Políticas públicas de reforma urbana e habitação aliviariam as pressões em torno do meio ambiente na zona sul de Porto Alegre e nas partes que são mais sensíveis ambientalmente, diz o engenheiro ambiental
A cidade de Porto Alegre diminuiu 5% em termos populacionais na última década. Este dado, divulgado pelo último Censo do IBGE, indica que a expansão urbana na capital é desnecessária e a resolução dos problemas relativos à moradia e habitação pode ser enfrentada com outras estratégias. Está é a proposta do engenheiro ambiental Iporã Brito Possantti, integrante do Coletivo Ambiente Crítico e apoiador da campanha Preserva Arado, contrária à construção de empreendimentos na Fazenda do Arado, localizada na zona sul da capital gaúcha. “Esta região é sensível em termos ambientais, tem atributos especiais em termos históricos, arqueológicos pré-coloniais e arquitetônicos. Na parte física, ambiental, a área se integra a uma área maior de várzeas nas margens do Guaíba, que são restingas arenosas, regiões em que a água está próxima de aflorar à superfície, ou seja, são banhados. Em algumas partes do ano, esse banhado se manifesta, em outras partes, se há estiagem, ele some, mas a água está sempre presente na região”, explica.
Na entrevista, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Possantti argumenta que se a cidade estivesse crescendo em termos populacionais, ainda assim não faria sentido expandi-la para áreas verdes e de preservação ambiental. “Não faz sentido expandir uma cidade em termos de área porque quanto mais distante as pessoas estão dos locais de serviço, mais caro fica ao poder público manter a cidade. O ideal é uma cidade mais adensada, mais compacta, em que os serviços estejam perto das pessoas. Não adianta construir um bairro afastado para levar creche, escola, Unidade de Pronto Atendimento (UPA), Unidades Básicas de Saúde (UBS); isso é antieconômico”, justifica.
Ele também reflete sobre as possibilidades de reforma urbana radical para enfrentar os problemas socioambientais. “Já tentamos várias propostas para tratar os riachos que acabam virando uma lavagem de esgoto a céu aberto no Brasil. Portanto, a questão da reforma urbana está associada a outras questões, inclusive ambientais, de saneamento, humanitárias. É uma questão que ainda estamos para resolver no país”, afirma.
Iporã Brito Possantti (Foto: Arquivo pessoal)
Iporã Brito Possantti é engenheiro ambiental e mestre em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS). É doutorando na mesma área e integra o Coletivo Ambiente Crítico.
IHU – Em que região está localizada a Fazenda do Arado, em Porto Alegre? Quais são as características ambientais do local e o que elas indicam sobre a possibilidade de desenvolver um empreendimento residencial na região?
Iporã Brito Possantti – Porto Alegre tem uma extensão territorial diferente das demais capitais brasileiras, isto é, tem uma parte bastante adensada e urbanizada, mas mais da metade do município é área natural e rural. Esta é uma extensão relativamente grande se comparada a outras cidades do país.
A Fazenda do Arado fica na zona rural, mais ao sul da capital, e possui uma extensão de 426 hectares. É uma área localizada entre os morros de Porto Alegre e o Lago Guaíba, que é cheio de enseadas e praias. Existem imóveis rurais tão grandes quanto a Fazenda do Arado nesta região. Do lado da Fazenda tem um imóvel que é do mesmo tamanho, onde se planta arroz. Também existem chácaras pequenas, sítios, núcleos urbanos como Belém Novo, Lami, Restinga. Logo em seguida, mais ao sul, é o município de Viamão, onde está o Parque Estadual de Itapuã. Ou seja, esta é uma região que tem um contexto de preservação ambiental e de turismo ecológico e rural. No verão muitas pessoas visitam as praias do Guaíba, que são balneáveis.
(Foto: Preserva Arado)
(Foto: Preserva Arado)
(Foto: Preserva Arado)
Vivemos um sistema de sociedade em que as pessoas são livres para tomarem iniciativas e a iniciativa privada existe, mas há regras e, no caso das cidades, existem os Planos Diretores que fornecem diretrizes e orientações sobre a urbanização. A diretriz do Plano Diretor para a região é que são áreas de preservação para o ambiente natural, áreas rurais, ou seja, não é uma zona de urbanização. Mas o Plano Diretor é uma lei proposta e aprovada, ou seja, é maleável e a discussão em torno do Plano Diretor é constante. Ao mesmo tempo, o Plano Diretor está vinculado à política habitacional da cidade, ao Estatuto da Cidade e, segundo seus princípios, é preciso haver participação da população na tomada de decisões para que ele não se torne algo pessoal.
