Os orgulhosos neogaúchos híbridos se transformaram em refugiados climáticos. Entrevista especial com Eduardo Relly

Historiador ambiental analisa o cenário do Rio Grande Sul desde a ocupação de seus territórios por imigrantes alemães e reflete sobre o ethos gaúcho após as tragédias de maio

Cidade de Roca Sales | Foto: Gustavo Mansur | Palácio Piratini

Por: João Vitor Santos | 20 Junho 2024

Diferentemente do que se insiste na cultura tradicionalista, aquela dos Centros de Tradições Gaúchas, o Rio Grande do Sul é múltiplo. O historiador Eduardo Relly, por exemplo, estudou uma parte do RS cuja população ele identifica como “neogaúchos híbridos”, aqueles que são fruto das imigrações, especialmente germânicas. “Neogaúchos híbridos reduzem e transformam paisagens, alteram sistemas socioecológicos antiquíssimos e complexos. Criam e recriam a fronteira, chocando-se com povos indígenas e tradicionais”, esclarece.

É justamente essa população, especialmente no Vale do Taquari, que vem sofrendo com a crise climática manifesta nas constantes e destruidoras enchentes. Em maio, não foi diferente. A partir de suas pesquisas, que compreende a ocupação destas terras pelos imigrantes e suas relações com as populações já residentes neste pedaço de Brasil, Eduardo observa: “no nicho de neogauchismo afetado pelas enchentes, vejo sim (…) uma mudança no sentido de repensar as relações sociais com a natureza, muito embora as conexões neogaúchas com o agro dificultem esse diálogo. Houve um rebaixamento de autoestima; os orgulhosos neogaúchos se transformaram (não todos, mas muitos deles) em refugiados climáticos. Sobre suas cabeças, uma das mais perigosas atmosferas do mundo”.

Na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o historiador não busca no passado explicações para os desastres e a crise climática que vivemos hoje. Ele busca ampliar o horizonte de um complexo processo de ocupação de territórios que levaram à transformação dos cenários originários. “Houve nos últimos 200 anos uma tendência de diminuição da cobertura florestal, e como boa parte da região atingida possui relevo de vales encaixados, observamos estruturalmente uma maior velocidade da água no evento de chuvas constantes”, analisa. E completa: “a substituição de usos da terra de forma variável (a exemplo de povos indígenas, caboclos, etc.) pelo uso agrícola, que em muitos lugares manteve-se até predominantemente camponês; esse uso agrícola baseou-se na propriedade privada da terra, a primeira commodity das colonizações”.

Saídas? Eduardo provoca a pensar nelas olhando o passado. “Lembro que no período colonial o Vale do Taquari abrigou (e ainda abriga) grandes assentamentos indígenas, o que nos leva a perguntar como esses povos se relacionavam e gerenciavam as águas”, provoca.

Eduardo Relly (Foto: Arquivo pessoal)

Eduardo Relly é historiador ambiental e das ciências da América Latina com ênfase em biotecnologia, recursos genéticos, ciências agrárias, silvicultura e climatologia. Doutor pela Freie Universität Berlin, junto ao Lateinamerika-Institut, é pesquisador e docente na Friedrich-Schiller-Universität Jena junto ao projeto colaborativo “Structural Changes of Property”, financiado pela Deutsche Forschungsgemeinschaft (2021-2024).

Confira a entrevista.

IHU – Que relação podemos estabelecer entre a forma como as terras foram ocupadas no Rio Grande do Sul pelos imigrantes e as enchentes que assolaram o estado em maio de 2024?

Eduardo Relly – Difícil responder com precisão, pois o que vivemos é uma crise multifatorial. O fato maior: houve nos últimos 200 anos uma tendência de diminuição da cobertura florestal, e como boa parte da região atingida possui relevo de vales encaixados, observamos estruturalmente uma maior velocidade da água no evento de chuvas constantes.

