Em conferência realizado no IHU, pesquisador analisa os pontos de intersecção do ritmo dos guetos com a teologia
“Inácio de Loyola dizia que podemos encontrar Deus em todas as coisas. Então, podemos vivenciar Deus no mundo, em expressões de Deus presente em tudo”. A afirmação é do professor Alejandro Nava, estudioso da religião, que compreende o hip-hop como uma leitura bíblica extremamente conectada a uma realidade específica, a de regiões de grandes cidades periferizadas e marginalizadas. Em geral, são lugares de gente preta que, pelo hip-hop, ergue a voz como profetas contra o racismo e todas as formas de preconceitos e segregações. “Creio que o hip-hop está em continuidade com a visão dos profetas bíblicos, trazendo à luz as condições de pobreza, levantando a voz contra o racismo. Vemos o hip-hop em muitos contextos, sendo a voz dos despossuídos, dos esquecidos e isso é um aspecto essencial da cultura do hip-hop. Portanto, os elementos proféticos são centrais no hip-hop”, completa.
Na videoconferência promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, realizada em 02-12-2022, dentro do espaço do IHU ideias, Nava revela que sempre vivenciou a cultura hip-hop e se surpreendeu quando percebeu que ela poderia ser objeto de estudos da religião. “Lembro de ouvir uma palestra, na década de 1990, proferida por Michael Eric Dyson, e o tópico era ‘Deus e o hip-hop’ e fiquei absolutamente atraído pelo título e pelo pensamento de considerar o hip-hop em relação com a religião”, recorda.
Numa autêntica manifestação popular, que emerge das ruas, ao longo de uma hora e meia de palestra, Nava percorre a obra de diversos artistas para mostrar como a fé emana organicamente dos rappers. É o caso de Tupac, um dos mais famosos dos Estados Unidos. “Não é uma crença simplista em Deus. Tupac frequentemente se compara ao Livro de Jó, onde Jó estava lutando com Deus, buscando o sentido de acreditar em Deus à luz do sofrimento e da injustiça. Tupac abraçou Deus como um elemento de esperança em circunstâncias muito difíceis. Ele é muito complexo e interessante”, analisa.
Naturalmente, nem toda cultura hip-hop defende minorias e nem sempre essa cultura manifesta certa espiritualidade. “Tem a vulgaridade, tem a história do sexismo, o materialismo, o sucesso dos rappers que é mensurado pelo dinheiro que ganham, seus carros ou joias. Tudo isso é uma crítica muito válida à cultura hip-hop, mas se só olharmos essa parte, acabaremos perdendo sua complexidade tremenda. Há artistas que estão dando voz às lutas dos pobres e despossuídos”, contrapõe.
Alex Nava
Foto: Reprodução - YouTube
Alejandro Nava fez mestrado e doutorado em Estudos da Religião na Universidade de Chicago. Sua primeira experiência docente foi na Universidade de Seattle antes de trabalhar na Universidade do Arizona, em 1999. Desde então, criou vários cursos, entre eles: “Amor e religiões do mundo”, “A questão de Deus”, “Religião e cultura no sudoeste”, “Rap, cultura e Deus” e “Religião na América Latina”. Nava está escrevendo um livro sobre a experiência de maravilhamento na religião e na literatura latino-americana. Das suas diversas obras, a mais recente é Street Scriptures: Between God and Hip-Hop (University of Chicago Press, 2022).
Devo iniciar minha fala destacando que a proximidade com a fronteira [dos Estados Unidos com o México] me influenciou bastante. Minha família está na região do Arizona há várias gerações. As culturas do sudoeste, predominantemente espanhola e mexicana e de tradições indígenas, fazem parte da cultura dessa região dos Estados Unidos. Estamos há cerca de 40 minutos da fronteira com o México e eu considero muito importante uma imagem formativa de minha família viajando e cruzando a fronteira. Lembro, quando era criança, de estar de frente com essa pobreza bastante grave. Claro que há uma pobreza muito grande em muitos países em desenvolvimento, mas em lugares do México vemos algumas das favelas com uma pobreza muito grave, as pessoas vivendo em casas sem água encanada, esgoto e eletricidade.