Nosso entendimento é que o empreendedor interessado neste projeto tem um interesse pessoal em fazer um loteamento na Fazenda do Arado, e entendemos que houve uma série de atropelos em relação ao projeto. Houve um episódio em que as leis foram anuladas na Justiça porque não houve participação popular, não foram realizadas audiências públicas. Durante a pandemia, criaram uma lei, aprovada na Câmara Municipal, mudando o Plano Diretor exclusivamente para a Fazenda do Arado. Ao que tudo indica, existe uma encomenda por parte de um empreendedor para mudar o zoneamento da cidade. Entretanto, a expansão urbana é desnecessária em Porto Alegre. Existe o entendimento de colocar o privado na frente do público. O pano de fundo é a questão ética e política de como decidimos o que é feito na cidade.
IHU – Em termos ambientais, qual é a característica do terreno?
Iporã Brito Possantti – Esta região é sensível em termos ambientais. Ela tem atributos especiais em termos históricos, arqueológicos pré-coloniais e arquitetônicos. Na parte física, ambiental, a área se integra a uma área maior de várzeas nas margens do Guaíba, que são restingas arenosas, regiões em que a água está próxima de aflorar à superfície, ou seja, são banhados. Em algumas partes do ano, esse banhado se manifesta, em outras partes, se há estiagem, ele some, mas a água está sempre presente na região. Muitas espécies de aves habitam esses habitats, que são interessantes do ponto de vista da biologia e da conversação da biodiversidade.
Descobrimos, com a inundação do Guaíba, semanas atrás, que a área inteira estava coberta de água não por causa da inundação somente, mas porque a água aflorou; a região virou um banhado coberto de água. Com exceção do morro, toda a Fazenda do Arado estava coberta de água. Fizemos uma estimativa a partir da mancha de inundação da marca da maior enchente já registrada em 1941 e se essa enchente ocorresse novamente, ela cobriria toda a área plana da Fazenda. Lá não existe dique ou um muro de proteção. Aquela é uma área inundável.
O Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) está fazendo uma Estação de Tratamento de Água (ETA) na região e precisou levantar a topografia de modo significativo. Ou seja, tem que mobilizar o solo que vem de outro lugar para levantar o seu nível em função da umidade daquela região. Um empreendimento na Fazenda do Arado, no estilo de loteamento, teria que alterar substancialmente as características naturais da área para as pessoas poderem morar com salubridade e segurança.
IHU – Como o poder público e a sociedade recebem e reagem a essas informações ambientais?
Iporã Brito Possantti – A minha percepção é que as pessoas de Porto Alegre que estão inteiradas do assunto se sensibilizam com a questão ambiental. Costumamos dizer que a área da Fazenda poderia compor, em seu território, onze parques da Redenção (Parque Farroupilha), de tão grande que ela é. É um espaço que tem gado e florestas. Não é um parque, é uma área rural, mas propomos que seja uma área de conservação assim como é o Morro do Osso, um parque natural. Não somos contra empreendimentos, mas a favor de que haja atrativos ecológicos que tragam turismo e riqueza à região. Quando visitam as áreas, as pessoas consomem serviços no caminho e no bairro Belém Novo. Temos a proposta de que a Fazenda pode produzir riqueza sendo preservada.
Os moradores do bairro Belém Novo estão divididos em relação ao empreendimento porque, pelo que consegui perceber, lideranças locais estão alinhadas ao empreendimento. Não posso dizer com certeza, mas possivelmente isso ocorre em função de promessas, contrapartidas pessoais. Alguns preferem que a área seja preservada, outros preferem o loteamento. A questão ambiental é bem-vista e o Ministério Público se sensibilizou. Cada vez mais, essa agenda ganha destaque.
Em outros países, o cuidado do meio ambiente já é consenso, mas nós ainda estamos em uma fase em que esse tema gera discussão e dicotomia entre progresso ou preservação. Ainda vivemos esta dualidade: ou se destrói tudo ou se preserva tudo. Tal visão está ultrapassada, ainda mais neste contexto de mudança climática. Antes, a mudança climática batia à nossa porta, hoje ela arromba a nossa porta. Estamos em uma situação em que é preciso cair a ficha.
