Efeitos da queda de granizo poderão ser mais impactantes em função das mudanças climáticas. Entrevista especial com Bruna Cavalcanti Gautério

“Os alertas de granizo são sempre emitidos como forma de prevenção, mas como, de fato, a população irá se prevenir com relação às suas residências, principalmente, e aos seus cultivos?”, questiona a geógrafa

Foto: Agência Brasil

Por: João Vitor Santos | Edição Patricia Fachin | 11 Dezembro 2023

“O granizo ainda não é tratado como uma prioridade em meio a outros eventos severos que acontecem, como, por exemplo, índices de chuva acima da média, causando alagamentos e inundações”, pontua a geógrafa Bruna Cavalcanti Gautério, que pesquisa a ocorrência e os efeitos das tempestades de granizo. Segundo ela, ao longo de três décadas a população do sul do Brasil “segue sendo afetada drasticamente” por este efeito climático. “Apesar do órgão estadual de proteção e defesa civil realizar a emissão de alertas sobre possibilidades de eventuais quedas de granizo, não há um preparo para prevenir danos, sejam eles quais forem”, relata.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a pesquisadora explica as características e causas das tempestades de granizo e destaca a necessidade de enfrentar os efeitos desse fenômeno que se tornará mais frequente em função das mudanças climáticas. “Há a necessidade de analisar os cidadãos socioeconomicamente, de propor medidas em que haja a disponibilização de materiais de estrutura habitacional mais resistente às ações do granizo, que serão mais extremas. Estabelecer parcerias com a comunidade acadêmica é fundamental para pensar novas formas de previsões meteorológicas juntamente com aparatos tecnológicos”.

Ela também comenta os desdobramentos da primeira semana da COP28. “Esta é uma COP especificamente muito difícil, pois acontece em um país extremamente rico por conta da produção petroleira, a qual é uma das causas da fuga do padrão climático terrestre”.

Bruna Cavalcanti (Foto: Arquivo pessoal)

Bruna Cavalcanti Gautério é graduada e mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e doutoranda em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Leciona Geografia nos anos finais do Ensino Fundamental e é professora substituta do curso técnico em Geoprocessamento do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), em Rio Grande, e instrutora de Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Confira a entrevista.

IHU – O que são as tempestades de granizo e analisasse, a partir do caso do Rio Grande do Sul, como a crise climática vem incidindo sobre estas tempestades?

Bruna Cavalcanti Gautério – As tempestades de granizo são fenômenos de precipitação de conglomerados de gelo (famosas pedras de gelo) que ocorrem em um curto período de tempo a partir do desenvolvimento de células de tempestades do tipo cumulunimbus. Basicamente, o tamanho vertical dessa nuvem determinará o tamanho do grão e o tempo de duração da precipitação. A crise climática potencializa o grau da severidade com que essas tempestades atingirão o solo e, consequentemente, a sociedade, tornando-as mais destrutivas do que costumam ser.

IHU – Antes das fortes chuvas de setembro e de novembro no RS, houve incidência de granizo? Em que medida esta queda de granizo pode ser considerada um prenúncio do desastre?

Bruna Cavalcanti Gautério – Raramente as tempestades de granizo andam sozinhas; elas majoritariamente são acompanhadas de ventos fortes e chuvas. Elas são recorrentes na primavera, principalmente no mês de setembro, pois é uma estação do ano em que há troca do gradiente térmico da atmosfera e isso favorece o desenvolvimento de células de tempestades. Em 2023, no Rio Grande do Sul, nos meses de setembro e novembro, houve a incidência de granizo.

Em setembro, o relatório disponibilizado pelo Sistema Integrado de Informações sobre Desastres publicou, ao total, 14 decretos de situação de emergência, originados diretamente pelo desastre de granizo para diferentes municípios. Os danos materiais de unidades habitacionais foram os mais identificados. Já para o mês de novembro os relatórios apontaram oito decretos de situação de emergência e danos voltados para as unidades habitacionais, porém, desta vez, com registros de famílias desabrigadas, desalojadas e feridas.

Não possuo estudos direcionados da relação entre a queda de granizo e os potenciais desastres que são desencadeados a partir do momento em que ele ocorre. O que se sabe é que essas pedras de gelo se formam em nuvens de tempestades e normalmente são associadas aos fortes ventos que potencializam os atos destrutivos e são seguidos de chuvas, que, por vezes, podem ultrapassar o índice pluviométrico esperado, causando então transtornos à sociedade.

