"Um projeto socialista precisa ter uma resposta para a crise climática, a qual serve, ademais, para pôr em xeque o funcionamento do capitalismo", diz o sociólogo
As experiências políticas dos últimos anos, frustradas por não conseguirem garantir a emancipação humana diante das injustiças causadas pela própria espécie, continuam a nos desafiar na busca de modelos políticos que despertem a nossa imaginação para algo novo.
Olhando para o passado recente, explica José Maurício Domingues, a "derrota do chamado 'socialismo real' e mudanças fundamentais na estrutura social complicaram muito a questão do socialismo" que, em diferentes países, se transformou em um "coletivismo autoritário". A social-democracia, por sua vez, "não passou de reformas muito limitadas", enquanto o anarquismo, argumenta, "dificilmente tem soluções para sociedades altamente complexas". E acrescenta: "A profecia – baseada na identificação de processos sociais de simplificação da estrutura de classes aparentemente em curso no século XIX – de um proletariado que fosse majoritário e se homogeneizasse, ao menos politicamente, não se cumpriu, nem se cumprirá na forma imaginada por Marx e Engels. Os processos de individuação, não necessariamente numa direção egoísta e mesquinha, avançaram muito".
Autor do livro "Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades" (2021), que integra a coleção Esquerda em movimento, da editora Mauad X, Domingues destaca que, apesar dos fracassos políticos, "a ideia de socialismo no sentido de comunismo como apropriação comum, e direitos, como enfatizou a social-democracia desde a República de Weimar em sua Constituição de 1919, bem como a preocupação com a monopolização do poder, desde cedo denunciada pelos anarquistas, são temas que devem estar no centro de um renovado pensamento socialista, que seja capaz de interpelar também as grandes questões de nosso tempo".
Um projeto para o futuro, defende na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, "não pode ser baseado sobretudo na propriedade estatal, mas sim em vários tipos de propriedade social, pois, como aprendemos com o coletivismo autoritário, propriedade estatal não necessariamente implica apropriação social, que é o que caracteriza um projeto socialista".
Segundo ele, também é preciso desoligarquizar a democracia, aumentar a participação política, alterar a jornada de trabalho e buscar a concretização dos direitos para buscar um horizonte comum de futuro. "Ao lado de nossas particularidades e para além de 'lugares de fala' excludentes e que se fazem a partir das experiências de cada um, não obstante o quão importante elas sejam, é crucial buscar o que é nosso horizonte comum de futuro. Aliás, é o que se lê em cada página de Fanon! Um novo universalismo, que possibilite o que quero chamar de solidariedade complexa, em uma sociedade complexa, atravessada por dominações e desigualdade, assim como por desejos múltiplos, é fundamental, voltada para o futuro. Não há mágica que prescreva o equilíbrio entre esses aspectos de forma absoluta e permanente". E assegura: "Aí é preciso recorrer a Lenin e buscar a análise concreta da situação concreta".
José Maurício Domingues (Foto: Reprodução)
José Maurício Domingues é graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUCRJ, mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, e doutor em Sociologia pela London School of Economics and Political Science, Universidade de Londres. Atualmente é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - IESP-UERJ. É autor de Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades (Rio de Janeiro: Mauad X, 2021) Esquerda: crise e futuro (2017) e O Brasil entre o presente e o futuro (2a. edição, 2015).
IHU - No livro "Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades", o senhor caracteriza o governo Bolsonaro como uma forma de oligarquia liberal autoritária que tem como projeto tornar o país mais oligárquico, menos democrático e mais militarizado e autocrático. Pode nos dar exemplos de como isso tem sido feito na prática?