IHU – Como surgiu a proposta deste empreendimento?
Iporã Brito Possantti – A proposta deste empreendimento surgiu nos anos 2000 porque o processo político do projeto começou a tramitar em 2011. Imagino que em 2005 a ideia já existia. Mas 2005 era outra época. A ideia de urbanizar a área caducou.
Entretanto, existe uma insistência do poder público neste projeto, especialmente da gestão municipal atual. Na gestão anterior, essa insistência acabou ficando mais fraca. Com a atual gestão, o tema voltou. Aliás, este é o mesmo grupo político que estava no poder em 2011.
IHU – Você mencionou que não há necessidade de expansão urbana em Porto Alegre. Pode explicar por quais razões há um interesse em expandir a cidade para esta região?
Iporã Brito Possantti – Mesmo se aquela área fosse degradada e não fosse ambiental, arqueológica e historicamente interessante de ser preservada, não faz sentido expandir a cidade, nem se ela estivesse crescendo em termos populacionais, o que não é o caso. Fomos surpreendidos pelos dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As projeções dos planos de saneamento do DMAE eram de que a cidade estava crescendo lentamente em termos populacionais, mas o Censo comprovou que, em termos populacionais, a cidade diminuiu 5% em dez anos, de 2010 para cá. Isto é, a cidade está menor em termos populacionais.
Espaços podem ser ocupados porque existem cerca de 100 mil domicílios vazios na cidade. Existe uma especulação em torno dos domicílios porque eles são propriedade privada. Mesmo que não se enfrente essa questão, existem várias áreas nas quais a cidade pode construir edificações adequadas, inclusive onde já existe infraestrutura, como no 4º Distrito, em que a rede de esgoto, de água e de luz está pronta e existem postes e ruas. Mas esse é um vazio urbano porque não tem muita gente morando ali. As políticas públicas habitacionais precisam levar isto em consideração.
Mesmo que a cidade estivesse crescendo em termos populacionais, não faz sentido expandir uma cidade em termos de área porque quanto mais distante as pessoas estão dos locais de serviço, mais caro fica ao poder público manter a cidade. O ideal é uma cidade mais adensada, mais compacta, em que os serviços estejam perto das pessoas. Não adianta construir um bairro afastado para levar creche, escola, Unidade de Pronto Atendimento (UPA), Unidades Básicas de Saúde (UBS); isso é antieconômico. A cidade tem uma escala econômica, e a partir de um certo tamanho ela acaba sendo antieconômica.
Em termos ambientais, uma cidade mais compacta emite menos carbono porque tem menos distâncias a serem percorridas, tanto pelas pessoas quantos pelos serviços que as pessoas acessam. Além disso, a cidade mais compacta é mais eficiente e não converte áreas ambientais em áreas urbanas, evitando vários tipos de impactos ambientais.
IHU – Embora não seja necessário expandir a cidade, a demanda por moradia é uma realidade nas cidades brasileiras. Quais são os espaços vazios em Porto Alegre que já têm infraestrutura para receber as pessoas, seja em área construída, seja com potencial de construção?
Iporã Brito Possantti – O Brasil tem um problema sério de habitação. Sou engenheiro ambiental, mas acabo tendo contato com esse campo. Só vamos conseguir a universalização do saneamento a partir de uma reforma urbana radical porque não tem como universalizar a coleta de esgoto em favelas e vilas. Já tentamos várias propostas para tratar os riachos que acabam virando uma lavagem de esgoto a céu aberto no Brasil. Portanto, a questão da reforma urbana está associada a outras questões, inclusive ambientais, de saneamento, humanitárias.
É uma questão que ainda estamos para resolver no país. Existem iniciativas belíssimas em relação a isso. Em São Paulo, vi uma iniciativa esplêndida, em que as pessoas foram removidas do local onde moravam para que a reforma fosse feita e depois retornaram para o mesmo lugar. Ou seja, não houve impacto de remoção, que é um aspecto socialmente grave. Edificaram prédios com uma arquitetura interessante. Os blocos de moradia não precisam ser feios. Temos mentes brilhantes nas universidades pensado propostas. Ou seja, existe capital humano para resolver o problema; falta iniciativa.