IHU – Comparado com outros estados, especialmente aqueles de clima mais tropical, há uma maior incidência de tempestades de granizo no sul do Brasil? Por quê?

Bruna Cavalcanti Gautério – Sim, o sul brasileiro é a região com a maior incidência justamente por encontrar-se em latitudes em que há recorrentes formações de células de tempestades. Os sistemas atmosféricos formadores de tempestades, e consequentemente de granizos (Sistemas Frontais, Sistemas Convectivos e Complexos Convectivos de Mesoescala), são característicos nas médias latitudes em que se encontra o sul brasileiro.

Há uma climatologia de sistemas frontais, estabelecida por Pampuch e Ambrizzi, em 2015, a qual aponta a passagem de cerca de 30 a 45 sistemas frontais ao ano. A costa sul/sudeste brasileira, juntamente com a costa uruguaia, são áreas ciclogenéticas, ou seja, propícias para formação de ciclones extratropicais, definidas por Gan e Rao, em 1991. E no sul do Brasil a passagem de ciclones extratropicais é de cerca de 20 a 60 ao ano. Essa localização geográfica também recebe a passagem de Complexos Convectivos de Mesoescala que são frequentes e responsáveis por grande parte da precipitação nas estações de transição. Estes complexos convectivos possuem um tempo médio de vida de seis horas pelo menos.

Adicionalmente, as alterações produzidas por eventos de El Niño, especialmente na região Sul, também compõem esse quadro diferenciativo, pois causam episódios de chuvas excessivas. Além dos fatores apresentados, o relevo acidentado também é relevante, pois efeitos topográficos influenciam nas precipitações principalmente.

IHU – Qual o maior registro histórico de tempestade de granizo no RS? Como podemos compreender a situação e o contexto da época? Quais foram as consequências desta tempestade?

Bruna Cavalcanti Gautério – O granizo é um evento muito pontual e possui um curto período de duração, então não se trata de um dado de fácil registro e análise. Atualmente, trabalho com dados do Sistema Integrado de Informações sobre Desastres e nessa plataforma governamental são disponibilizados apenas os granizos que foram destrutivos o suficiente para fazer com que a gestão municipal entrasse com um decreto de situação de emergência ou estado de calamidade pública. Então, não há possibilidade de trabalhar com todos os granizos que caíram em solo, pois necessitaria, pelo menos, de um responsável em cada município para apontar esse registro, mesmo que o granizo não seja destrutivo. Isso, porém, não acontece na realidade.

Também existem casos em que os granizos não são registrados nessa plataforma devido a diversos fatores, como a não necessidade de pedir ações de respostas em nível federal e também particularidades rurais, em que os moradores acessam órgãos específicos sobre essas zonas, como, por exemplo, a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater).

Diante dessa contextualização, abordo, principalmente no meu estudo atual, a relação com os casos decretados de situação de emergência e estado de calamidade pública e também os casos registrados no Atlas Brasileiro de Desastres Naturais. Não há, até então, uma análise isolada sobre cada tempestade destrutiva ocorrida e o que ela possa ter desencadeado às populações. Durante 32 anos de dados (1991 a 2022) relacionados aos danos emitidos por municípios, Santa Cruz do Sul foi o município que mais recorreu aos decretos, indicando efeitos diretos de ações de granizos destrutivos. Os anos associados à atuação do El Niño também foram significativos, pois apresentaram os valores mais atípicos de decretos no RS. As consequências associadas a esses episódios estão majoritariamente voltadas para estruturas habitacionais e cultivos agrícolas com danos e destruições parciais ou totais.

IHU – Ainda em seu mestrado, sua pesquisa foi voltada para a questão socioeconômica diante da precipitação de granizo em Rio Grande, no sul do estado. Quais são os principais problemas socioeconômicos desencadeados a partir da popular “chuva de pedra”?