José Maurício Domingues - As democracias liberais são na verdade o que se pode chamar de um regime misto, que inclui elementos democráticos – livre expressão, participação eleitoral, organização autônoma da sociedade – e oligárquicos – com a política em larga medida controlada pelos políticos profissionais e os aparelhos burocrático-partidários. Em princípio, o império da lei é vigente nesses regimes liberais, mas o Estado e mesmo aparelhos paraestatais têm muitos recursos coercitivos e repressivos a sua disposição. Houve, durante o século XX, no segundo pós-guerra, uma democratização da democracia liberal, com a participação das massas, ampliação do direito de voto (feminino também), direitos sociais amplos na Europa e uns poucos outros lugares. Desde fins dos anos 1970, tem havido, porém, uma desdemocratização da democracia liberal, que se fez mais oligárquica e autoritária. Exprimir opinião e votar acaba, em particular, tendo pouco efeito sobre o sistema político, uma vez que os políticos e o próprio Estado se vinculam menos à população em geral, mais preocupados que estão consigo mesmos e seu poder, com os ricos e com as forças do capitalismo global. Cada país tem nisso sua trajetória.
No centro do sistema global, aparece uma tendência à constituição do que chamo de oligarquia liberal avançada mais típica. Em outros lugares, como a Turquia e até há pouco inclusive a Rússia, elementos básicos da democracia liberal se mantêm, mas são muito restringidos, com o sistema político se tornando claramente mais autoritário. Se na Turquia isso parece estar em crise, a Rússia evoluiu mais explicitamente hoje para um sistema autocrático. Trump queria fazer algo parecido nos Estados Unidos e os republicanos lá seguem nessa direção. No Brasil, cujo sistema político se democratizou sem deixar de ser altamente oligárquico, mantendo um núcleo tradicional, que inclui mas não se restringe ao “centrão”, temos, por outro lado, um sistema político e um aparato de Estado com fortíssimos elementos autoritários, que o atual governo vem tentando explorar em seu favor, bloqueado até agora em boa medida pelas forças democráticas, pela esquerda e por elementos importantes da oligarquia política e seus vetores no judiciário comprometidos com a democracia liberal.
Quero enfatizar que, quando falo de oligarquia, não me refiro à influência do poder econômico e das classes burguesas no sistema político. Obviamente ela existe e é forte, mas não devemos esquecer que a dimensão política tem ampla autonomia no mundo moderno. Por isso mesmo, vemos rapidamente os partidos políticos de esquerda se oligarquizarem e se transformarem em elemento, com frequência subordinado, das oligarquias das democracias liberais, sem que isso queira dizer que não representem em parte (junto com seu próprio interesse no poder) classes e grupos sociais distintos daqueles representados, em parte, por partidos de outras fatias do espectro político. De todo modo, o governo de Bolsonaro gostaria de monopolizar ou ao menos se tornar dominante no sistema político, juntando os setores oligárquicos mais fisiológicos com seu núcleo de direita ou mesmo extrema-direita. Começou com um projeto mais puro, mas logo descobriu que a vida ficava muito difícil sem esses elementos oligárquicos, que são uma verdadeira praga do sistema político brasileiro. Mas pode voltar, ao menos em parte, a seu projeto original caso Bolsonaro ganhe a eleição de 2022, o que de modo algum está descartado.
Capa do livro Uma esquerda para o século XXI. Horizontes, estratégias e identidades, de José Maurício Domingues (Foto: Reprodução)
IHU - A que atribui não só o retorno de grupos políticos autoritários à política nacional, mas também a adesão de parte da população a esse segmento?
José Maurício Domingues - O Brasil viveu um processo de democratização acentuado entre fins da década de 1970 e meados dos anos 2000. Mas os problemas do sistema político e o comportamento das forças políticas – que atuaram como facções em guerra sobretudo durante o governo de Dilma Rousseff – levaram a uma crise política muito profunda. A esquerda, sobretudo o PT, se desmoralizou com os escândalos de corrupção e o estelionato eleitoral de Rousseff após sua reeleição; o PSDB se tornou um partido cada vez mais neoliberal e sedento de voltar ao poder, juntamente com o DEM, enquanto que os políticos e partidos mais fisiológicos queriam se proteger dos avanços da Lava Jato e de seu bonapartismo judiciário, que se aproveitava da crise e das divisões no sistema político e ao mesmo tempo aprofundava a desestruturação desse sistema, sem ser de modo algum o principal agente desestruturador.