Em Porto Alegre, arrisco dizer que existem categorias de espaços. Existem espaços literalmente vazios dentro da cidade. Próximo ao Jockey Club há uma área que foi aterrada com recursos públicos – porque nenhuma empresa faria uma obra de aterrar uma baía inteira do Guaíba – e agora estão edificando condomínios privados. Isso é um desaforo porque nem sequer trata-se de um projeto misto; é um projeto totalmente de alto padrão. Tudo bem ter alto padrão na cidade, mas tem que se fazer algo misto, com várias categorias socioeconômicas próximas. Essa é uma área literalmente vazia. Antigamente neste local existiam cocheiras de cavalos que foram abandonadas. Áreas desse tipo existem em muitos locais da cidade, próximos de zonas de serviço. Na avenida Bento Gonçalves, perto do Carrefour, existem áreas vazias. Essas áreas podem ser urbanizadas com novas obras.
Outras áreas construídas, nas quais já existe infraestrutura concluída há décadas ou séculos, estão subutilizadas, como o 4º Distrito, que era uma área industrial antigamente. Os galpões industriais poderiam ser demolidos e construídas novas habitações no local.
Uma terceira opção seria utilizar os 100 mil domicílios vazios que existem na cidade, segundo o último Censo. Esses domicílios têm dono e isso envolve uma atitude que talvez entre em conflito com o princípio da propriedade privada, porque as pessoas podem fazer o que elas quiserem com suas propriedades, inclusive não as ocupar. Mas, se temos uma necessidade de habitação, precisamos ter políticas que penalizem um domicílio vazio, com o aumento de Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), por exemplo, para penalizar quem fica especulando.
Existem menos pessoas morando em Porto Alegre hoje, então os aluguéis teriam que baixar de valor, mas as pessoas preferem especular. É uma distorção de mercado que precisa ser regulada. Esse problema pode ser atacado de muitos modos. Mas com certeza esse tipo de política pública aliviaria as pressões em torno do meio ambiente na zona sul e nas partes que são mais sensíveis ambientalmente. Também aumentaria drasticamente os índices de saneamento, além de enfrentar os problemas sociais.
IHU – O que seria uma reforma urbana radical? Como ela poderia ser executada nas regiões periféricas de Porto Alegre?
Iporã Brito Possantti – Em relação ao saneamento, é preciso uma reforma urbana radical porque é praticamente impossível, na prática, universalizar o saneamento sem a reforma urbana das favelas. O esgoto vai descer pelos riachos se não fizermos uma reforma das favelas e vilas. Levar água para as regiões é mais fácil, mas o tratamento de esgoto é mais difícil. Se quisermos universalizar o saneamento e se quisermos que os riachos das nossas cidades voltem a ser razoavelmente agradáveis, não para nadar, mas para pelo menos podermos passar perto deles, precisaremos reformar essas regiões, assim como a Europa fez. A Europa era uma imundície e fez uma reforma urbana, que pode ter sido muito injusta, aliás, mas nós temos que assimilar novos princípios de justiça para não sermos injustos.
O caso da Restinga, em Porto Alegre, é um caso de injustiça e de racismo ambiental porque a Restinga foi construída com base em remoções. Essas remoções fizeram com que as pessoas fossem morar muito longe dos serviços da cidade. Precisamos pensar em termos de direito à cidade e não em termos de expulsar as pessoas de onde elas moram. As pessoas moram na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, porque estão perto do metrô, do serviço, do contrário, elas têm que morar na zona oeste do Rio. A questão das favelas é complexa.
Outro problema são as áreas de risco hidrológico e geológico. As favelas foram urbanizadas com base no bom senso das pessoas e não com base em questões técnicas. Tivemos uma experiência na vila Boa Esperança, em Porto Alegre, onde conversamos com a comunidade e mostramos que algumas das áreas onde as pessoas vivem são áreas de risco. Elas precisam sair dali porque o poder público não vai reconhecer como legítimo para habitação uma área de risco. Precisamos pensar nessas questões, inclusive a partir das inundações que ocorreram recentemente. O Brasil precisa se reconhecer no espelho e mudar. Deixar de ser cego em relação a essas questões [de urbanização, saneamento] e amadurecer socialmente.