Lembro que isso teve uma influência importante sobre mim, tendo presente aquelas pessoas que viviam do outro lado da fronteira dos EUA. Quando estive na universidade estudando, no final da década de 1980 e início da década de 1990, ouvi falar de um movimento chamado Santuário, que reunia várias igrejas, incluindo muitas católicas. O grupo fornecia refúgio para imigrantes que fugiam de partes da América Central. Isso também teve uma grande influência em minha formação.
No fim, decidi que queria estudar religião e teologia. Fui atraído pelos teólogos da libertação. Lembro do brasileiro Dom Hélder Câmara e do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez e muitos dos teólogos que estavam escrevendo sobre ser cristão no contexto da injustiça global e no contexto de grande pobreza, desigualdade e opressão. Essas coisas me influenciaram muito. Acabei na Universidade de Chicago e escrevi minha tese sobre Gustavo Gutiérrez e Simone Weil, filósofa francesa, uma intelectual notável.
Fiz minha tese sobre Gustavo Gutiérrez e Simone Weil, mas cresci ouvindo hip-hop. Isso fez parte de minha criação, mas nunca pensei que estaria ligado aos estudos da religião. Pensava que eram caminhos separados, mas quando estudei na Universidade de Chicago, região sul da cidade, predominantemente formada por afro-americanos, o hip-hop estava vibrante e vivo.
Lembro de ouvir uma palestra, na década de 1990, proferida por Michael Eric Dyson e o tópico era “Deus e o hip-hop”. Fiquei absolutamente atraído pelo título e pelo pensamento de considerar o hip-hop na relação com a religião. Foi a primeira vez que prestei atenção à frequência com que muitos rappers invocavam Deus. Foi quando também comecei a pensar nas dimensões espirituais e religiosas do hip-hop. Antes disso, sempre foi cativado pelo seu estilo de rima, pela linguagem mágica, a forma como um grande rapper cativava a imaginação dos ouvintes, usando a linguagem como forma de encanto. Foi a primeira vez que fui tomado pela palavra falada e pela poesia.
Michael Eric Dyson, acadêmico, escritor, ministro ordenado e apresentador de rádio na Universidade Vanderbilt, nos EUA.
Foi em uma de suas palestras que Alejandro Nava descobriu a conexão entre religião e hip-hop. | Foto: Wikipédia
Assim, o hip-hop foi minha introdução à arte da poesia e lentamente comecei a prestar mais atenção ao que eles estavam dizendo, as questões sociais, os direitos humanos e, logicamente, como citei, os temas religiosos. Meu irmão breaker, era um bboy, e me lembro que em Tucson, no Arizona, a cultura de breakdancing desenvolvia até uma competição; eles competiam com grupos de dança entre si. Na época, isso era considerado legal. Era realmente uma coisa bem pacífica. Era como uma arte de criação, expressão corporal e dança. Esses anos tiveram uma grande influência sobre mim.
Quando comecei a lecionar na Universidade do Arizona, tinha aulas sobre rock, sobre a história do jazz, sobre música clássica, mas ninguém ensinava sobre o hip-hop, o que considerei uma falha. Então, criei um curso sobre religião e hip-hop e, com o passar dos anos, ele cresceu. Em determinado momento, eu estava lecionando para uma turma com 350 alunos.
Nos Estados Unidos, há o consenso de que o hip-hop foi desenvolvido na região sul do Bronx, em Nova York, mais ou menos entre 1970 e 1973. No início, era um movimento underground, não era tocado nas grandes rádios, não tinha muita atenção da mídia nos primeiros anos. A MTV, nas décadas de 1970 e 1980, era dominada pelo rock, e o hip-hop e a maioria das músicas negras era ignorada por esse canal televisivo de músicas.