Outro fator estrutural: a substituição de usos da terra de forma variável (a exemplo de povos indígenas, caboclos, etc.) pelo uso agrícola, que em muitos lugares manteve-se até predominantemente camponês; esse uso agrícola baseou-se na propriedade privada da terra, a primeira commodity das colonizações. Nem nas áreas de menor integração ao mercado, o sistema camponês dos colonos – embasado na propriedade privada da terra, sem grandes possibilidades de uso rotatório (pequeneza dos lotes rurais) e com diminuído conhecimento da biodiversidade – conseguiu usar sustentavelmente a floresta.

Os geógrafos agrários alemães do período da transição da geografia imperial para a geografia do desenvolvimento (cerca de 1930-1970) viram nos colonos, por exemplo, não uma classe média rural como esperavam, mas um problema de desenvolvimento. Logo entenderam que esse manancial de gente pobre do Sul deveria estar à frente das novas colonizações agrárias em direção à Amazônia ou mesmo países limítrofes como Paraguai e Bolívia.

IHU – Por que os colonos ocuparam as terras desta forma, especialmente nas margens de rios? Em que medida isso foi uma dura transposição do modelo europeu de produção e da forma de se relacionar com a terra?

Eduardo Relly – Sobre o uso da terra em específico, cumpre dizer que os colonos das mais variadas origens não foram tão diferentes em relação aos lavradores nacionais ou mesmo os povos tradicionais que disputavam com eles a posse da terra. Lembremos que os colonos não ibéricos estavam em desvantagem no tocante ao conhecimento da biodiversidade e do clima.

Em minha pesquisa, tenho ressaltado o quanto de conhecimento local foi “sequestrado” (e até mesmo com casos semelhantes à contemporânea biopirataria) por agentes interessados na colonização e comodificação da terra do Brasil meridional. Sergio Buarque de Holanda, Claude Lévi-Strauss, Emilio Willems e os geógrafos da escola alemã afirmavam claramente que o colono alemão, por exemplo, era mais “caboclo” do que Europeu no Brasil.

A maior parte das regiões coloniais, por exemplo, falhou em produzir uma agricultura de tipo farmer, baseada em cereais com ampla receptividade no mercado. Na Europa, muitos eram camponeses ou estavam em vias de se proletarizar. Aqueles que estavam no campo, estavam ainda se adequando à dissolução da propriedade comunal. Num mundo sem petróleo, por exemplo, a energia da época ficava na floresta. A “Matabras” (paródia de Petrobras), como digo, era essencial para os camponeses. Seu fechamento aos membros das comunas rurais e a incorporação deste espaço no sistema de preços levaram muitos a uma imensa pobreza.

Comunalização no caso brasileiro

No Brasil, a terra não era comunal, mas havia maneiras de se comunalizar o trabalho e o cuidado com crianças, por exemplo. E a floresta era farta e, em geral, livremente acessível. A triste situação é que commoners fugindo dos enclosures europeus acabaram por terminar com as áreas comunais das populações locais. Uma história global de deslocamento dos Commons e do enclosure da terra via colonização agrária ainda precisa ser feita.

IHU – Pode detalhar mais como os imigrantes, em sua terra de origem, se relacionavam com a floresta? Em que medida este tipo de relação foi transposto para uma outra realidade, agora em terras brasileiras?

Eduardo Relly – Nas múltiplas Alemanhas e na Alemanha pós-1871, a relação com a floresta era mediada por uma série de regulamentos, ordenações principescas, reais, imperiais, eclesiásticas, etc. Após a era napoleônica, houve a tendência de ora se privatizar a floresta, ora de estatizá-la (como no caso da Prússia). Isso significou a exclusão dos sistemas comunais e autônomos dos povos camponeses sobre a floresta. Mas a relação com elas era sobretudo de uso.

Camponeses usavam bastante a floresta. Ela era um espaço integrado da produção agrícola, algo que a moderna silvicultura estatal alemã e francesa tentaram separar. A floresta e o campo formavam uma ecologia fechada no sistema camponês, uma vez que o recurso da floresta era levado para o campo e a criação e, assim, vice-versa. Quando a floresta se fechou no século XIX, recursos de adubação e fertilização tiveram que ser pegos de outro lugar com o auxílio do capital.

