Pequena história futura das enchentes do rio Caí. Artigo de Caio Fernando Flores-Coelho

Foto: Prefeitura de São Sebastião do Caí

29 Novembro 2023

"Uma enchente é considerada crítica, em São Sebastião do Caí (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 14), quando o rio ultrapassa 11 metros de altura. A partir daí, vemos a água invadindo várias quadras da cidade. Qualquer enchente próxima da marca de 13m atinge, ao menos, 40% do território urbano da cidade. Acima de 14m, 60% do território urbano de São Sebastião do Caí é atingido. Esta enchente mais recente de 18 de novembro de 2023, com seus 16 metros de altura, atingiu cerca de 80% do espaço urbano caiense". 

O artigo é de Caio F. Flores-Coelho, professor do Curso de Licenciatura em História e do Eixo de Humanidades da Unisinos, doutor em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS com pesquisa sobre o passado do antropoceno no rio Caí e a longa duração do convívio entre a população que colonizou a região de São Sebastião do Caí e sua percepção desta paisagem. É mestre em Antropologia Social (UFRGS) e licenciado em História (Unisinos).

Caio também é autor do artigo A dádiva de si e a "juventude": estudo etnográfico sobre movimento escoteiro, publicado na edição 49 dos Cadernos IHU

A íntegra do texto está publicada na edição nº 353 dos Cadernos IHU ideias

Eis o artigo. 

Marque a data de 18 de novembro de 2023. Foi nesse dia que o rio Caí atingiu 16 metros de altura, 1,2m acima de sua máxima histórica em mais de 169 anos de enchentes registradas.

Para tentar entender o que essa marca histórica representa para o futuro de São Sebastião do Caí, este texto está dividido em duas partes: a primeira se dedica a fazer um breve resumo da causa pela qual entendo que a enchente de 18 de novembro marca um ponto de virada na história das enchentes do rio Caí; já a segunda parte se direciona a fazer uma análise mais longa desta história e algumas previsões de seu futuro nas próximas décadas, assim como algumas possibilidades para dirimir seus efeitos.

No início desse ano, defendi minha tese de doutorado no PPG de História da PUCRS. A pesquisa desta tese (FLORES-COELHO, 2023) trata-se de um estudo de longa duração analisando os impactos gerados pela habitação humana no rio Caí, as intervenções antrópicas feitas no curso do rio e sua exploração comercial através da navegação a vapor.

No último capítulo deste estudo, dediquei o foco de pesquisa para tentar compreender a história das enchentes em São Sebastião do Caí em sua dimensão ambiental e humana. Uma vez que esse fenômeno é, de longe, uma das principais formas de interação entre a população caiense e o rio que se acerca da cidade.

Para isso, entre outras fontes históricas, cataloguei todas as informações sobre enchentes em São Sebastião do Caí desde 1854 e 2020. As fontes dessas informações foram variadas. Indo desde relatórios do Governo do Estado até registros não oficiais feitos por pessoas que moram no entorno do rio. Esta tabela está disponível no Anexo II.

O que marca a data de 18 de novembro de 2023 como de singular importância histórica (apesar desta ter passado há apenas uma semana) é o fato de que esta enchente atingiu exatos 16 metros de altura, quando a máxima histórica anterior que tivemos registrada foi como de 14,82 metros de altura, no ano 1878.

Além disso, ao longo do século XX, conseguimos contar apenas três enchentes que passaram a marca de 14 metros de altura, sendo elas em: 1956 (14,50m), 1982 (14,70m) e 2000 (14,75). No século XXI, apenas com pouco mais de duas décadas até agora, vemos uma escalada na freqüência de enchentes que atingem esta marca, com episódios em: 2007 (14,70m), 2009 (14,28m), 2011 (14,80m), 2016 (14,66m), 2020 (14,40m) e 2023 (16m).