Bronx, ao norte, em amarelo claro, no contexto de Nova York. | Mapa: reprodução Subway NYC
Finalmente, Michael Jackson abriu as portas para vários artistas quando a MTV começou apresentar artistas negros, como Prince e, depois, o hip-hop. Começando com essa forma mais underground, foi como se desse um microfone a jovens negros e mulatos para permitir que contassem suas histórias.
É como se alguém questionasse: de onde vocês são? Quais são as lutas que enfrentam em suas vidas? Quais são seus sonhos, esperanças e aspirações? Este momento visibilizou muitos grupos aqui nos Estados Unidos que, historicamente, eram invisíveis e marginalizados. Lembrando que isso foi na década de 1970, seguindo os movimentos dos direitos civis da década de 1960. O hip-hop é a continuação dos aspectos dos direitos civis, embora seja mais uma expressão artística em comparação com uma expressão política. É um movimento artístico, trata da linguagem, do movimento da poesia, tem a ver com a arte do beatmaking [elementos percussivos a partir de uma melodia], as batidas de grafite, também track dancing.
No início, o hip-hop era uma expressão desafiadora através da celebração. Era o poder desafiador da alegria, da dança, para muitos jovens negros e mulatos nos Estados Unidos. Toda história do hip-hop começa com a menção de três figuras fundamentais:
Grandmaster Flash Furious Five
DJ Kool Herc
Afrika Bambaataa.
As três figuras foram pioneiras nas décadas de 1970 e 1980. Para mim, a música que se destaca é “The Message”, de Grandmaster. No início da década de 1980, ela foi uma amostra de como era viver em áreas urbanas empobrecidas dos Estados Unidos.
Vendo este clipe acima, temos uma ideia do que trata a música. Seu refrão fala que é como se fosse uma floresta. Se observarmos algumas imagens, veremos que é o sul do Knox, bairros pobres, com prédios manchados e o tipo de infraestrutura decaída. Essa foi uma das primeiras músicas que deu expressão às lutas e frustrações de viver em guetos ou favelas. Ela apontou como era a vida nessas circunstâncias. Foi um ponto de virada importante na história do hip-hop.
Antes disso, a música era orientada para festas, e acho que este é um ponto importante do hip-hop: há elementos centrados em festas e há aspectos de engajamento social. Muitas vezes, as pessoas discordam sobre o que é mais importante. Há quem goste somente do hip-hop socialmente consciente, e há quem se sente atraído pelo estilo mais festivo. O importante não é uma análise social, mas a dança, a celebração, a beleza, o poder e a alegria que a música pode trazer. A verdade é que esses aspectos estão interligados e muitos dos grandes artistas têm a interseção de ambos os aspectos.
Depois do período de 1970 e 1980, o hip-hop começou a assumir características dos bairros, local onde foi fundado. Havia aspectos do hip-hop se desenvolvendo em Nova Orleans, que era diferente do hip-hop de Houston ou do Bronx, e diferente do que estava acontecendo na Califórnia.
Nas décadas de 1980 e 1990, surgiu a música gangsta rappers. Este é provavelmente o maior contraexemplo do que estou afirmando, que é uma dimensão espiritual e religiosa muito forte. O gangsta rapper é logicamente contra isso porque tende a ser violento, vulgar, sexista, homofóbico. Ao mesmo tempo, esse estilo falava de algumas das lutas de ser negro e viver nos Estados Unidos. O grupo que falava de como seria viver em Compton, na Califórnia, com todas as brigas com a polícia e os abusos sofridos.
Isso foi antes de as pessoas terem telefones celulares. Então, a polícia poderia fazer o que quisesse com alguns dos moradores e não haveria nenhum registro. A vida dos negros era tratada de forma bastante cruel; havia todo o tipo de abuso. Assim, embora o gangsta rapper fosse sexista, violento e vulgar, ele também estava captando muito das lutas e injustiças da vida americana.
