11 Novembro 2007
No final da década de 1980, quando o Brasil elegia seu primeiro presidente de forma direta e entrava numa das piores crises econômicas, elevando as diferenças sociais, nascia, na periferia de São Paulo, o grupo de rap Racionais MC’s. Formado por Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e DJ KL Jay, o grupo ficou conhecido em todo o País em 1997, ao lançar o álbum “Sobrevivendo no inferno”. Usando a linguagem da periferia, com gírias e expressões típicas das comunidades pobres paulistanas, as letras dos Racionais MC’s fazem um discurso contra a opressão à população marginalizada na periferia e procuram passar uma postura contra a submissão e a miséria. A IHU On-Line conversou com o professor Anderson Grecco, que acaba de defender uma dissertação intitulada “Racionais MC´s: música e crítica social em São Paulo”, sobre o movimento do rap e do hip-hop no Brasil e a importância da crítica social feita pelo grupo para a história do País. A entrevista foi realizada por telefone.
Anderson da Costa e Silva Grecco é graduado em Geografia, pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Guarulhos, com especialização em Ensino em Geografia e em História, Sociedade e Cultura, pela PUC-SP. Com a dissertação sobre a banda Racionais MC’s, obteve o título de mestre em História, também pela PUC-SP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O disco mais importante dos Racionais MC’s, "Sobrevivendo no inferno", foi lançado há dez anos. Qual é a importância hoje de grupos como este para São Paulo e para o Brasil?
Anderson Grecco – Os Racionais MC’s são muito importantes para entendermos o nosso próprio País. Nos trabalhos feitos em 1993, 1997 e 2002, a questão da crítica social é a mesma, ou seja, o problema social no Brasil continua igual. Eu acredito que a maneira como eles analisam a questão da exclusão social, como analisam as mazelas da sociedade que estão aplicadas em várias partes do Brasil, é muito útil, porque se trata de um grupo formado por pessoas que não vêm do meio acadêmico, que não estão dentro daquela crítica social acadêmica e mesmo assim conseguem produzir algo que chama a atenção de quem está inserido no meio acadêmico. Isso os torna mais importantes ainda.
IHU On-Line – O rap e o funk são considerados uma forma alternativa e inclusiva para a socialização dos jovens. Qual é a contribuição que a crítica social feita pelos rappers dos Racionais MC’s para a socialização dos jovens das periferias do País?
Anderson Grecco – Eu acho que o objetivo principal da crítica social dos Racionais MC’s é conscientizar, porque o jovem da periferia em geral sofre muito com a questão da exclusão social, de não poder participar daquilo que a sociedade capitalista pode oferecer de melhor, e que certamente nem sempre o é, mas nem sempre ele tem consciência disso. Então, o trabalho deles tem por base conscientizar, esclarecer, explicar para os jovens algumas questões que são abstratas dentro do sistema capitalista e até dar alguns encaminhamentos, como a valorização da questão da família, a valorização do estudo, a desvalorização do consumismo exagerado. As letras das músicas dos Racionais MC’s vão colocando para o jovem da periferia que não é porque não pode ter, digamos, o "melhor" que ele não serve. As letras dizem que o jovem deve tentar melhorar, mas que não deve buscar simplesmente o consumo. Alguns jovens vão para o mundo do crime exatamente por isso, para ter tudo o que eles vêem na televisão. Então, eles criticam esse tipo de atitude e encaminham, através de suas músicas, para a questão da educação, para o trabalho honesto.
IHU On-Line – Os Racionais MC’s levaram mais de dez anos para serem reconhecidos por sua música e por sua luta contra a submissão e miséria. Porque se levou tanto tempo para entender que essa linguagem utilizada pelo grupo fala o que o jovem da periferia gostaria de dizer?
Anderson Grecco – Eu acho que eles projetavam, no início de carreira, a dificuldade, que realmente viveram, no mercado fonográfico. Isso porque entre o final da década de 1980 e o começo da década de 1990, quando eles surgiram, havia a dificuldade em aparecer porque estava em alta um rap mais meloso, que falava de amor, com rimas inocentes e que eram considerados mais importantes, por isso tinham mais espaço na mídia, pois eram um produto mais fácil de vender. Isso acontece até hoje. Muita gente acredita ainda que a música dos Racionais MC’s tenha muita raiva, muita violência. É possível ver até mesmo rappers, como MV Bill (1), ficarem mais mansos, principalmente o Marcelo D2 (2), que fala que agora precisa falar mais de amor. No início, foi uma dificuldade inicial para que eles pudessem gravar. Quando os Racionais estouraram em São Paulo, em 1993, eu acho que foi um primeiro passo para logo depois repercutir no Brasil. Esse foi o primeiro obstáculo: ficarem conhecidos em todo o Brasil, porque eles trabalham com uma divulgação que não vai para a grande mídia. O grupo optou por uma outra mídia, que não tem um alcance nacional e isso dificultou que fosse conhecido e aceito no resto do País.