Cada lugar tem uma forma de medição própria e isso torna difícil realizar comparações entre enchentes de diferentes cidades e locais. Nosso sistema de alerta do nível do rio começa a ser acionado quando a folha d’água atinge 8 metros de altura. Uma enchente é considerada crítica, em São Sebastião do Caí (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 14), quando o rio ultrapassa 11 metros de altura. A partir daí, vemos a água invadindo várias quadras da cidade. Qualquer enchente próxima da marca de 13m atinge, ao menos, 40% do território urbano da cidade. Acima de 14m, 60% do território urbano de São Sebastião do Caí é atingido. Esta enchente mais recente de 18 de novembro de 2023, com seus 16 metros de altura, atingiu cerca de 80% do espaço urbano caiense. Lugares que nunca haviam sido atingidos antes, o foram, e locais que eram atingidos apenas levemente sofreram avarias muito mais severas.

Ponto de Virada

Esse texto, porém, não pretende fazer um relato puramente informacional sobre essa enchente. Como diz o título, o seu objetivo é escrever uma “história do futuro” das enchentes do rio. A História, enquanto campo do conhecimento científico, prima por se ater à às formas de construção e reconstrução do passado histórico. Porém, é eminente que nos debrucemos sobre os prospectos do futuro que nos aguarda.

Nesse sentido, eu gostaria de comentar sobre o conceito de ‘ponto de virada’, em língua inglesa: tipping point, encontrado em diferentes estudos ecológicos (STAFFORD et. al, 2010; MOORE, 2018). O ‘ponto de virada’ encontrado em diferentes análises sobre o clima e o ambiente se refere à identificação de um momento, dentro de dado contexto, que prenuncia mudanças irreversíveis no equilíbrio ecológico que existia anteriormente. Esse momento se trata, portanto, da ocorrência de um fenômeno de tal magnitude que marca um momento histórico a partir do qual se passará a viver um novo contexto climático, não mais dentro do quadro de previsibilidade que existia anteriormente.

A enchente de 18 de novembro ultrapassou em 1,18 metros a altura da enchente mais devastadora que houve em São Sebastião do Caí, há 145 anos atrás. Essa enchente é o ápice em uma série histórica de enchentes que vemos assolar a cidade do Caí desde os anos 2000. Enchentes que, em altura e repetição, são muito superiores em comparação com todos os registros do século XX.

Gráfico: Comparativo do nível máximo de enchentes entre 1854-2023, a partir de registros organizados e comparados em FLORES-COELHO, 2023, p. 234-240.

O gráfico traz as informações catalogadas em minha tese (FLORES-COELHO, 2023, p. 234-240). Lá, busquei realizar a construção de uma base sólida de informações sobre as diferentes enchente enfrentadas em São Sebastião do Caí, pois havia encontrado informações conflitantes e queria compará-las. Ainda, de forma a obter uma análise completa, realizei uma revisão bibliográfica com todos os estudos de diferentes áreas que se debruçaram sobre esse fenômeno do rio Caí.

Cuidados paliativos versus cuidados preventivos

Alguns apontamentos que apareceram ao confrontar-me com as informações sobre as enchentes de São Sebastião do Caí indicam conclusões interessantes.

Nem todas as enchentes do rio Caí são episódios críticos, em sua maior parte ficam abaixo de 11 metros de altura (RIO GRANDE DO SUL, 2014, p. 14), essas são raramente contabilizadas nos registros históricos e ocorrem várias vezes ao ano.

As enchentes são imprevisíveis, por exemplo: “entre 2007 e 2009, a área urbana de São Sebastião do Caí foi atingida cinco vezes, sendo que as três últimas ocorreram num intervalo de 45 dias, entre agosto e setembro de 2009. Das cinco inundações, a maior inundação ocorreu em setembro de 2007” (OLIVEIRA et al., p. 415). As enchentes são mais intensas em São Sebastião do Caí do que em cidades vizinhas, uma vez que há estrangulamento da vazão das águas durante as cheias na cidade pois o leito do rio, mais a sul do centro da cidade, se afunila entre dois morros (op.cit., p. 421).

Dos registros pesquisados em minha tese (entre 1854 e 2020), contamos ao todo com 99 enchentes. 66 dessas enchentes ocorreram nos séculos XIX e XX e 33 no séc. XXI. A taxa média de retorno das enchentes em São Sebastião do Caí (entre 1854 e 2020) indica a ocorrência de uma enchente crítica (acima de 11m) a cada 2,72 anos. Porém, quando isolamos apenas as décadas do século XXI (2000-2020), vemos que a taxa de retorno é de uma enchente crítica (acima de 11m) a cada 1,11 anos.