O hip-hop cresceu e mudou desde que surgiu. Ele ainda é um gênero bastante jovem. À medida que entramos na década de 1990 e nos anos 2000, vimos cada vez mais grupos surgindo e uma variedade de perspectivas. Houve uma maior representação de artistas femininas e uma maior representação de artistas que desafiam o gangsta rapper e sua violência. E aí o hip-hop mostrou uma maior diversidade da vida americana, diferentes perspectivas em comparação com as comunidades negras.
Esses novos artistas eram críticos da violência e do materialismo desse gênero. Mas também se tornou global e com muitas críticas dos lugares onde se desenvolvia, especialmente depois de 2010. Isso o faz um exemplo, seja no Brasil, seja na Rússia. Aliás, Putin foi muito duro contra artistas de hip-hop por criticarem o governo. Ou seja, o hip-hop, na sua manifestação global, frequentemente tem sido uma voz de protesto, uma voz desafiadora contra as injustiças e condições opressoras, na América Latina, na Europa, na África. O estilo acaba também assumindo características das culturas locais.
Há um desenvolvimento, mais ou menos em 2010, marcado por um elemento introspectivo profundo. Ele envolveu alguns artistas que se confrontavam com medos, ansiedades e depressões. De maneira geral, isto foi bastante novo porque o hip-hop, no passado, nunca revelaria sua vulnerabilidade. Na verdade, o estilo precisava representar dureza, a imagem do gangster. Atualmente, a forma de pensar mudou tanto que agora os artistas falam dos problemas da depressão e ansiedade, algo não visto antes.
Enfoquemos agora uma dimensão espiritual ou religiosa no hip-hop. Uma das formas mais claras que mostram uma ligação com a tradição bíblica é a tradição dos profetas. Os profetas bíblicos anunciavam oráculos e mensagens que estavam recebendo de Deus, mas, com frequência, faziam na forma de poemas e canções. De fato, há um texto interessante no livro de Ezequiel, capítulo 33, onde o profeta se compara a um cantor. É muito fascinante, pois Ezequiel transmite a mensagem não apenas de forma poética, mas provavelmente em forma de canções. Com os profetas, havia uma preocupação especial com os pobres, órfãos e migrantes. Para os profetas, Deus nos chamava a acolher os pobres e vulneráveis, os necessitados e migrantes. Deus aparecia na forma dessas figuras.
Penso sempre na figura clássica de Moisés, que considero um momento decisivo em toda a tradição bíblica. O profeta Moisés – lembre-se que ele era filho adotivo e cresceu na aristocracia, na corte egípcia – testemunhou os maus-tratos aos escravos e ficou tocado de compaixão. Ele acidentalmente mata o egípcio que estava abusando do escravo. A Bíblia diz que Moisés basicamente tomou o lado dos escravos contra os egípcios, embora fosse membro da aristocracia. Essa tradição influenciou toda a tradição bíblica. A figura de João segue os passos de Moisés, ele toma o lado dos pobres, das viúvas e dos necessitados.
Creio que o hip-hop está em continuidade com a visão dos profetas bíblicos, trazendo à luz as condições de pobreza, levantando a voz contra o racismo. Vemos o hip-hop em muitos contextos, sendo a voz dos despossuídos, dos esquecidos e este é um aspecto essencial da cultura do hip-hop. Portanto, os elementos proféticos são centrais.
Vejamos a questão da religião em sentido mais amplo. Pergunto aos alunos por que acham que o hip-hop tende a ter uma maior preocupação com questões sociais e religiosas. A explicação possível é que o hip-hop reflete algumas das culturas, e aqui vou falar dos Estados Unidos. Ele reflete as inclinações religiosas dos afro-americanos.