Bruna Cavalcanti Gautério – Em minha pesquisa de mestrado, busquei elaborar um indicador de vulnerabilidade socioeconômica, partindo de particularidades da população, como, por exemplo, densidade demográfica, número de pessoas residentes por domicílios, renda per capita, acesso aos serviços básicos de luz, água, esgoto, entre outros fatores que compreendem o saneamento básico. Diante disso, identificaram-se áreas municipais vulneráveis socioeconomicamente para cenários futuros de granizos destrutivos. Os problemas socioeconômicos pós-desastre não foram analisados em profundidade. Porém, através das consultas aos relatórios do órgão de proteção e defesa civil municipal, os danos oriundos principalmente do evento meteorológico que ocorreu em setembro de 2015, identificou-se a necessidade de liberação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para que as populações tivessem acesso financeiro particular para a recuperação ou reconstrução da estrutura habitacional danificada ou destruída.

São muitos os transtornos causados na passagem de um evento destrutivo de granizo. Quando eles são associados a fortes ventos, acabam também sendo potencializados. Essa potencialização causa quedas de árvores e/ou de postes de energia elétrica e, consequentemente, interrompem o serviço de iluminação pública e privada, obstruindo vias de acesso e danificando moradias e bens materiais. Os cultivos agrícolas mais sensíveis à ação do granizo e dos ventos também sofrem com as destruições, ocasionando a perda da safra e, por consequência, do sustento financeiro familiar.

IHU – Como avalia as formas como o poder público, governos e Defesa Civil têm agido diante de ações de prevenção a desastres, especialmente tempestades de granizo? O quanto já se avançou e o quanto ainda é preciso avançar?

Bruna Cavalcanti Gautério – O granizo ainda não é tratado como uma prioridade em meio a outros eventos severos que acontecem, como, por exemplo, índices de chuva acima da média, causando alagamentos e inundações. Ele é tratado mais como um fator potencializador que pode ou não acontecer. Os alertas de granizo são sempre emitidos como forma de prevenção, mas como, de fato, a população irá se prevenir com relação às suas residências, principalmente, e aos seus cultivos?

O que se tem popularizado são telas antigranizo para a prevenção das destruições de plantios sensíveis às pedras de gelo, mas voltado para o setor urbano, não vemos essa possibilidade. O que se sabe é que a assistência acontece, principalmente, após a ocorrência do evento, com a distribuição de itens de assistência humanitária (lonas, telhas, pregos, alimentos, itens de higiene, entre outros).

Há a necessidade de analisar os cidadãos socioeconomicamente, de propor medidas em que haja a disponibilização de materiais de estrutura habitacional mais resistente às ações do granizo, que serão mais extremas. Estabelecer parcerias com a comunidade acadêmica é fundamental para pensar novas formas de previsões meteorológicas juntamente com aparatos tecnológicos. Para isso é necessário que investimentos financeiros sejam direcionados para tratar essas questões.

Sabe-se que atualmente o RS executou o projeto Roadmap Climático, desenvolvido pela Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura, aprovado e com investimento de fundo internacional de 120 mil reais. O recurso ainda é pouco; a previsão de investimento é de dois milhões de reais. Espera-se que a partir dessas iniciativas os impactos causados por granizadas destrutivas sejam vistos com mais atenção.

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IHU – Em sua atual pesquisa, você tem relatado certa dificuldade de obter dados sobre tempestades de granizo. Por que isso ocorre? Os dados não existem ou o acesso a eles não é facilitado?

Bruna Cavalcanti Gautério – Na atual fase da pesquisa, começarei a trabalhar com dados de radar meteorológico coletados pelo sensor radar orbital Dual-frequency Precipitation Radar (DPR), presente na constelação de satélites Global Precipitation Measurement (GPM), que compõe o projeto Tropical Rainfall Measuring Mission (TRMM), mantido em colaboração pelas instituições NASA-JAXA, CNES/ISRO, AEB/INPE, EUMETSAT e NOAA.

Esses dados possibilitarão analisar a precipitação sólida acumulada dentro da nuvem e entender os mecanismos de formação dos eventos meteorológicos, bem como a sua extensão de atuação.

Atualmente, não existe uma rede de detecção de granizos para a região Sul brasileira, tais como as redes de estações meteorológicas, pois são eventos que acontecem muito rapidamente e necessitam de responsáveis para estar no momento e local em que ocorrem. Então, os dados de acesso aos granizos em solo são escassos e de difícil mensuração.