Enchentes críticas (11m ou mais) podem ocorrer em qualquer estação do ano. Os meses em que ocorreram maior número de enchentes são, por ordem de mais ocorrências para menos: outubro, setembro, julho, junho e agosto. Isso não significa que não possam ocorrer enchentes críticas no verão: esse foi o caso da enchente de fevereiro de 2003 que atingiu 13,30m.

Se contarmos as enchentes acima de 13 metros de altura, vemos que o século XX inteiro (cem anos, portanto) contou com 20 delas: média de 1 enchente de 13m a cada 5 anos. Se isolarmos apenas a segunda metade desse século (cinquenta anos), contamos 16: média de uma enchente de 13m a cada 3,12 anos. Fazendo o mesmo cálculo para as primeiras duas décadas do século XXI (entre 2001-2020), temos 14 ocorrências: média de 1 enchente de 13m a cada 1,42 ano. O aumento da recorrência das enchentes no século XXI também implicou em um aumento exponencial das alturas atingidas. Tivemos mais enchentes acima de 14 metros de altura nas duas primeiras décadas do século XXI do que no século XX inteiro. Esta enchente de 18 de novembro de 2023, com seus 16m, confirma esta previsão por inaugurar a terceira década do XXI com um novo patamar. É possível supor que essa nova marca atingida em 2023 irá se repetir, assim como as enchentes passarão a ser, de modo geral, mais altas do que a média do século XX.

Tendo estabelecido que essa enchente de 18 de novembro de 2023 foi um ponto de virada nas enchentes de São Sebastião do Caí, é importante pensar na questão de que as ações tomadas pela população e pelo Poder Público sobre essa catástrofe natural são, quase sempre, de cunho paliativo. Constituem, portanto, uma reação à enchente e não sua prevenção.

Claro, sendo as enchentes um fenômeno natural e tendo São Sebastião do Caí sido erguida sobre o baixio de inundação do rio, isso faz com que seja impossível impedir que as enchentes ocorram. Porém, é possível diminuir seus efeitos.

Essa já não é minha expertise, mas tenho ciência de que possuir pouquíssima arborização no perímetro urbano, assim como pavimentar quase todas as ruas com asfalto impermeável, não ajuda o solo a absorver parte do excesso da carga d’água de um clima cada vez mais instável. Promover aterramento para a construção de condomínios em regiões onde antigamente existiam pântanos, que são filtros naturais e possuem muita biodiversidade, também não ajuda. Não adianta tentar assorear o rio, o leito do Caí é pedregoso, na maior parte de seu trajeto. Não adianta construir um dique, a cidade é grudada no rio, o volume de água certamente ultrapassaria seu limite e ele tornaria a água ainda mais veloz.

Quem paga a conta de desastres ambientais somos todos nós, por isso é importante pensar em alternativas que sejam coletivas. É na ação política e no diálogo da comunidade que se encontrarão opções que sejam melhor direcionadas a resolver os problemas dela mesma. A única certeza que posso apontar é que vão ocorrer novas enchentes e a tendência é que elas se tornem piores. Precisamos encontrar formas de conviver com elas, assim como os habitantes do passado encontraram construindo casas altas ou com dois andares, adequadas às cheias de sua época.

Referências Bibliográficas: 

DEPARTAMENTO NACIONAL DE PORTOS E NAVEGAÇÃO. Comissão de Estudos e Obras da Lagôa Mirim. Variação do nível das águas do rio Caí no porto da cidade de “São Sebastião do Caí”, 1941. In: Elementos para estudo do problema das cheias, no Estado do Rio Grande do Sul, referidos especialmente à bacia oriental. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1942.

FLORES-COELHO. Caio F. Apologia do fluxo, ou sobre o antropoceno no Rio Grande do Sul e a percepção da paisagem no rio Caí. Tese (Doutorado em História) - Escola de Humanidades, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2023.