Há um estudo de 2007 ou 2008 sobre as preferências religiosas dos norte-americanos. Eles faziam perguntas como: você acredita em Deus? Qual a importância da religião na sua vida? Você é filiado a uma tradição religiosa? Em mais de 90% das respostas, os afro-americanos diziam acreditar em Deus, um alto percentual alegava que a religião era muito importante em suas vidas e que tinham alguma filiação religiosa.
Creio que um dos motivos que faz com que muitos da música negra dos Estados Unidos se interessem por questões religiosas e espirituais é que ela reflete algumas dessas inclinações. Se olharmos para alguns dos artistas principais do hip-hop, veremos que muitos deles usam a poesia do hip-hop como forma de explorar suas crenças e empreender uma busca interna em si próprios. Nos Estados Unidos, figuras como Tupac Shakur estiveram obcecados por Deus, o que é possível observar em muitas de suas músicas.
Não é uma crença simplista em Deus. Tupac frequentemente se comparava ao Livro de Jó, onde Jó estava lutando com Deus, buscando o sentido de acreditar em Deus à luz do sofrimento e da injustiça. Tupac abraçava Deus como um elemento de esperança em circunstâncias difíceis. Ele é complexo e interessante.
Há artistas, como DMX, figura importante da cultura hip-hop do fim da década de 1990 e início dos anos 2000, em que a oração e a espiritualidade são centrais em suas músicas.
Lauryn Hill também foi uma figura notável com seu álbum The Miseducation of Lauryn Hill, um clássico na história do hip-hop, cheio de sensibilidades religiosas.
Chegando mais ao nosso tempo, há vários novos artistas, como os rappers Chance Rapper e Kendrick Lamar, alguns dos mais famosos rappers contemporâneos. Kendrick Lamar ficou obcecado com os temas religiosos e, realmente, se vermos seus principais discos, há uma enorme diferença entre suas primeiras músicas e os grandes álbuns de estúdio. Ele passou por uma conversão religiosa e ficou cada vez mais preocupado com a questão da religião. Seu álbum Good Kid, M.A.A.D City também estava lutando com Deus. No disco, há uma música chamada “Sing About Me, I’m Dying of Thirst”.
No álbum seguinte, How Much a Dollar Cost é uma música notável que fala de Kendrick Lamar encontrando Deus no rosto de um mendigo, de alguém que estava pedindo dinheiro. Então, seguindo a música, vemos que o mendigo é Deus, é Jesus aparecendo na forma de um mendigo. De fato, é algo que é verdade não apenas na tradição bíblica, onde Deus frequentemente aparece na forma de um forasteiro, como nas histórias relacionadas a Abraão, em que Deus aparece como um estranho. Mesmo fora das tradições judaicas e cristãs, como na tradição hindu, Deus aparece na forma de mendigo. É uma música fascinante. Eu gostaria que vocês ouvissem um trecho.
É uma música notável, que mostra um diálogo consigo mesmo de quanto custa um dólar. Basicamente, ele diz que é como se ele estivesse se desafiando com a tentação de salvar sua alma. A letra descreve um rapper que atingiu o sucesso e tem bastante dinheiro, mas está expressando que sua alma vale muito mais. Ele passa por essa jornada espiritual na música, e parte do seu despertar ocorre nesse reconhecimento de que Deus está na forma de um mendigo, na forma de um pobre, de um oprimido. Esse tema é central na tradição bíblica.
Destaco um outro clipe de Kendrick Lamar, do álbum Damn, que é mais popular, chamado Humble. Ela está cheia de temas religiosos, e o rapper aparece numa catedral vestido com roupas sacerdotais.
O clipe mostra uma figura conflitante: parte dele é um rapper, uma figura com dinheiro (vemos ele em uma mesa cheia de dinheiro e com mulheres), mas de fato está contrastando e lutando contra a riqueza. Ele busca um caminho mais alto, um bem verdadeiro para sua alma, para seu espírito não se perder na riqueza material e nos prazeres.