IHU – Eu gostaria que trouxesse dois destaques acerca da pesquisa que está desenvolvendo. Até agora, o que mais lhe surpreendeu e o que mais lhe assustou nos estudos sobre a queda de granizo?

Bruna Cavalcanti Gautério – Como destaque sobre a pesquisa em andamento, relato que o que mais me surpreendeu foi que, ao longo de 32 anos, a população do sul do Brasil segue sendo afetada drasticamente e os danos nas estruturas habitacionais e os danos materiais são frequentes. Apesar do órgão estadual de proteção e defesa civil realizar a emissão de alertas sobre possibilidades de eventuais quedas de granizo, não há um preparo para prevenir danos, sejam eles quais forem. Nos raros casos em que os cultivos são protegidos por telas antigranizo, as populações seguem perdendo seus sustentos financeiros.

O que mais me assusta atualmente não faz parte da minha janela temporal de pesquisa, isto é, compreender as condições e os efeitos atuais (2023) potencializados sob influência do El Niño e da crise climática. Jamais havia “presenciado” – não de forma literal, mas sim por registros fotográficos e de vídeos – tanta quantidade de queda de granizo, não em tamanho destrutivo, mas acumulativo o suficiente para causar obstrução de vias ou deixar o tráfego de trânsito comprometido. Apesar das pedras serem pequenas, a quantidade é elevada o suficiente para acumular na pista.

Pensando nas condições climáticas em que o planeta se encontra, na possibilidade de o tamanho dessas pedras serem maiores num futuro próximo, devido ao desenvolvimento de nuvens de tempestades mais severas, é possível que ocorram danos mais impactantes como, por exemplo, danos humanos.

IHU – Como surgiu a ideia de se tornar uma cientista que pesquisa a queda de granizos?

Bruna Cavalcanti Gautério – A ideia de se tornar uma cientista que pesquisa a queda de granizos dentro da formação em Geografia partiu de uma justificativa pessoal e traumatizadora que passei quando tinha apenas 4 anos de idade. Em 1998, em Rio Grande/RS, houve um episódio de granizo destrutivo que destruiu a cobertura da residência dos meus pais e, consequentemente, acarretou danos materiais. A lembrança da destruição, do barulho das pedras, me acompanhou ao longo dos anos e me possibilitou relacionar esse trauma de infância com a curiosidade de entender como ele funciona e como continua afetando as populações drasticamente depois de tantos anos.

IHU – Estamos iniciando mais uma conferência do clima, a COP28. Quais são as suas expectativas quanto ao evento? Como cientista, ainda acredita que podemos reverter o quadro de crise climática em curto prazo?

Bruna Cavalcanti Gautério – Sempre temos as melhores expectativas quando essas conferências são realizadas, mas esta é uma COP especificamente muito difícil, pois acontece em um país extremamente rico por conta da produção petroleira, a qual é uma das causas da fuga do padrão climático terrestre. Diante disso, será complicado chegar a grandes avanços e negociações a partir da COP, mas esperamos que, ao menos, a justiça climática, por meio de um fundo financeiro coerente, seja capaz de começar a caminhar em uma direção mais reativa de adaptações às mudanças climáticas para países vulneráveis que realmente necessitam deste amparo econômico diante dos impactos sofridos.

Sinceramente, não vejo uma reversão do quadro em curto prazo. Pela perspectiva da COP, é necessário que os agentes e líderes envolvidos estejam dispostos a abrir mão do que lhes convém há muito tempo. Sem essa conscientização de que a emergência climática é atual e grave, não há caminho rápido. Todos sentem os impactos climáticos, porém são os mais vulneráveis socioeconômica e ambientalmente que, de fato, sofrem com eles.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Bruna Cavalcanti Gautério – Como professora de geografia do ensino fundamental anos finais, eu gostaria de enfatizar a importância de vincular as atividades escolares com as discussões sobre as mudanças climáticas. Isto é, despertar o interesse dos estudantes em pesquisar, discutir e pensar criticamente em relação aos combustíveis fósseis e todas as demais ações que levam à atual crise climática. Os quadros de reversão da crise climática também começam com a população jovem e começam dentro de uma sala de aula pautada em um olhar sustentável. É necessário escancarar esse assunto e garantir que os estudantes estejam cientes, pois isso diz respeito ao amanhã deles, ao futuro dos filhos e dos netos.

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