IHU On-Line – A postura antimidiática que os Racionais MC’s adotaram, mesmo depois do sucesso de "Sobrevivendo no inferno", contribuiu para que o seu público-alvo, ou seja, o jovem da periferia paulistana continuasse a respeitá-lo?
Anderson Grecco – As entrevistas que fiz durante o trabalho, como, por exemplo, com o Edy Rock (3), que é um dos vocalistas, e outras entrevistas que coletei em jornais, revistas e internet, indicaram que eles vão ter uma postura antimidiática porque, na realidade, buscam um tipo de mídia, de emissora de televisão ou rádio, onde possam desenvolver seu trabalho. A grande crítica deles às grandes emissoras, como a Globo, é porque acreditam que lá são enquadrados dentro de um padrão, que implica em não falar o que quer e virar um produto. O grupo acredita que perder essa característica seria o começo da derrota, o começo da derrota dos rebeldes.
Os Racionais acreditam, portanto, que essa rebeldia é importante. O próprio produtor deles, o Milton Sales (4), acredita, e passou isso para os Racionais MC’s, quando eles eram jovens ainda, praticamente adolescentes. Afirmava que se o trabalho deles tivesse valor e fosse conhecido pelo público-alvo, não precisariam virar um produto da grande mídia. Eu penso que o que mantém o grupo vivo é um público fiel. Acredito que um dia, eventualmente, se eles participarem da rede Globo, do SBT, isso irá se perder, assim como a autoridade junto ao seu público-alvo.
IHU On-Line – Muito se discute se o hip-hop e o rap são de fato arte, suas causas e conseqüências sociais, e sobre sua mercantilização. Para você, qual é o poder de transformação que esses estilos possuem?
Anderson Grecco – Nessa questão da inserção no mercado, da mercantilização, há pelo menos duas vertentes bem claras: artistas como MV Bill, Marcelo D2, Thaíde (5), que acham que é o momento de procurar essa grande mídia, de que este é o momento do rap se tornar mais um produto do que uma causa. Numa entrevista recente à Folha de S. Paulo, o Mano Brown (6), que é o líder dos Racionais, declarou que não tinha como criticar a escolha, mas que para os Racionais esse caminho não era possível.
Eu acredito que o poder de transformação do rap se mantém enquanto ele for uma música de contestação, porque a origem dele é a crítica social, é a contestação das mazelas sociais, das dificuldades. Para mim, a partir do momento em que ele começa a ser a “musiquinha do ‘paz e amor’”, deixa de ser o rap e passa a ser alguma outra coisa, ou seja, ele perde sua característica fundamental. Para o jovem, o rap funciona como um conscientizador, porque, por exemplo, aqui em São Paulo, nós temos um grande problema, conhecido como “progressão continuada”. Nossa juventude está com uma formação escolar cada vez mais deficitária, lê pouco, tem dificuldade de entender o que lê. Por sua vez, a música tem o poder de alcançar esse jovem que lê pouco e tem dificuldade de compreender. Através da música, esse jovem tem a oportunidade de se conscientizar e mudar a sua atitude.
IHU On-Line – Este mesmo hip-hop que transforma pobres em milionários nos EUA transforma rapper em guerrilheiro, em ativista, artista marginal no Brasil. Por que há essa distinção tão grande?
Anderson Grecco – Eu acho que nos Estados Unidos o hip-hop e o rap fugiram muito da realidade da origem. O rap iniciou lá como um movimento de crítica social, mas depois enveredou por um caminho que eles chamam de gangsta rap (7), que é um tipo de rap que tem ligação com a bandidagem. É um universo em que um rap é feito para criticar outro rap, e as músicas viram uma espécie de batalha. O grande nome hoje é o Eminem (8), com músicas que ridicularizam o Michael Jackson (9) e outras pessoas de uma forma agressiva. E, ao mesmo tempo, nos EUA, esse hip-hop se tornou produto de mercado. Tornou-se algo que é muito vendido, consumido. Inclusive, talvez seja o gênero musical preferido nos EUA, hoje. Ele tem esse poder de enriquecer.
No Brasil, o principal grupo, que é o Racionais MC’s, se mantém nessa lógica da crítica social, à margem do rap como produto e se mantém mais como uma causa. Isso transforma o rapper num narrador, num cronista da sociedade, e por outro lado, não o leva a enriquecer. O rap e o hip-hop até têm algum poderio financeiro hoje, melhoraram bastante a situação econômica, mas não enriqueceram. Nas entrevistas que você lê, na própria conversa que tive com o Edy Rock, pode-se perceber que eles querem ganhar dinheiro, mas sem a busca incessante pelo enriquecimento.