Na verdade, a crise começa em 2013 com a insatisfação de massa, sobretudo dos jovens, contra o sistema político e sua oligarquização, o que não quer dizer que esse conceito estivesse presente enquanto tal. Fato é que os plebeus, definidos em termos políticos, da sociedade brasileira demonstraram sua insatisfação com a falta de representação, a corrupção, o autocentramento dos políticos, majoritariamente com a falta de direitos, a exemplo do que ocorreu no Chile a partir de 2019, mas de maneira mais caótica, frente à irritação dos aparelhos de esquerda - se bem que houve presença da direita também nos protestos. Rousseff acabou por não conseguir manejar a situação, que se complicou com a crise econômica, o mal-estar das classes médias e, enfim, a decepção dos empresários, que então optaram por aproveitar a crise e apostar num neoliberalismo radicalizado e uma subalternização ainda maior em termos globais. A crise foi fundamentalmente política, somente no fim do processo o empresariado decidiu realmente apoiar o impeachment.
Não há como encontrar na economia, de forma direta, os determinantes da crise política neste caso, muito menos sugerir interesses imperialistas, guerra híbrida e coisas desse tipo, que servem mais como tentativa das lideranças de esquerda de se esconder dos erros que cometeram. Nem adianta evocar escravidão e latifúndio para cobrir os equívocos políticos recentes cometidos.
Bolsonaro, sim, se aproveitou da crise do sistema político e, correndo por fora, embora dele fizesse parte há tempos, recolheu vitoriosamente a insatisfação e a raiva da população com os políticos. Sua visão pessoal de mundo se vincula ao fascismo da ditadura militar, mas o projeto dos generais que o apoiaram tinha mais a ver com a perspectiva de autorreforma da ditadura nos anos 1980, frustrado com a derrota no Colégio Eleitoral em 1985. De resto, a direita sempre esteve por aí, mas a crise do sistema político - e da esquerda, especialmente - abriu espaço para que pudessem retomar seus projetos, que, aliás, vinham sendo preparados também por uma bem articulada campanha de pseudointelectuais pseudoliberais. Acabaram todos abraçados à oligarquia fisiológica. Todavia, a crise política não acabou. Pandemia, crise econômica e extrema-direita concentram as preocupações da população, mas os problemas colocados em 2013 não desapareceram.
IHU - Uma das questões centrais do seu livro é sobre o que é preciso para recolocar o socialismo na ordem do dia. Como tem respondido a essa questão?
José Maurício Domingues - A derrota do chamado “socialismo real” e mudanças fundamentais na estrutura social complicaram muito a questão do socialismo. O coletivismo autoritário, que é como, creio, deve-se de fato chamar esse “socialismo”, da União Soviética à China e Cuba – com agora somente seu sistema político altamente autoritário vinculado a um tipo particular de capitalismo –, deixou um gosto amargo, como se se tratasse de tarefa impossível construir um socialismo que amplie a liberdade.
