Segundo a pesquisadora, o novo governo Lula “será muito semelhante àquele iniciado em 2003. O que muda é a conjuntura tanto nacional quanto internacional”
Apesar do espírito apaziguador do presidente eleito, uma das “promessas de campanha que precisa ser cumprida é o chamado revogaço, ou seja, reverter as leis e decretos, muitas vezes ilegais ou abusivos, formalizados pelo atual (des)governo”, afirma Suzeley Kalil. Para ela, somente na área militar, “o levantamento preliminar do Instituto Tricontinental listou quase 40 medidas que precisam ser revogadas”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Suzeley Kalil também comenta a nomeação de José Múcio Monteiro para comandar o Ministério da Defesa. Em sua avaliação, a mudança ministerial indica que na área “não há uma nova política, mas a permanência daquela do (des)governo que está saindo”. Em outras palavras, “Múcio não foi escolhido, mas coroado por Lula. Ele foi indicado pelo meio militar e aceito por Lula. Isso não é conciliação, é capitulação”.
Suzeley Kalil (Foto: Arquivo Pessoal)
Suzeley Kalil é graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Leciona na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista – Unesp e no Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais ‘San Tiago Dantas’ (Unesp/Unicamp/PUC-SP).
IHU – Quais são os três pontos que destacaria como mais críticos a serem enfrentados pelo novo governo a partir dos levantamentos da equipe de transição? Que ações devem ser desenvolvidas para atacar esses pontos?
Suzeley Kalil – Em minha opinião de não especialista, o ponto crítico é o desmonte completo produzido pelo atual (des)governo, que promoveu uma política de terra arrasada em toda a estrutura da administração pública, de tal sorte que, por exemplo, houve cortes no orçamento cotidiano, que impedem que entidades públicas – universidades, por exemplo – paguem despesas correntes como luz dos prédios, que não sabe nem sequer informar a quantidade de vacinas com vencimento próximo, que promove a venda de imóveis para pagar aluguel etc. Essa forma de agir permitiu (ou promoveu) um total descontrole sobre a área militar de tal sorte que a Controladoria-Geral da União – CGU apontou, e isso em julho passado, ou seja, antes das eleições, irregularidades na ocupação de cargos e pagamentos para mais de 2 mil militares (CartaCapital, 12/07/22).
Embora compreenda a postura de Lula que, além de seu espírito apaziguador (a palavra que mais tem sido usada por estes dias), está na liderança de uma frente que envolve 15 partidos, creio que era necessária uma postura mais assertiva, apontando para a necessidade de não apenas desenhar um orçamento limitado, mas revogar a PEC do Teto. As notícias mostram que esta só existe para os gastos sociais, que a farra promovida pelo atual (des)governo não se submeteu a ela.
Uma promessa de campanha que precisa ser cumprida – mas a postura conciliadora de Lula aponta em outra direção – é o chamado revogaço, ou seja, reverter as leis e decretos, muitas vezes ilegais ou abusivos, formalizados pelo atual (des)governo. Só na área militar, o levantamento preliminar do Instituto Tricontinental listou quase quarenta medidas que precisam ser revogadas.
IHU – O que as negociações deste período indicam sobre o governo que sai e o que entra?
Suzeley Kalil – Indicam mais do mesmo. O que sai, promovendo a violência, o desrespeito às leis, a dissimulação e a mentira para manter seus apoiadores mobilizados e, ao mesmo tempo, tentando emparedar o novo governo – que, é bom dizer, venceu as eleições com toda sorte de boicote promovido pela máquina pública, usada pelo governo que sai sem o menor pudor e sem que as forças de segurança tomem qualquer medida. É impressionante a desprofissionalização promovida nas instituições de segurança.
Já o governo que entra, liderado por Lula, será muito semelhante, do ponto de vista da postura no governo, àquele iniciado em 2003. O que muda é a conjuntura tanto nacional quanto internacional.
IHU – Como avalia a nomeação de José Múcio Monteiro? Ele foi escolhido como um nome de conciliação, para acalmar os “clamores da caserna”? Em que consiste essa conciliação?
Suzeley Kalil – Entendo que a prioridade de Lula é criar condições de governabilidade, visto que não tem maioria no Congresso. E sua prioridade, como ele sempre diz, é “colocar os pobres no orçamento”. Assim, no campo militar Lula quer “acalmar os clamores da caserna”. No entanto, a maneira de lidar com setores civis e setores militares é diferente. As forças armadas são educadas com base na hierarquia e disciplina e, portanto, estes valores devem nortear o relacionamento com elas. Em outras palavras, não é a conciliação que dirige o relacionamento entre o comandante e o comandado, mas a autoridade (mando) e o subordinado (obediência). Assim, ao aceitar Múcio, Lula abriu mão do exercício da autoridade e, sem ela, não existe obediência – como ensina Weber e exemplificou a transição do regime autoritário na Argentina.
Em outras palavras, em minha opinião, Múcio não foi escolhido, mas coroado por Lula. Ele foi indicado pelo meio militar e aceito por Lula. Isso não é conciliação, é capitulação.
IHU – Há críticas de que a escolha de José Múcio não fará avançar as mudanças necessárias nas Forças Armadas e Defesa Nacional. Concorda?
Suzeley Kalil – Concordo. As primeiras medidas de Múcio mostram isso. Veja que ele adotou o “critério” de antiguidade para indicar os comandantes. Com isso, aponta que “tudo será como dantes no quartel de Abrantes”: não há uma nova política, mas a permanência daquela do (des)governo que está saindo.
IHU – Qual deve ser o papel e o lugar das Forças Armadas no novo governo Lula? Podemos esperar uma linha semelhante às outras gestões petistas?
Suzeley Kalil – Meu desejo é que as Forças Armadas fossem forças voltadas para a Defesa, o que implicaria acabar com sua tutela sobre as forças civis (o que implica no exercício da autoridade civil) e voltarem-se para os problemas reais de defesa, a externa. É ter uma política de defesa subordinada ao desejo expresso pela cidadania. A escolha de Múcio é a permanência de um ministério que trata da política militar, mas não da Defesa. As medidas já tomadas mostram que a linha política do governo será a mesma adotada pelo governo Lula em suas gestões passadas. E o pior é que sabemos o resultado.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Suzeley Kalil – Cargos de ministro são cargos políticos e, portanto, é esperado que seja ocupado por políticos que tenham alguma familiaridade com a área. Se concordamos com isso, é interessante observar que é corrente no Brasil a cobrança de que técnicos assumam a frente de ministérios (médico na Saúde, professor na Educação, economista no Planejamento...). Essa cobrança não é feita para a Defesa. No passado isso até se justificava, pois não havia civis especializados em política pública de Defesa; hoje, não. Atualmente, já há civis especialistas na área. Portanto, se o ministro é outsider, como se diz, deveria se cercar de especialistas. A indicação do secretário-geral do Ministério da Defesa feita por Múcio, que chamou um técnico do Tribunal de Contas da União – TCU para auxiliá-lo, aponta que ele não tem nem sequer a vontade de mudar as coisas. Passou do tempo de se criar uma carreira civil no Ministério da Defesa, mas creio que uma vez mais esta necessidade será frustrada.