O Kendrick Lamar é o primeiro rapper a ganhar um Prêmio Pulitzer com o álbum Damn. É um artista meio complicado. Em geral, o hip-hop norte-americano tende a ser atraído basicamente por ideais cristãos gerais, fora de qualquer denominação. Às vezes, alguns aspetos do hip-hop vêm dessas denominações não ortodoxas.
Recentemente, voltei minha atenção à forma como o hip-hop continuou se desenvolvendo na América Latina, com o surgimento do reggaeton, gênero em que Bad Bunny é destaque. Ele é um dos artistas mais populares do mundo atualmente, tem um alcance extraordinário e uma formação católica. Isso não me surpreende. Ele é de Porto Rico, não tenho certeza se é católico praticante, mas podemos perceber como os valores católicos são importantes para Bad Bunny.
A forma como o hip-hop se desenvolveu em Cuba foi fascinante porque começou com as tradições do hip-hop americano e foi se misturando com a música e a tradição cubanas. Vejamos uma música de um grupo chamado Orishas.
São maravilhosos. Como podemos ver, há uma visão de aspectos da música cubana com o hip-hop americano feitos por uma fórmula que continua se desenvolvendo. Desejo aprender mais sobre o hip-hop brasileiro. Sei que é bastante rico e complexo. Quero estudar português para aprender mais sobre alguns artistas. Tenho ouvido Baco Exu do Blues e, de muitas formas, ele invoca Deus. O Exu, Deus, é muito parecido com a tradição dos orixás. Exu é um deus dos caminhos cruzados dessa tradição yorubá, fascinante tanto em Cuba como no Brasil. No Brasil, vocês têm a fusão da tradição católica com as religiões de matriz africana, e me parece que Baco Exu, já no nome, invoca essa tradição de representar as lutas dos povos africanos em todas as Américas.
Penso que há problemas com o hip-hop. Nele, tem a vulgaridade, tem a história do sexismo, o materialismo, o sucesso dos rappers que é mensurado pelo dinheiro que ganham, seus carros ou joias. Tudo isso é uma crítica válida à cultura do hip-hop, mas se só olharmos essa parte, acabaremos perdendo sua complexidade tremenda. Há artistas que estão dando voz às lutas dos pobres e despossuídos. Vimos que, nas Américas, o hip-hop é a voz das lutas de povos indígenas, povos africanos. Nos EUA, os afro-americanos ou afro-latinos, os mexicanos do sudoeste, estas populações também têm histórias de abuso, colonialismo e maus-tratos.
Então, é uma forma de arte notável e, no fim, mesmo que eu refletisse que o hip-hop é alguma coisa que surgiu no sul do Bronx na década de 1970, a verdade é que a ideia de poesia como música, conectando uma à outra, é antiga, vem desde o início da Grécia antiga. Todo poema era cantado, era mais música do que apenas versos. O hip-hop é uma recuperação dessas tradições antigas, em que os poemas eram recitados e cantados. É uma forma extraordinária e extremamente criativa, e que acho que vai continuar assim. Cada vez mais, veremos artistas que usam esse gênero para se expressar, serem criativos e manifestarem seus lamentos e injustiças que veem no mundo, bem como sua esperança de um mundo melhor. Isso tudo faz parte da cultura hip-hop.
No fim da palestra, Alejandro Nava respondeu a perguntas dos espectadores. Confira os principais pontos.
Podemos comparar com os salmos a expressão artística marginal do hip-hop em busca de libertação e salvação?
Alejandro Nava – Sim, com certeza. É interessante essa pergunta, pois estou lendo um novo livro sobre os primeiros cristãos nos séculos II, III e IV. O que é interessante é que, muito provavelmente, em muitas das liturgias dos primeiros cristãos a música teria tido parte importante e os salmos, em particular, foram fundamentais e quase sempre eram cantados. De fato, o pesquisador bíblico que estou lendo menciona que é muito pouco provável que as leituras bíblicas, em sua maioria, fossem somente lidas, e não cantadas também. Ele argumenta que, majoritariamente, os textos bíblicos teriam sido cantados, e não apenas os salmos. Com certeza os salmos, mas também outros textos teriam sido cantados.