Assim, originou-se ainda no século XIX o comércio de guano no Peru, por exemplo. Depois, no início do século XX, a descoberta da amônia através do método Haber-Bosch, desenvolvido na Alemanha, catapultou o processo de globalização dos insumos químicos. Tudo isso mostra a destruição capitalista da agricultura camponesa.

No Brasil, os colonos também usaram a floresta. Aliás, povos indígenas também a usam; a ideia de uma floresta fechada aos humanos é uma invenção dos estadunidenses e seu sonho de natureza selvagem. O problema disso é possuir o conhecimento necessário e promover ecologias fechadas. O capitalismo é o contrário disso. É um sistema em contínua expansão de recursos.

IHU – Agora em julho, celebramos os 200 anos de imigração alemã no Rio Grande do Sul. Como, naquele contexto da chegada dos imigrantes, ocorria a relação dos primeiros colonos com os rios e as terras alagáveis? O que mudou e o que deveria ter mudado nesta relação?

Eduardo Relly – Em primeiro lugar, toda a colonização – principalmente alemã, mas também açoriana e em certa monta também a italiana – foi realizada ao longo de rios. A relação com áreas alagáveis era até benfazeja, uma vez que os alagamentos traziam nutrientes para as incipientes produções agrícolas. Somente as cidades originadas do poder lusitano se localizavam realmente em áreas sensíveis, e os colonos viviam num mundo de florestas vastas.

Logo, boa parte das modernas Áreas de Preservação Permanente – APPs eram ainda florestas íntegras ou estavam sob manejos rotatórios. O que nunca deveria ter acontecido – esse era um debate que ocorria no interior do jornalismo teuto-brasileiro pelo menos – era a ocupação residencial, comercial e (proto) industrial de margens dos rios, bem como o desmate de topos de morros. Mas estamos falando de um mundo ainda diferente da era do antropoceno e da grande aceleração pós-1945.

O fato é que os poderes públicos foram coniventes nas últimas décadas com a expansão das cidades em áreas sensíveis com o objetivo simples de ora extrair trabalho barato de populações rurais pobres ou migrantes, ora satisfazer novas culturas de moradia que se desenvolveram nos últimos anos. Em um estado como o Rio Grande do Sul, deve prevalecer uma certa precaução quanto a isso.

IHU – Como esse modelo de ocupação de terras pelos colonos levou às lógicas de construção de cidades – e especialmente cidades muito pequenas – nas margens de rios, algo característico do Rio Grande do Sul?

Eduardo Relly – O modelo de ocupação da colonização é de um espalhamento das unidades agrícolas residenciais pela paisagem. Difere radicalmente da vila europeia, por exemplo. Mas nos cruzamentos de linhas e picadas, elas se desenvolveram às vezes até à revelia das autoridades, dos semicentros urbanos de difícil classificação tipológica e urbanística.

A partir destes centros, nucleados ao redor de uma igreja, cemitério, venda, moinho ou algo assim, algumas cidades vieram a se desenvolver. Muitas delas aparentam ainda a zona rural e não raro se pega o carro e se cruza por um potreiro ou uma plantação de mandioca nesses centros urbanos pequenos. Como a natalidade era grande na zona rural e os colonos eram donos de suas terras – além de possuírem as tradições dos ofícios –, esses semicentros cresceram. Mas, em geral, não são cidades grandes até hoje. As maiores permanecem na órbita do primeiro colonialismo português.

IHU – O momento é de recuperação do Rio Grande do Sul. Considerando as questões ambientais e a crise climática, o que deve ser essencial para esta reconstrução?

Eduardo Relly – Digo sempre:

1) resolver a crise humanitária;
2) reconstruir habitações em áreas adequadas às novas realidades;
3) politizar a crise no sentido amplo da política;
4) democratizar as cidades;
5) integrar as classes, etnias e culturas nos bairros para evitar o segregacionismo territorial que temos hoje e a conformação de áreas urbanas de extração barata de mão de obra.

A reconstrução deve atentar para o fortalecimento da resiliência das cidades e regiões. Essas megaenchentes vieram para ficar e teremos de nos preparar para isso. Penso, também, que as classes empresariais e políticas, em razão do capital econômico, simbólico e do poder que possuem, deveriam urgentemente se qualificar. Deveriam entender que não há boa economia sem um bom ecossistema, sem resiliência climática e sem justiça social.

O Brasil sempre teve grandes lideranças empresariais que se dedicaram às causas do bem comum. Essas figuras têm desaparecido do debate público. Precisamos de bons empresários e bons políticos, que queiram aprender, se qualificar e trabalhar pela causa pública. Terão de entender mais de cidades e de pessoas para fora da ideia de lucro, demanda e oferta. A classe empresarial não pode mais sequestrar a administração urbana.

Além disso, os empresários precisam ser atores racionais e se engajar para além da defesa de seus interesses paroquiais. Ao contrário do discurso que apregoam, a política neoliberal urbana tem sido muito generosa com eles. Pois cidades resilientes têm de funcionar, e o mercado irrestrito não é um bom administrador, como temos visto na crise climática e da biodiversidade.

IHU – O que a história ambiental revela acerca dos desastres climáticos e da atual crise climática que temos vivido?

Eduardo Relly – Que o uso da terra tem influência maciça no sistema climático. Que clima e terra andam juntos. Ela ensina também que o ambiente é uma arena política e que envolve não somente atores humanos, mas toda a complexidade da vida. Esses seres estão aqui e fazem a história dos sistemas políticos, sociais, econômicos e culturais. A química da atmosfera, o carbono solidificado na árvore, o rio que corre entre uma floresta são atores importantes.

E, também, que a ideia de natureza é uma invenção dos colonizadores europeus. Logo, se analisarmos os processos de mudança da terra com afinco e se aprendermos com os moradores mais antigos de nossas regiões (povos indígenas e populações tradicionais), que possuem sociedades mais amplas que as nossas (pois, para muitos grupos, a divisão entre natureza e sociedade não existe, ou seja, rios, árvores, etc., são atores socializados com responsabilidades e deveres), a história ambiental estará sendo vivida plenamente.

IHU – O senhor mora na Alemanha, país que tem visto enchentes e grandes tempestades. Como os alemães vivem esta situação e que relação podemos estabelecer com o Brasil, o Rio Grande do Sul?

Eduardo Relly – O problema alemão maior consiste no aumento de temperaturas médias e nas estiagens. Em vales de rios, os problemas das enchentes também são visíveis e “chuvas do século” como as da semana passada [nos primeiros dias de junho] e o caso de Ahrtal, em que 136 pessoas morreram numa enxurrada inaudita (ano de 2021), trouxeram o caso da mudança climática para o centro da atenção midiática.

Por outro lado, em 2022 as “pedras da fome” foram expostas no rio Reno em razão da estiagem. Ao sul, na Itália, já se encontram mosquitos da dengue. Ou seja, a previsibilidade climática está ameaçada e as pessoas tendem a perceber isso. Os alemães são cautelosos com as previsões de chuvas mais demoradas e a mídia noticia largamente sobre eventos desse tipo.

De modo geral, há uma previsão das autoridades em isolar com sacos de areia as regiões sensíveis. Estratégias governamentais de biodiversidade e desenvolvimento florestal (1/3 da Alemanha é coberta por matas), além do European Green Deal, lidam com os eventos extremos. No comportamento das pessoas, elas tendem a cancelar viagens e reuniões quando os alertas são anunciados. Mas os alemães, como beneficiários da ordem global inaugurada com o colonialismo, não se sentem responsáveis pelas injustiças climáticas globais. Isto dificulta o debate norte-sul e a ideia de justiça climática. Na atualidade, com a ascensão da direita dura ou extrema-direita, haverá ainda menos espaço para isso. Infelizmente.

IHU – Como o drama gaúcho chegou até a Europa, especialmente na Alemanha?

Eduardo Relly – O drama gaúcho foi noticiado na televisão, nas postagens dos serviços de comunicação pública como a ZDF, MDR, WDR, etc., além de notícias de rádio. Na universidade onde atuo, brasileiros se mobilizaram para a ajuda humanitária, bem como instituições que possuem relacionamento direto com o Brasil. A Igreja Evangélica, a rede Caritas, a Câmara de Comércio Brasil-Alemanha, entre outras, se mobilizaram no sentido de atender as demandas da tragédia.