MAGALHÃES, Magna L.; SCHEMES, Claudia; PRODANOV, Cleber C. Um rio, uma cidade: caminhos que se cruzam – São Sebastião do Caí (RS). Estudos Ibero-Americanos, v. 46, n. 1, p. 1-16, jan./abr. 2020.

MARTINY, Carina. Fazer-se vila: São Sebastião do Caí (1875-1892). São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2007. Monografia de Conclusão de Curso, Licenciatura em História.

MASSON, Alceu. Caí (Monografia). Edição da Prefeitura Municipal de Caí, Rio Grande do Sul, 1940.

MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA. Setorização de Áreas em Alto e Muito Alto Risco a Movimentos de Massa, Enchentes e Inundações: São Sebastião do Caí – Rio Grande do Sul. (Relatório Técnico). Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral, Serviço Geológico do Brasil - CPRM, Departamento de Gestão Territorial, maio 2019.

MOORE, John C.. Predicting tipping points in complex environmental systems. PNAS, V. 115, N. 4, Janeiro de 2018, p. 635–636.

OLIVEIRA, Guilherme Garcia de. Modelos para previsão, espacialização e análise das áreas inundáveis na Bacia Hidrográfica do Rio Caí, RS. Orientadora: Dra. Dejanira Luderitz Saldanha. Co-orientador: Dr. Laurindo Antonio Guasselli. 2010. 149 p. Dissertação de Mestrado - Programa de Pós-Graduação em Sensoriamento Remoto, Centro Estadual de Pesquisas em Sensoriamento Remoto e Meteorologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010.

RABUSKE, Pe. Arthur. São Sebastião do Caí: fase jesuítica da Paróquia. São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas - UNISINOS, 1985

REINHEIMER, Dalva N. A navegação fluvial na República Velha Gaúcha, iniciativa privada e setor público: ação e implicações dessa relação. Tese de Doutorado. São Leopoldo: UNISINOS, 2007.

RIO GRANDE DO SUL, Secretaria de Obras Públicas, Irrigação e Desenvolvimento Urbano. Estudos de alternativas para minimização do efeito das cheias do trecho baixo do rio Caí: Síntese das medidas propostas para a cidade de São Sebastião do Caí. Porto Alegre, jun. 2014.

SCHRÖDER, Janice. MARONEZE, Luiz A. G. Memórias das cheias em São Sebastião do Caí. Revista Latino-Americana de História, V. 2, n. 7, Setembro de 2013, p. 403-420.

STAFFORD, S. G. BARTELS, D. M. BEGAY-CAMPBELL, S. BUBIER, J. L. CRITTEDEN, J. C. CUTTER, S. L. DELANEY, J. R. JORDAN, T. E. KAY, A. C. LIBECAP, G. D. MOORE, J. C. RABALAIS, N. N. REJESKI,

D. SALA, O. E. SHEPHERD, J. M. TRAVIS, J. Now is the Time for Action: Transitions and Tipping Points in Complex Environmental Systems. Environment: Science and Policy for Sustainable Development. V. 52, N. 1, 2010, p. 38-45. DOI: 10.1080/00139150903481882

WOLLMANN, Cássio A.; SARTORI, Maria da Graça B. A nebulosidade como fator condicionante à percepção da pluviometria anual pela população rural e urbana de São Sebastião do Caí/RS. Anais do Sem. Latinoamericano de Geografia Física, Maringá, 2006.

WOLLMANN, Cássio A.; SARTORI, Maria da Graça B. Sazonalidade dos episódios de enchentes ocorridos na bacia hidrográfica do rio Caí - RS, e sua relação com a atuação do fenômeno El Niño, no período de 1982 a 2005. Revista Brasileira de Climatologia, ano 6, v. 7, set. 2009.

WOLLMANN, Cássio A.; SARTORI, Maria da Graça B. A percepção ambiental e climática da população de São Sebastião do Caí como forma de previsão de enchentes na Bacia Hidrográfica do Rio Caí - Rio Grande do Sul. Revista Brasileira de Climatologia, ano 6, v. 6, p. 107-134, jun. 2010.

Leia mais