A social-democracia não passou de reformas muito limitadas. O anarquismo dificilmente tem soluções para sociedades altamente complexas. Por outro lado, a profecia – baseada na identificação de processos sociais de simplificação da estrutura de classes aparentemente em curso no século XIX – de um proletariado que fosse majoritário e se homogeneizasse, ao menos politicamente, não se cumpriu, nem se cumprirá na forma imaginada por Marx e Engels. Os processos de individuação, não necessariamente numa direção egoísta e mesquinha, avançaram muito. Como construir uma maioria social a favor do socialismo, calcada em trabalhadores assalariados e aqueles que nem conseguem mais trabalho (ao menos, adequado e fixo), incorporando também setores médios e até mesmo pequenos empresários, é um projeto cuja via de concretização não está clara, sem que um tal projeto deixe de ser necessário de todo modo do ponto de vista político e da imaginação de um novo tipo de sociedade, que abra o horizonte histórico e subtraia da direita a possibilidade de aparecer como quem contesta, falsamente, é claro, a ordem vigente. Esse projeto não pode ser baseado sobretudo na propriedade estatal, mas sim em vários tipos de propriedade social, pois, como aprendemos com o coletivismo autoritário, propriedade estatal não necessariamente implica apropriação social, que é o que caracteriza um projeto socialista. Isso tem que se conjugar com a desoligarquização da democracia, com um aumento da participação e mudanças na jornada de trabalho de modo a liberar os cidadãos e cidadãs para tarefas cívicas, em todas as esferas, inclusive a econômica, além de buscar concretizar direitos em todas elas, o que é uma demanda, em larga medida, da população. Esses direitos podem vir a incluir direitos “econômicos” e de apropriação coletiva.
IHU - O que significa reivindicar o socialismo nos dias de hoje?
José Maurício Domingues - O alfaiate de Ulm, que estrela a poesia de Brecht, poderia servir de epígrafe à minha resposta se não tivesse sido utilizado já com bastante frequência. Neste momento, seria falso dizer que há forças que de fato impulsionam um projeto socialista radical, no sentido de ir à raiz da iniquidade e vazio do presente e superá-los. Mas discutir o socialismo, vinculá-lo às lutas concretas da população e a soluções intermediárias e a reformas a partir da auto-organização das pessoas e de políticas públicas que aumentem o escopo do público, da cooperação e da apropriação social, a começar pela desmercantilização e desfinanceirização – forma extrema de mercantilização – das relações sociais é um caminho imediato, o que não exclui que certas empresas e empreendimentos não devam ser propriedade estatal, controlada de forma social – ao contrário do que acontecia ontem e acontece com a Petrobras hoje, por exemplo. E, sempre, aprofundar a democracia e a participação, sem a qual nenhum socialismo é possível.
É preciso descartar muita coisa, mas a ideia de socialismo no sentido de comunismo como apropriação comum, e direitos, como enfatizou a social-democracia desde a República de Weimar em sua Constituição de 1919, bem como a preocupação com a monopolização do poder, desde cedo denunciada pelos anarquistas, são temas que devem estar no centro de um renovado pensamento socialista, que seja capaz de interpelar também as grandes questões de nosso tempo.
IHU - Percebe diferenças entre a defesa do socialismo e da justiça social?
José Maurício Domingues - Justiça social incluiu um amplo leque de possibilidades e se vincula a várias visões de mundo, seja o cristianismo, o liberalismo, o socialismo. Pode implicar igualdade ou equidade, que pode manter fortes desigualdades, dando um pouco mais aos que pouco têm. Justiça social comumente quer dizer arranjos distributivos em que os mais pobres adquirem direitos ou recursos materiais. Socialismo é ao mesmo tempo mais amplo e mais específico que justiça social. É certamente uma forma de concretizar a justiça social, com igualdade e liberdade em todos os planos, radicalizando o que o próprio liberalismo em algum momento definiu para si como liberdade igualitária, o que ele próprio não pode de fato concretizar, seja por conta da economia capitalista ou em função do caráter hierarquizado de seus sistemas políticos, além de outras subordinações e opressões.
O socialismo implica a apropriação coletiva dos vários elementos de organização da vida social, com destaque para o tema da propriedade privada na economia, mas de modo algum só nesse sentido e dimensão, a começar pelo fato de que a política precisa ser coletivamente apropriada e exercida. A questão, por outro lado, é que o “Estado” não desaparecerá, precisaremos de aparelhos burocráticos, cuja estrutura pode, entretanto, se transformar para gerir a vida social, que não pode nem deve ser sempre pessoalizada ou transparente em sociedades de alta complexidade e hoje globalizadas. Ou seja, trata-se de pensar o socialismo numa chave que supere o capitalismo e as formas do Estado moderno, bem como os sistemas políticos semioligárquicos da modernidade, a partir de processos e tendências de desenvolvimento no nosso mundo contemporâneo, inventando soluções inéditas, que não podem ser também aquelas do “socialismo real”. Hoje, no centro dessas tendências se encontra a demanda por autonomia e mais democracia. A esquerda deve apostar nela, para além dos aparelhos e dos supostos grandes líderes - o que, de resto, era a perspectiva de todos os fundadores das diversas correntes socialistas e o que defendeu, de forma cristalina, Rosa Luxemburgo.
IHU - Alguns teóricos veem o novo regime climático como uma oportunidade para recuperar ou implementar o socialismo. Alguns se referem ao ecossocialismo. O que lhe parece? Que respostas o socialismo pode oferecer para o enfrentamento do novo regime climático?
José Maurício Domingues - Um projeto socialista precisa ter uma resposta para a crise climática, a qual serve, ademais, para pôr em xeque o funcionamento do capitalismo. Nesse sentido, trata-se de disputar, com o ecossocialismo, a solução da crise, projetando uma outra, mais calma, menos destrutiva e reparadora atitude frente à “natureza”. Mas enquanto tal, a solução da crise climática não envolve em si o socialismo, nem este significa o mesmo que uma alteração de nossas relações com o mundo material. Além disso, os capitalistas, isto é, as grandes corporações internacionais, os estados-nação e as organizações internacionais têm respostas possíveis para a crise climática, ainda que implementadas a esta altura de forma parcial.
Aliás, o que é a solução da crise climática? Pode haver várias, incluindo a geoengenharia e outras maneiras de adaptação, com as quais se pode fazer muito dinheiro. De todo modo, é preciso evitar a armadilha do ascetismo nesse sentido: o chamado desenvolvimento das forças produtivas, a expansão do mercado mundial, a possibilidade de viajar e estar em contato com diferentes aspectos da experiência humana e outras materialidades e espiritualidades do mundo é positiva. É difícil também pensar como se implementaria um decrescimento ou redução do consumo no “norte” global, sem falar da necessidade de estender o desfrute desses avanços por partes do mundo onde ele não ocorre ou é limitado. Essa é uma promessa da modernidade, em si altamente positiva, que a esquerda deve manter. É claro, não se trata de comprar 50 Iphones por ano, ter um carro individual e veloz que brutalmente polui, andar de aviões que queimam querosene sem parar (embora todos, não apenas os intelectuais e executivos, queiram, justamente, viajar e andar de avião). Saúde, educação, cultura, turismo “sustentável” são opções que fazem muito mais sentido em uma civilização socialista em que a ideia de consumo deixe para trás os aspectos propriamente consumistas, superficiais e descartáveis, além de agressivos ao meio-ambiente, com um padrão global de desenvolvimento inclusivo que se pode chamar de “antropogenético”, como diz Robert Boyer, assim como pós-antropogenético.
IHU - O socialismo ainda pode ser visto como uma via para garantir a emancipação humana? Sim, não e por quê? As experiências da China, de Cuba e da Coreia do Norte dificultam o desejo social pelo socialismo?
José Maurício Domingues - Com certeza, o socialismo é hoje um horizonte muito nublado, na melhor das hipóteses, mas é o único em que a liberdade igualitária e o livre desenvolvimento de cada um podem corresponder ao desenvolvimento de todos. Não pode ser pensado sem a eliminação do racismo, do sexismo e de outras formas de subordinação e opressão, mas tem sua especificidade, que é ao mesmo tempo genérica, incluindo a todos.