Este dado é interessante, especialmente na tradição do Oriente Médio, no Egito, na Síria, pois os primeiros cristãos tinham modos bem elaborados e sofisticados de cantos e de cantar os textos religiosos, em especial os salmos. A tradição judaica tem algo chamado cantillation, que consiste em cantar as escrituras.
Nos Estados Unidos, como no Brasil e na América Latina, o hip-hop se transformou com o tempo e assumiu uma posição de ostentação de riquezas depois do destaque midiático. Seria essa uma expressão ideológica na mesma linha da teologia da prosperidade? Seria um movimento ideológico e sociológico parecido?
Alejandro Nava – Sim. O evangelho da prosperidade é muito grande aqui nos Estados Unidos. Diria que faz parte de uma religião civil americana, que é essa teologia da prosperidade, o deus da prosperidade que quer ser rico e buscar a riqueza de qualquer forma. É um aspecto muito preocupante do cristianismo e vai contra os valores das escrituras, os valores de Jesus.
Jesus é consistentemente crítico da riqueza em todos os evangelhos, especialmente em Lucas, onde sempre levanta a questão dos ricos e da riqueza, e é muito duro e crítico. Aquele texto bíblico, que diz que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que o rico entrar no Reino de Deus, revela muito bem o espírito do Evangelho. Por isso, digo que sim, há aspectos do hip-hop que são muito parecidos com o evangelho da prosperidade e julga o sucesso pela riqueza e pelas posses materiais.
Vou mencionar um aspecto menos conhecido: há vários artistas, Grandmaster Flash, Public Enemy, Lauryn Hill e outros que estão questionando essa teologia da prosperidade, lutando contra o que consideram um chamado mais alto dos valores da alma em oposição aos valores do dinheiro. Essa é uma tensão real na cultura do hip-hop.
Percebe um aumento de interesse em pesquisas sobre o hip-hop na intersecção com a teologia?
Alejandro Nava – Nos Estados Unidos, isto é algo que eu não previa. Criei essa minha aula no início dos anos 2000 e, desde então, tem havido uma enormidade de cursos nas universidades americanas sobre hip-hop a partir de perspectivas sociológicas, musicais, estudos religiosos e outras áreas, como os departamentos de inglês dedicados à poesia do hip-hop. Então, tem sido notável a explosão do interesse no nível acadêmico quanto à cultura hip-hop. Não me surpreenderia ver isso no Brasil à medida que continuarmos.
A cultura carismática católica católica tenta criar músicas e demais expressões artísticas engajadas com a cultura popular. No entanto, parece que é artificial. Por outro lado, o álbum “Sobrevivendo no inferno”, dos Racionais MC’s ou “This is America”, de Childish Gambino, nos EUA, conseguem falar de Deus e da teologia sem precisar adotar uma leitura estritamente religiosa. Podemos dizer que a cultura gospel é completamente distanciada da cultura popular, enquanto a cultura popular consegue narrar e refletir sobre Deus com mais validade na sociedade de hoje?
Alejandro Nava – Sou católico e ser católico foi uma parte importante da minha criação, mas, com o passar do tempo, fui atraído para os aspectos do cristianismo que eram mais consistentes com a noção da teologia da libertação, com a preocupação com os pobres, os oprimidos. O Papa Francisco tem sido uma voz para a luta dos pobres, dos refugiados e imigrantes. Então, tendo a me ver atraído por essa visão de Igreja. Mas, se perguntar sobre a trajetória dos pentecostais, diria que existem aspectos do hip-hop que são muito semelhantes. No entanto, também sei que alguns setores do catolicismo tendem a estar aliados à extrema-direita, como Bolsonaro e Trump.