No entanto, o tema ficou bastante restrito nessa atmosfera Brasil-Alemanha. Lembro que estava num evento nos dias mais agudos da crise e comentei com um colega que o rio da minha cidade (Lajeado) tinha subido mais de trinta metros e meu interlocutor ficou incrédulo ou mesmo duvidoso da acuidade de minha observação. Ao lhe mostrar imagens, ele se convenceu de que algo muito sério estava se passando no Brasil e entendeu as razões de minha agitação.

IHU – O senhor é gaúcho, nasceu e cresceu no Vale do Taquari, que mais tarde se tornou seu objeto de estudo. Como foi acompanhar da Alemanha todo este desastre aqui?

Eduardo Relly – O Vale do Taquari é uma parte de um contexto maior dos meus estudos, na realidade. Ali, particularmente acho interessante essa administração da floresta-enchente, que sempre tomou a atenção dos espíritos mais ativos ao longo da história da região. Lembro que no período colonial o Vale do Taquari abrigou (e ainda abriga) grandes assentamentos indígenas, o que nos leva a perguntar como esses povos se relacionavam e gerenciavam as águas.

Com certeza, o fato de terem vivido séculos nesse ambiente – antes de serem violentados pelas hordas coloniais ou pelos colonizadores do século XIX – os faz grandes especialistas desses ambientes. Esse é um ponto importante, pois a ciência moderna também está lidando com altos índices de indeterminação em razão da instalação da nova realidade climática e, por isso, precisa de outros pontos de vista.

Pessoalmente, foi muito difícil acompanhar tudo de longe. Parentes e amigos meus ficaram quase uma semana desconectados e alguns perderam suas casas completamente. Mas, claro, estar de longe é angustiante, mas viver as consequências diretas é muito pior. O triste é também ver a destruição das cidades do Vale do Taquari e ter a sensação de se perder as referências paisagísticas e emocionais da vida. Muitos lugares não mais existem, não mais são. A perda humana e material se soma também à grande perda cultural que tivemos. Todos saímos mais pobres, tristes e menos referenciados culturalmente dessa tragédia.

IHU – Como a tragédia do RS impactou o ethos gaúcho?

Eduardo Relly – Eu sigo científica e academicamente essa ideia neogaúcha expansionista, florestal, e não tanto aquela originada do Pampa, que talvez tenha se solidificado com mais rigor na identidade regional. Mais do que isso, chama-me a atenção as hibridizações entre o gaúcho-teuto e o gaúcho-gringo (italiano), uma vez que esses grupos sociais formaram a coluna vertebral dos colonialismos interno e internacional (Paraguai e Bolívia, principalmente) brasileiros.

Com o agronegócio, eles viraram uma força destrutiva de consequências globais. Logo, eu busco apreender esses neogaúchos em seus nichos ecológicos, qual seja, na relação difícil, móvel e complexa com as florestas neotropicais. Ao contrário do gaúcho com seu território amplo (até plurinacional) e aparentemente estável, onde só pessoas, exércitos, revoltosos e governos se mexem enquanto a paisagem lá fica, os neogaúchos híbridos reduzem e transformam paisagens, alteram sistemas socioecológicos antiquíssimos e complexos. Criam e recriam a fronteira, chocando-se com povos indígenas e tradicionais.

No nicho de neogauchismo afetado pelas enchentes, vejo sim – e aqui falo de modo impressionista – uma mudança no sentido de repensar as relações sociais com a natureza, muito embora as conexões neogaúchas com o agro dificultem esse diálogo. Houve um rebaixamento de autoestima; os orgulhosos neogaúchos se transformaram (não todos, mas muitos deles) em refugiados climáticos. Sobre suas cabeças, há uma das mais perigosas atmosferas do mundo.

Em relação ao ethos gaúcho clássico, o fato de o Rio Grande do Sul estar numa situação calamitosa e dependente do auxílio e da solidariedade externos, oferece um grande contraponto para essas narrativas. O Rio Grande do Sul precisou e precisa do Brasil como nunca.

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