As experiências de Cuba, China e Coreia a esta altura em nada contribuem para o horizonte do socialismo. Não creio que tenham constituído, como já indiquei, sociedades propriamente socialistas (discuto isso em detalhe em outro livro, saindo agora em inglês, logo em português também), mas representaram uma enorme esperança, como foi o caso também da revolução soviética de 1917 em seu momento. Cuba, em particular, foi uma luz para a América Latina ao derrotar os Estados Unidos (a despeito dos enormes equívocos voluntaristas que também gerou na juventude ansiosa por mudanças). Mas o modelo dessas sociedades todas, com ou sem o terror, mais autocráticas ou mais suaves, foi o que se consolidou na União Soviética nos anos 1930. Isso incluía a propriedade estatal dos meios de produção e de todos os aparelhos fundamentais da vida social, ditadura do partido, o centralismo democrático para todo o partido e toda a sociedade, o domínio das camadas superiores oligárquicas da burocracia política, opressão e falta de democracia e pluralismo; com, por outro lado, em geral (embora nem sempre), um decente ou até amplo Estado de bem-estar social e uma concepção, se bem que falsificada na prática em geral, de solidariedade social ampla, com grande força do nacionalismo.
Essa experiência tem que ser revista e criticada, os países que vivem sob esses regimes precisam se democratizar, autonomamente. Apropriação social e democracia têm de ser os pilares sobre os quais um novo horizonte do socialismo se construa, vinculado às lutas das grandes massas por direitos e justiça, bem como aos desejos de autonomia individual, que em si não é negativa, ao contrário, desde que os vínculos sociais e políticos dos indivíduos a acompanhe.
Na América Latina, onde a esquerda mostra uma face com frequência bastante anacrônica, a questão democrática e o individualismo muitas vezes não são bem compreendidos, com os verticalismos dos partidos e o autoelogio de suas oligarquias, em particular de seus e suas supostamente grandes líderes, tão falíveis e desigualitários. Isso não quer dizer que na América Latina, assim como em outros lugares, as esquerdas, em sua variedade, não tenham estado na ponta de lança da luta pela justiça e representado as classes populares, mas sim que o aparelhismo, o poder excessivo das cúpulas e o frequente autoritarismo no exercício do poder geram problemas que precisam ser superados.
IHU - Ao comentar a perspectiva de Negri sobre a "multidão", em seu livro, o senhor pontua a dificuldade de postular uma unidade do proletariado ou da "multidão" em sociedades plurais como essas em que vivemos. Como garantir a unidade e a universalidade na particularidade? Ainda nesse sentido, uma crítica feita a grupos de esquerda hoje diz respeito à defesa das pautas identitárias ou de grupos particulares em detrimento de outras pautas sociais universais relativas ao enfrentamento das desigualdades e da pobreza, por exemplo. Como o senhor reage a essa crítica?
José Maurício Domingues - Essa é uma questão que se coloca desde os anos 1970. As alianças “arco-íris” deveriam resolver o problema, envolvendo movimentos da classe operária, feministas, pela paz, ambientalistas, antirracistas, dos gays etc. As coisas em geral não foram muito longe nessa direção, embora se possa argumentar que o Chile, mais uma vez, acabou de nos dar um belo exemplo da produtividade dessas alianças, tecidas lá de resto bastante informalmente e democraticamente.
Negri há muito tempo se deu conta de que o proletariado de Marx não se materializaria. Achou a saída clássica da multidão, via Espinosa, mas ela é falsa: trata-se de um a priori filosófico (ao qual tenta dar base sociológica em trabalhos mais antigos) em que a unificação depende de uma concepção da produção de valor que deixa para trás o valor-trabalho tradicional do marxismo e a unificação se realiza automaticamente; ou seja, se todos produzimos valor e já estamos organizados em função disso, bastaria jogar fora a casca parasitária dos expropriadores (o “império”, dizia, em 2000). Mas não é só a heterogeneidade na população que impede essa unificação apriorística, tampouco se pode falar em parasitismo: é ainda o capitalismo que organiza, de formas às vezes mais sutis, a cooperação econômica, ao passo que o Estado e os sistemas políticos, inclusive no plano global, organizam a cooperação de forma ainda mais ampla entre os seres humanos sem, obviamente, abrir mão dos sistemas de dominação. Ele mesmo se deu conta de que não há uma passagem direta da multidão ao poder, e fala agora, portanto, dos “comuns” como fabricação conjunta. Esta é necessária de modo que mediações e poderes parciais sejam construídos no âmbito de todas as relações sociais, com grupos entre si heterogêneos. Nisso, o particularismo das identidades não deve ser visto como um obstáculo, embora se se essencializa (mesmo o “essencialismo estratégico” de Spivak pode ser altamente problemático) e se torna exclusivista (e egoísta), converte-se evidentemente em barreira a alianças mais amplas.