70% dos evangélicos nos EUA votaram em Trump. O percentual não é tão alto assim entre os católicos, mas há católicos que são mais conservadores e ligados a valores relativos à família e antiaborto – e esses são os únicos problemas que importam para eles. Há essas divisões entre as versões mais de esquerda do cristianismo, o cristianismo afro-americano, o catolicismo latino, que tendem a ser um pouco mais de centro e de esquerda, e há uma versão do cristianismo que é mais de direita.
Sobre a última parte da pergunta, acerca da questão popular, diria que o mais importante para o meu último livro, Street Scriptures: Between God and Hip-Hop [Escrituras de rua: entre Deus e o hip-hop, em tradução livre] (University of Chicago Press, 2022), foi uma ideia básica: Inácio de Loyola dizia que podemos encontrar Deus em todas as coisas. Então, podemos vivenciar Deus no mundo, em expressões de Deus presente em tudo.
Em uma de suas músicas, o rapper Baco Exu do Blues diz que tudo o que tinha sido marginalizado por ser criação do povo preto, que era considerado do “demônio” pelas outras pessoas e que depois de apropriado pelos brancos passou a ser aceito, ele vai chamar de “blues”. Então ele afirma que Jesus é blues! A cultura do hip-hop, quando se aproxima de Deus e da teologia, procura evidenciar a aproximação de Jesus com o povo marginalizado, diferente do que a cultura/educação eclesial muitas vezes repercute?
Alejandro Nava – Eu fico muito contente em ouvir essa pergunta porque não sou especialista e ouvi muito pouco sobre o Baco Exu do Blues, mas uma coisa que observei é essa noção de que “Jesus é blues”. O que ele está dizendo é algo que Tupac Shakur dizia: que Jesus era negro. Essa noção de “Jesus é negro” é apenas uma outra forma de dizer que “Jesus é blues”, que Jesus se aliou com os oprimidos, pobres e necessitados. É por isso que comecei minha fala com a figura de Moisés, que assumiu o lado dos escravos contra o faraó. Esse é um elemento central da tradição bíblica. É isso que o Baco Exu do Blues quer dizer quando diz: “Jesus é blues”.
A letra da música Genesis, dos Racionais MC’s, diz o seguinte: “Deus fez o mar, as árvore, as criança, o amor. O homem me deu a favela, o crack, a trairagem, as arma, as bebida, as puta. Eu?! Eu tenho uma Bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta. Tô tentando sobreviver no inferno.” A letra afirma a diferença entre a criação narrada no Gênesis e a sociedade feita pelo homem. O álbum trata da realidade do povo da periferia brasileira e de como a exploração e a desigualdade geram o encarceramento em massa, principalmente da população preta.
Em 2018, Mano Brown, principal autor do álbum, afirmou, nas vésperas em que o presidente Bolsonaro foi eleito, que os movimentos de esquerda se afastaram da periferia. Em que medida a Igreja também tem se afastado do povo e das periferias? O quanto a Igreja consegue conversar e explicar o Genesis dessa forma explicada pela música?
Alejandro Nava – Eu gostei! O Papa Francisco tem sido contundente em que a Igreja precisa se incorporar nas vidas e lutas das pessoas, de todas as pessoas marginalizadas, não apenas dos negros e dos indígenas. Vejo que o hip-hop, de muitas formas, usa esses valores de preocupação com os marginalizados e os pobres para falar com as gerações mais jovens, que crescem com uma paixão pela música.
Essa é uma das formas. Mas, nos EUA, a Igreja nem sempre esteve interessada nas lutas dos imigrantes, dos pobres, dos guetos e das favelas. Isso nem sempre foi uma preocupação para alguns dos bispos americanos. Mas o Papa Francisco vem sendo um líder muito contundente neste aspecto.
Assista a videoconferência aqui: