai permanecer e os outros continuam sendo lidos.
As crônicas do Luis Fernando, muitas delas, talvez, até, são perecíveis. As grandes crônicas dele parecem ser a alguns cartuns que fazia e a capacidade de, fora da órbita política, fora da órbita do imediato, surpreender os costumes do seu tempo.
Erico traçou e constituiu literariamente um enorme painel das novas situações humanas que a nova classe média de então vivia e com a qual se defrontava e diante da qual se sentia um pouco indeciso, vacilante, hesitante. E a mesma coisa faz o Luis Fernando, só que a nova classe média do Luis Fernando é outra, não é aquela dos anos 1930, que hoje já seria o que nós chamamos, na sociologia, de classe média tradicional. Ela ousou, mas não ousou muito, ousou, mas manteve-se fiel ao patriarcalismo, não tão rigidamente, mas ao patriarcalismo, à religiosidade tradicional e a uma ideia de compostura rígida.
Enquanto o Luis Fernando pegou a barafunda resultante da revolução dos costumes dos anos 1960, que explodiu aqui no Brasil já no início dos anos 1970, marcado por um “esquartejamento dos comportamentos tradicionais”. E a mim surpreende que ele tenha feito isso, porque era um homem de vida reservada, de vida que não era propriamente marcada pela trepidação. Ele enxergou como o pai dele tinha enxergado – essa é a proximidade.
Luis Fernando viu os novos costumes, a revolução dos costumes e as novas relações. Eu adoro Comédia da vida privada, Histórias de amor e Noites no Bogart porque essas comédias refletem as angústias e as metamorfoses, especialmente, de uma geração como a dele, a minha que hoje são pessoas que têm acima de 60, 65 anos e que viveram aquele momento histórico dos anos 1960 e 1970, até que nos anos 1980 esses novos valores começam a se consolidar e a maioria passa a ser aceita quase universalmente. Então, esta é a grande proximidade entre ambos.
A palavra retratista dá uma ideia de pura imitação da realidade. O grande escritor foca, retrata e, ao mesmo tempo, cria. O grande escritor tem que ser o inventor também da realidade.
Eu diria assim, Porto Alegre dos anos 1930 é a cidade de seu tempo, mas também é uma Porto Alegre que o Erico inventou, porque está inventada ali nos seus romances. E, assim, ambos inventaram, refletiram, mostraram e tem lá a sua criatividade. Não foi uma mera fotografia. Havia uma vontade de forma, uma intenção artística e um processo imaginativo. O processo imaginativo do Luis Fernando é absolutamente inacreditável, é fabuloso; ele escreveu milhares e milhares de crônicas. Agora, claro, muita coisa perecerá em função do imediatismo da crônica.
IHU – Como a questão técnica do significante foi trabalhada por Erico ao longo de toda a sua carreira e como ele se tornou um autor consagrado?
Sergius Gonzaga – Essa pergunta do significante está na moda. O significado e o significante precisam ter uma relação dialética.
Mas há, de fato, uma ideia que é comum nos tempos de crise, de que a literatura deve ser o reflexo das contradições sociais e das vivências imediatas dos indivíduos e que ela, a literatura, o seu peso, a sua importância, o seu valor reside no seu aspecto denuncista. Isso, muitas vezes, acarreta [em um viés pedagógico] – e comprova-se na história vendo-se os autores do realismo, muitos autores do realismo europeu, hoje totalmente esquecidos. Aqui no Brasil também tivemos autores do Romance de 1930, que faziam graves e importantes denúncias sociais, mas cuja obra não transcendia a denúncia, a reivindicação. Muitas vezes essas obras traziam, também aquilo que eu falava pouco como um ponto negativo na literatura, um certo viés pedagógico, a ideia de dar ensinamento. Acabam virando obras de sociologia que não têm a profundidade de uma obra sociológica e fracassando do ponto de vista literário.
Mas os dois elementos são essenciais: não basta ter só um significado, porque o significante em si só se manifesta com significado, em plena adequação. Mas essa plena adequação significa ter um grande tema, saber tratar esse grande tema, ter uma visão sobre esse tema e ter um estilo sobre esse tema também.
A literatura é forma e também, essencialmente, linguagem. Isso Drummond disse em seu programa: “procura a poesia, a poesia reside nas palavras, penetra surdamente no reino das palavras, ela não está nos acontecimentos”. Drummond diz que não está nos acontecimentos, não está no suicídio, não está no amor e não está na dor. Ele não quer dizer que isso não esteja aqui, que não seja matéria-prima da literatura. Ele está dizendo, no entanto, que se não tiver, “um estilo”, um trabalho formal, uma ânsia pelos procedimentos técnicos, inovadores, ou enfim, que se adequem ao texto, esse tipo de literatura que não presta atenção ao que está sendo chamado de significante, não resiste, ela é denúncia, apenas denúncia, que pode ser válida como denúncia. Pode até ter sua importância sócio-histórica considerável, mas não constitui aquilo que é a fonte da permanência da literatura, que é a maneira como o sujeito escreve, como compõe, a como articula as camadas internas e a tessitura do texto, isso é indispensável. Tão indispensável quanto um bom tema e uma visão rica e multiforme sobre esse tema.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Sergius Gonzaga – Eu quero falar de três livros do Erico que são importantes. Nos três o Erico corre o risco de impregnar os seus textos de uma crítica social que pudesse sobrepujar a questão da linguagem. Quando eu falo linguagem, não estou falando apenas do estilo, estou falando das estruturas narrativas, da forma de narrar, como compor, como colocar o personagem, enfim, toda aquela maquinaria que a grande literatura exige.
São três romances que tiveram muito impacto. O primeiro, Senhor Embaixador. Quando era um jovem de esquerda, não gostei porque, na verdade, era uma revolução num país da América Central, uma revolução feita por vários grupos “ideológicos”, mas no qual se sobressai um grupo comunista que, pouco a pouco, vai alijando os demais, tomando o poder, empolgando o poder apenas para o próprio grupo e, à medida que vai fazendo isso, também vai iniciando uma série de fuzilamentos em praça pública, onde todo mundo leu claramente na história de Cuba. Mas Cuba ainda nos anos 1960, nos corações das pessoas jovens, não só os jovens, mas basicamente nos jovens, fremia muito, porque era a ideia de que seria possível construir uma sociedade socialista no modelo marxista, no modelo da ausência de propriedade privada, com liberdade, o que mostrou que não deu certo.
O Prisioneiro é também um forte ataque do Erico aos Estados Unidos. Eu lembro que na época chegamos a chamar o Erico de “escritor direitista” e ele vem e lança um ataque duro contra a guerra do Vietnã, contra as torturas que eram aplicadas na guerra, contra a intervenção americana no Sudeste Asiático em última análise.
E o terceiro, Incidente em Antares, que foi de todos os mais vendidos, foi um livro que, de alguma forma, ajudou a conscientizar, a reforçar a ideia de que era preciso lutar pela democracia. E vejam que o final do livro é, de novo, uma reafirmação dos princípios humanistas, mas sobremodo também liberais do Erico, porque termina da seguinte maneira, para quem não lembra ou não leu: um menino vendo um muro, uma palavra, liber. Ele está passeando com o pai, um estudante que estava escrevendo fora metralhado e o menino pergunta, “pai, que palavra é essa?” E o pai, não responde, dizendo “vamos saindo daqui, vamos saindo daqui, vamos embora”. Aí o filho se volta e complementa. E, em caixa alta, entra, pelo menos na primeira edição, não sei se nas demais, Liberdade. Exatamente no momento mais repressivo da ditadura militar brasileira.
Portanto, são romances importantes e bons de ler, que nem sempre as pessoas leram e eu os recomendo.
Incidente em Antares é muito famoso, campeão de vendas dos anos 1970 no Brasil. O Analista de Bagé, do Luis Fernando foi campeão de vendas nos anos 1980 no Brasil. Estou falando da boa literatura, da grande literatura.