Ao lado de nossas particularidades e para além de “lugares de fala” excludentes e que se fazem a partir das experiências de cada um, não obstante o quão importante elas sejam, é crucial buscar o que é nosso horizonte comum de futuro. Aliás, é o que se lê em cada página de Fanon! Um novo universalismo, que possibilite o que quero chamar de solidariedade complexa, em uma sociedade complexa, atravessada por dominações e desigualdade, assim como por desejos múltiplos, é fundamental, voltada para o futuro. Não há mágica que prescreva o equilíbrio entre esses aspectos de forma absoluta e permanente. Aí é preciso recorrer a Lenin e buscar a análise concreta da situação concreta.
IHU - Que problemas evidencia a "moral consequencialista" que, conforme expõe no livro, permeou e ainda permeia a esquerda, sobretudo na América Latina? Que outra concepção moral deveria orientar a esquerda?
José Maurício Domingues - Esta é uma das questões filosoficamente mais complexas do livro. Os meios justificam os fins? Trotsky respondeu categoricamente que sim, o futuro redimiria os revolucionários, e Stálin e o stalinismo consagraram essa resposta. Mas isso levou a enormes desastres, em particular quando a democracia foi restringida e a crítica não pôde ser exercida. Gulags e outros fenômenos terríveis estiveram associados a essa perspectiva, o que inclui a própria restrição da democracia em nome da defesa da revolução. Em situações menos dramáticas, o esforço para chegar ao poder e lá permanecer – como Morales na Bolívia, desrespeitando, com a decisão fajuta de uma corte constitucional controlada por seu partido, a constituição que ele próprio promulgou para tentar se reeleger, fraudes eleitorais eventuais, corrupção para produzir dinheiro de campanha – é como concretamente essa visão da relação entre meios e fins se reproduz. Isso supondo, evidentemente, que o objetivo não é simplesmente manter-se no poder e desfrutá-lo por si, o que muitas vezes na verdade subjaz a esses comportamentos.
O problema é que o consequencialismo é inevitável em todas as esferas da vida, pois seguir máximas abstratas muitas vezes é contraprodutivo ou impossível. Ao mesmo tempo, tem de ser restringido ao máximo, em particular se queremos mais democracia e socialismo, assim como evitar desastres posteriores desmoralizantes. É como se diz: se a malandragem é muito grande, acaba enrolado o malandro. Os gregos falavam de húbris e Nêmesis, respectivamente o exagero e descontrole causados pela arrogância e a deusa que vinga os deuses ofendidos por essa arrogância humana. Vimos algumas vezes nos últimos anos como isso funciona na própria América Latina. A justa medida, como também manter os olhos na democracia e, além disso, na lei, é o que se deve buscar, sempre tendo em mente que qualquer passo tem de poder ser justificado perante a população (e, por vezes, o judiciário). A história não redimirá ninguém, ao contrário do que - mais uma vez ele - supunha Brecht em seu famoso poema, embora, se a medida for justa, os que vem depois possam talvez compreender certos passos que, talvez inevitáveis, têm, eles também, custos morais.
IHU - Muitas críticas foram feitas ao PT e ao PSDB nos últimos anos. Entretanto, os dois partidos estão se articulando tendo em vista a eleição deste ano. O que isso significa e o que pode representar para o país em caso de eleição da chapa? Quais os desafios políticos do Brasil neste ano de eleição presidencial?
José Maurício Domingues - A situação está tão ruim que até coisas que ontem pareciam impossíveis se ensaiam hoje. Uma reeleição de Bolsonaro, que infelizmente ainda é possível, seria um desastre ainda maior que sua eleição em 2018. Se uma aliança como esta se concretizará, está ainda para ser visto. Na verdade, na prática, tanto o PT quanto o PSDB nasceram como projetos com cara de social-democracia, embora o PSDB tenha rapidamente abraçado o neoliberalismo da terceira via de Blair e Schröder, mais à la Clinton, na verdade, enquanto o PT se queria popular e mantinha um vago discurso socialista. Acabaram ambos, na prática, no social-liberalismo da Comunidade Solidária, do Bolsa Família e do SUS e da educação subfinanciados. Não tenho dúvida de que uma frente democrática é fundamental para derrotar Bolsonaro, no caso inclusive de Lula da Silva e Geraldo Alckmin como projeto eleitoral. Pode doer na base do PT, a qual, porém, não discute política, com a militância seguindo qualquer coisa que diga Lula da Silva, o qual não se cansa, por outro lado, de errar – mas não neste caso, acredito, sem que ele consiga, no entanto, justificar politicamente, para além do aspecto eleitoral, o que está fazendo perante a militância, afora ao afirmar, como sempre, sua genialidade. Além disso, piorando a personalização desastrosa da política entre nós, não é programa o que se discute.
Há ainda a candidatura de Ciro Gomes, que enfrenta grandes dificuldades, mas é legítima, além de uma possível candidatura do PSOL, cuja direção finge acreditar que o PT quer uma frente de esquerda – jogando para a plateia, isto é, sua militância –, sem entender a importância de derrotar Bolsonaro com uma grande frente. No fim das contas, nos somaremos todos num eventual segundo turno, em que, espero, algum desses candidatos estará presente. Mas daí a participar do governo ou não é outro tema. A esquerda, sobretudo uma esquerda que se quer socialista no longo prazo, tem que ter clara sua visão estratégica, mas saber ser flexível taticamente. Mais ainda: alianças com o centro devem ser feitas muitas vezes, inclusive eleitoralmente, sem que cargos sejam reivindicados no executivo - em particular, cabeças de chapa.
De que serve ganhar uma eleição se descaracterizando como esquerda, quando seria mais fácil avançar em sua agenda apoiando de fora, ao menos parcialmente, tais governos, sem com eles se comprometer por completo, sendo ativos politicamente e ao mesmo tempo se protegendo? De todo modo, a prioridade agora é derrotar Bolsonaro. Que mantenhamos as pontes abertas para uma aliança de todos os democratas mais adiante. No longo prazo, precisamos construir um verdadeiro bloco, sem exclusivismos e hegemonista, democrático e popular, que abra um caminho de reformas radicais, para além da atual ideia, rasteira, de federações partidárias.
IHU - Seu novo livro é parte de uma coleção – Esquerda em movimento. Qual o objetivo dessa coleção?
José Maurício Domingues - O entendimento dos que fundaram a coleção, ou seja, os membros do conselho editorial, é de que a esquerda no Brasil, e na América Latina de modo mais geral, enfrenta impasses que resultam de se manter fiel a ideias e perspectivas que já não cabem muito – ou nada – em nosso tempo, e são por vezes bastante anacrônicas, até; ou, na verdade, sempre foram mesmo problemáticas. Daí a ideia de uma coleção voltada para um movimento dentro da esquerda, socialista, democrático, plural, ambiental. Na verdade, o próprio conselho editorial e o conselho consultivo são, em si, plurais, e é assim que queremos manter a coleção. Em particular, nos parece crucial que a intelectualidade do Rio de Janeiro tenha na coleção uma possibilidade de se expressar publicamente.