IHU On-Line – Qual é a importância de se estudar o fenômeno do rap e do hip-hop para a cultura musical brasileira?
Anderson Grecco – Eu acho que a música brasileira tem esse elemento de contestação de crítica social há muito tempo. Quando você ouve "Saudosa maloca" (10), percebe que é uma crítica social. O rap é a versão atual do movimento contra a ditadura dentro dessa sociedade contemporânea. A música de crítica social, de contestação, é o rap. Então, ele deve ser estudado dessa forma, como crítica social e até mesmo como um documento histórico, reforçando a relação entre história e música. A música pode ser um documento histórico, pois fortalece essa veia na nossa cultura, que sempre teve expoentes que fizeram música de contestação social.
Notas:
(1) MV Bill é um cantor de rap brasileiro nascido em Cidade de Deus, Rio de Janeiro. Em 2001, ganhou o prêmio de Melhor videoclipe de rap por "Soldado do Morro" no Video Music Brasil. No ano seguinte, lançou o álbum Declaração de guerra. Ele é o autor, junto com Celso Athayde, do famoso livro e documentário Falcão - Meninos do tráfico. Ele conta a história de dezessete meninos envolvidos com o tráfico de drogas e suas vidas em diversas favelas; dos dezessete, apenas um sobreviveu. Como escritor, é autor também do livro Cabeça de porco, co-escrito por Celso Athayde e Luiz Eduardo Soares e lançado em 2005. MV Bill também foi um dos fundadores da Central Única de Favelas, a CUFA, que é responsável por várias atividades sócio-educativas realizadas em várias favelas, entre elas a Liga Brasileira de Basquete de Rua.
(2) Marcelo D2, nome artístico de Marcelo Maldonado Gomes Peixoto, é um rapper brasileiro, ex-vocalista da banda Planet Hemp, que hoje segue em carreira solo. Marcelo D2 misturou o samba tradicional com o rap, ajudando a divulgar a música estadunidense no Brasil, consolidando, assim sua relação, com a multinacional Sony. Também participou de Assim caminha a humanidade, de Thaíde e DJ Hum, e da trilha sonora de A taça do mundo é nossa, dos humoristas do Casseta & Planeta. Venceu o Prêmio Multishow 2007 na categoria Melhor clipe, com "Dor de verdade".
(3) Edy Rock, nome artístico de Edivaldo Pereira Alves, é um rapper do grupo Racionais MC`s.
(4) Milton Salles criou a MH2O "Movimento Hip Hop Organizado" e é produtor dos Racionais MC’s. É responsável pela Companhia Paulista de hip-hop.
(5) Thaíde é um rapper e ator brasileiro. Participa do seriado Antonia, da Rede Globo.
(6) Mano Brown, nome artístico de Pedro Paulo Soares Pereira, é um rapper brasileiro, vocalista do grupo Racionais MC`s. É o compositor das letras que abordam a vida na periferia das grandes cidades do Brasil.
(7) Gangsta Rap é uma das variâncias do rap, mas com letras muito mais violentas. Geralmente, os autores têm problemas com a lei, alguns inclusive tem ou já tiveram envolvimento com gangues. MC`s como Ice-T, Snoop Dogg, Tupac Shakur, entre outros, que já passaram pelos tribunais por atividades relacionadas com o tráfico, assassinatos etc., fazem parte desse estilo musical.
(8) Marshall Bruce Mathers III, mais conhecido como Eminem, é um rapper norte-americano de grande sucesso. Alguns criticam suas canções por serem supostamente homofóbicas, misógenas e violentas. Eminem, além de rapper, foi o ator principal no filme 8 Mile – Ruas das ilusões, que é uma semibiografia sua.
(9) Michael Joseph Jackson começou a carreira musical aos cinco anos de idade como líder vocal do grupo Jackson 5. Lançou-se em carreira solo no início dos anos 1970. Em idade adulta, gravou o álbum mais vendido da história, Thriller; acumulou recordes e prêmios; e colocou um total de 20 canções no topo das paradas de sucesso. Nos anos 1980, foi um criador de estilo, especialmente na dança, música e videoclipe. Nos anos 1990, se envolveu em escândalos de pedofilia e abuso sexual. Por isso, interrompeu a carreira em duas ocasiões: em 1993 e em 2003, quando foi indiciado por sete crimes, julgado e inocentado perante júri popular.
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Racionais MC"s e a crítica social através do rap e do hip-hop. Entrevista especial com Anderson Grecco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU