A falta de uma cultura de risco não tem permitido enxergar essa necessidade de enfrentar as mudanças climáticas e mitigar seus efeitos, afirma vice-presidente da Sociedade de Ecologia do Brasil
Enquanto os parlamentares se preparam para votar o orçamento de 2025 no próximo mês, a previsão orçamentária sinaliza quais serão as prioridades públicas neste ano e quais áreas tendem a ter recursos reduzidos. Uma delas é a gestão de riscos e desastres ambientais cujo orçamento passará de 1,9 bilhão para 1,7. Somente no mês de maio, a ajuda do governo federal ao Rio Grande do Sul, amplamente atingido pelas enchentes, foi da ordem de 62,5 bilhões.
O corte de recursos federais não surpreende, diz Marcelo Dutra da Silva ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. “Isso só indica uma única coisa: que a tragédia de maio não foi suficiente para nos educar; para nos reposicionar quanto à necessidade de priorizarmos investimentos que permitam adaptar as nossas cidades frente aos eventos de um clima que tende a ser hostil ao extremo”. No Rio Grande do Sul, complementa, “outros municípios nem sequer estão demonstrando preocupação com eventos futuros. Estão reconstruindo da forma que é possível e nada se fala sobre prevenção e adaptação para novos eventos”.
Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp, Silva diz que a tendência é o estado ser atingido novamente por “chuvas mais volumosas e frequentes. E tudo pode ficar mais intenso durante o El Niño, acompanhado de tempestades, com granizo, descargas elétricas e ventos fortes. Este é o cenário do novo normal gaúcho”. Entretanto, adverte, a falsa impressão de que todos os problemas decorrentes das enchentes já foram resolvidos nos últimos meses “é o que mais atrapalha”.
Marcelo Dutra da Silva é graduado em Ecologia pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel), mestre e doutor em Ciências pelo PPG em Agronomia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Leciona na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Instituto de Oceanografia. É coordenador do Laboratório de Ecologia de Paisagem Costeira (LEPCost) e vice-presidente da Sociedade de Ecologia do Brasil.
IHU – A previsão orçamentária federal deste ano propõe uma redução de 200 milhões para gestão de riscos e desastres ambientais, passando de 1,9 para 1,7 bilhão. O que isso indica?
Marcelo Dutra da Silva – Primeiramente, importa dizer que o que vivemos no Rio Grande do Sul, no último ano, foi pesado, difícil e muito triste. A tragédia climática de maio nos alcançou com tanta força e foi tão violenta naquele momento que nos projetou entre os maiores desastres climáticos do planeta. As imagens de destruição ganharam o mundo e mobilizaram esforços de ajuda, que chegaram de todos os lugares. Parecia que, com tudo aquilo acontecendo, a classe política, os setores econômicos, as pessoas, ou seja, todos nós passaríamos a ter um novo comportamento em nossas práticas, escolhas e decisões. Mas que nada!
Na sequência, já no processo eleitoral, durante a campanha para prefeitos e vereadores, ficou claro que poucos estavam dispostos a falar sobre o que aconteceu e medidas de adaptação necessárias para evitarmos novas perdas, inclusive de vidas, em novos eventos climáticos extremos – haja vista que 80% dos prefeitos gaúchos candidatos à reeleição garantiram um novo mandato. Prefeitos que em seus municípios pouco ou nada fizeram para minimizar o risco climático, apesar dos alertas técnicos e das mensagens da ciência; que negligenciaram sistemas de proteção contra cheias; que seguiram autorizando construções em terrenos de encosta, em terrenos baixos, planos e úmidos, ou em ambientes de margem. Tudo isso, as pessoas esqueceram; a maioria esqueceu.
Por esse motivo, não me surpreende o corte de recursos do governo federal. Aliás, nem mesmo o esfriamento das iniciativas de prevenção, tão faladas por todos, no calor dos acontecimentos. E isto só indica uma única coisa: que a tragédia de maio não foi suficiente para nos educar; para nos reposicionar quanto à necessidade de priorizarmos investimentos que permitam adaptar as nossas cidades frente aos eventos de um clima que tende a ser hostil ao extremo.
IHU – Ano passado, o senhor frisou a necessidade de reconstruir os municípios atingidos pelas enchentes no RS. Que balanço faz desse processo, oito meses depois? Quais foram as maiores dificuldades enfrentadas na reconstrução dos municípios?
Marcelo Dutra da Silva – Sim! Reconstruir, porém de forma mais inteligente. Não é possível seguir reconstruindo nos mesmos lugares, da mesma forma, repetindo os erros, arriscando perder tudo outra vez. O clima mudou e precisamos entender isso. A tendência é, de acordo com os estudos apresentados nos Painéis Internacionais do Clima da ONU, recebermos, no Sul, chuvas mais volumosas e frequentes. E tudo pode ficar mais intenso durante o El Niño, acompanhado de tempestades, com granizo, descargas elétricas e ventos fortes. Este é o cenário do novo normal gaúcho.
Não adianta fingir que está tudo bem, que o que passou, passou e não falar mais sobre isso. Não funciona! Precisamos enfrentar o desafio da segurança climática, reconstruir pensando nos eventos extremos que virão e investir pesado na prevenção e adaptação das infraestruturas rurais e urbanas. Mas, infelizmente, nossa falta de cultura de risco não tem nos permitido enxergar essa necessidade. Partimos do princípio de que superamos essa e que nada disso vai se repetir tão cedo. Sem dúvida, essa falsa impressão é o que mais atrapalha.
IHU – Há relatos de que muitas famílias ainda não conseguiram retornar para as suas residências. Que situações ainda não foram resolvidas nos municípios?
Marcelo Dutra da Silva – Os efeitos das enchentes de maio serão sentidos por muito tempo. Seja no campo, seja na cidade, alguns jamais se recuperarão deste trauma e muito do que foi perdido nunca mais será recuperado. Algumas estimativas dão conta de 15 anos para reconstrução das infraestruturas públicas e reparação dos bens privados afetados pelas enchentes. Infelizmente, vamos seguir acompanhando o drama do retorno destas famílias por mais tempo. À medida que o discurso esfria e as pessoas vão esquecendo (ou buscando o esquecimento), com os recursos diminuídos ou redirecionados, a tendência é que esse tempo se alargue e os atingidos em espera permaneçam aguardando uma oportunidade para voltar ou morar em definitivo numa nova casa.
IHU – Na última entrevista que nos concedeu, o senhor insistiu na proposta da prevenção para atacar não os efeitos, mas as causas das mudanças climáticas. Desta perspectiva, o que tem sido feito nos municípios gaúchos atingidos pelas enchentes de maio?
Marcelo Dutra da Silva – Muito pouco, devo dizer. Alguns municípios avançaram bastante, especialmente os atingidos com mais violência na região serrana. Muçum chama atenção pelo engajamento e atenção para a necessidade de reconstruir de uma forma diferente e ampliar as medidas de prevenção e adaptação aos eventos climáticos extremos. Mas é uma gota no oceano. Trata-se de um município pequeno, que já foi atingido outras vezes, talvez aprendido com a dor, e que ainda sente as dificuldades de acesso aos recursos.
Outros municípios nem sequer estão demonstrando preocupação com eventos futuros. Estão reconstruindo da forma que é possível e nada se fala sobre prevenção e adaptação para novos eventos. É uma preocupação que também parece não estar presente no ajuste e/ou elaboração de políticas públicas mais ajustadas aos novos tempos. É no município que tudo acontece, mas está evidente que nenhum município terá condições de enfrentar as questões climáticas se não encontrar apoio nas políticas estruturantes do Estado e da União.
IHU – Quais são as perspectivas socioambientais para os municípios gaúchos em relação a políticas de enfrentamento e mitigação às mudanças climáticas neste novo ano? Como essa agenda tende a ser abordada pelos novos governos municipais?
Marcelo Dutra da Silva – Sou cético quanto a uma mudança de chave tão rápida. Sinto que vamos precisar experimentar uma série de momentos difíceis para acelerar as iniciativas que há tempos se mostram necessárias. Em inúmeras oportunidades que tive, em falas que realizei no transcorrer dos últimos meses sobre o pós-enchente e medidas de prevenção e adaptação das cidades aos eventos climáticos futuros, o ponto que sempre procurei destacar é a revisão do Plano Diretor. Em muitas cidades, o Plano ou é antigo e precisa ser atualizado, ou nem sequer faz alguma consideração aos eventos climáticos extremos.
Passado o momento eleitoral, feitas as escolhas de governo e posse dos eleitos, tenho para mim que o exercício mais importante de cada município gaúcho, especialmente os que foram atingidos na serra e no litoral, é se debruçar sobre as diretrizes do Plano Diretor e rediscutir o projeto de cidade. Com toda certeza, há muito a ser feito nesta direção. Na sequência, elaborar o Plano de Emergência Climática, um instrumento que praticamente nenhum município tem. Por fim, revisar a Política de Licenciamento Ambiental (para os que exercem o licenciamento ampliado), aprimorar a zeladoria, o cuidado com as árvores e a manutenção da drenagem. Feito tudo isso, após o reconhecimento das vulnerabilidades do espaço urbano e das zonas de maior risco climático (descritas no plano), devem ser requisitados projetos de infraestrutura para contenção de cheias, sistemas antialagamentos e sistemas de alerta para melhor comunicar à população.
IHU – Quais as expectativas em relação à COP30 no Brasil?
Marcelo Dutra da Silva – A Conferência das Partes a ser realizada no Brasil é um ganho, sem dúvida. As repercussões serão sentidas com muito mais intensidade. Também, o país se coloca no compromisso de avançar na sustentabilidade, nas boas práticas, nas iniciativas de descarbonização da economia e, claro, nas políticas públicas de atenção às mudanças climáticas e adaptação das cidades aos eventos extremos. Com a aprovação da Lei do Carbono 15.042, que institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), há uma grande expectativa para este novo mercado no país, agora regulado. A COP30 deve trazer muita luz e visibilidade para as oportunidades deste mercado, que serão percebidas em todos os setores da economia.