28 Outubro 2020
Falecido em 2012, o último livro que o historiador britânico Eric Hobsbawm publicou em vida (Como mudar o mundo, 2011) foi um conjunto de textos previamente publicados e cujo parágrafo final invocava um velho mestre: “Nem o liberalismo econômico, nem o liberalismo político, juntos ou em separado, podem dar solução aos problemas do século XXI. Mais uma vez, chegou o momento de levarmos a sério Marx”.
Quase uma década mais tarde, seu colega italiano Francesco Boldizzoni (Pavia, 1979) publicou um livro que certamente leva a sério Karl Marx, mas também os outros profetas do fim de uma ordem econômica e social que resistiu a passagem dos séculos: o capitalismo. Isso sim, as palavras finais de Foretelling the End of Capitalism. Intellectual Misadventures since Karl Marx, publicado em maio passado por Harvard University Press, possuem outro teor:
“Entre as aberrações do século XX, a social-democracia foi o único sistema que reconheceu as necessidades dos seres humanos, libertou-os de depender da benevolência dos outros e garantiu a dignidade. Não devemos nos resignar com a sua crise, mas lutar pela sua renovação. O caminho é estreito, o resulto, incerto. Mas, temos alternativas?”.
Esta história escrupulosa de previsões e “desventuras intelectuais”, desde o século XIX, também é uma história do capitalismo, no duro, ainda que suas palavras finais sugiram algo a mais. Seu autor, formado primeiro como economista e mais tarde como historiador, disse não ter claro se aqui está incorporado um manifesto. Isso sim, acrescenta, “certamente, tem uma mensagem política”, o que não se deveria estranhar em alguém que hoje ensina Ciência Política, na Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, e que se reconhece um “homem de esquerda”. Ainda que nos termos de Hobsbawm.
O volume “é um convite a abandonar tanto as fantasias utópicas daqueles que sonham em derrotar o sistema só com a força de vontade, como o oportunismo daqueles que gostariam que nos adaptássemos ao sistema”, expressa Boldizzoni, que considera ser necessário “voltar a praticar a verdadeira social-democracia”. Esta última, em sua avaliação, é “o experimento de justiça social mais radical já provado no Ocidente”, e “não tem nada a ver com as referências vazias à ‘igualdade de oportunidades’ que os partidos de esquerda fazem hoje”.
A entrevista é de Pablo Marín, publicada por La Tercera, 27-10-2020. A tradução é do Cepat.
Almeja um modelo como o que foi impulsionado na crise dos anos 1930? Não é um anacronismo propô-lo?
Nos anos 1930, aconteceram muitas coisas: havia o New Deal e também o fascismo. Mas a história nunca se repete. Dito isto, há dinâmicas estruturais que tendem a se repetir. Há um limite que o capitalismo não pode superar sem produzir uma forte desestabilização social. Quando isto acontece, os mecanismos de autodefesa se ativam na sociedade. Agora, o caminho da social-democracia começou muito antes dos anos 1930 e só alcançou a maturidade nos anos 1950 e 1960. Naturalmente, não poderá voltar da mesma forma, mas, como interpretação pragmática do socialismo, a mensagem social-democrata conserva sua atualidade. Enquanto existir o capitalismo, existirá a exigência de limitar seu poder.
Não vê um pouco “desgastado” o termo “social-democracia” em nosso tempo? O que quer dizer com “uma verdadeira social-democracia”?
Sou o primeiro a se queixar de quanto se abusa hoje do termo, no qual a esquerda tem uma grande responsabilidade. Por social-democracia entendo uma forma de controle público da economia que persegue a equidade social, sem suprimir a iniciativa privada. A intervenção estatal deve garantir a cobertura universal de saúde, a educação gratuita, a segurança de ter uma casa e um trabalho, aposentadorias adequadas, uma boa proteção nas etapas mais delicadas da vida... O sistema se baseia em uma taxação altamente progressiva da renda e do patrimônio, assim como em limitações à circulação de capitais. A propriedade empresarial não tem razão para ser pública, mas o Estado deve manter o controle dos setores estratégicos.
O próprio nome do livro, assim como sua capa, tem um traço de ironia milenarista...
O título e a capa foram uma escolha da editora estadunidense e não tive muita influência. Nas traduções para outros idiomas, incluído o espanhol, estes detalhes provavelmente mudarão. Mas sim, no fundo, minha ironia é benevolente e dissimula uma crítica construtiva. Muitas vezes, o fracasso das previsões sobre o futuro do capitalismo se baseia em erros de análise. Antes de pensar no que acontecerá, é bom ter ideias claras acerca do que é o capitalismo, que forças o geraram e do que depende a sua sobrevivência.
Como se deu a explicação de seu funcionamento e do fato de que já tenha séculos?
O capitalismo é uma construção social e uma construção histórica. Como todas as coisas que tiveram um início, também terá um final. Já viveu muitas mudanças e, durante os próximos séculos, continuará mudando até se tornar algo distinto. E o sistema que virá depois continuará exibindo algumas das características do capitalismo, assim como o capitalismo manteve a estrutura hierárquica de poder que caracterizou o feudalismo.
O elemento novo que acompanhou seu nascimento é o individualismo. Hoje, as pessoas se sentem mais motivadas por suas preferências, necessidades e direitos do que pelas regras e deveres que derivam da pertença a uma comunidade. Possuem relações mediadas por contratos em vez de reciprocidade. E os valores individualistas que se formaram nos últimos três séculos não desaparecerão rapidamente, porque estão estreitamente vinculados à modernização ocidental. Em certo sentido, o individualismo era o preço a pagar para se libertar das formas opressivas de controle social.
Felizmente, nem todas as sociedades ocidentais são hierárquicas e individualistas em igual medida, o que explica a existência de variedades de capitalismo mais ou menos suportáveis. Além disso, é importante destacar que o capitalismo não é o único sistema sobre a face da terra. Países como a China, o Irã, inclusive a Rússia, não são capitalistas. Isto não significa que sejam socialistas, nem que seus sistemas sejam mais desejáveis, mas é um fato que o mundo tem muito mais diversidade do que os ocidentais querem ver.
Enxerga a desigualdade crescente como um resultado necessário do neoliberalismo?
Sem dúvida. O neoliberalismo é uma fase do capitalismo iniciada nos anos 1980 (no Chile, como sabemos, isto aconteceu alguns anos antes). O neoliberalismo se sustenta na ideia de que não só a economia, mas a própria sociedade deve se organizar como uma economia de mercado.
E o neoliberalismo dos últimos 30 a 40 anos fez com que nossas sociedades sejam muito mais desiguais do que após a guerra, quando o capitalismo estava controlado pela intervenção estatal na economia.
Este último ponto se deve a que o mercado é um mecanismo cego: não há garantia de que distribuirá os recursos de maneira justa. Seus partidários elogiam sua suposta eficiência, mas o que fazemos com a eficiência, quando este sistema faz com que os ricos sejam mais ricos e os pobres mais pobres? Com isto, não quero dizer que o neoliberalismo ou o capitalismo sejam a origem da desigualdade na história da humanidade. Também existiu em outros sistemas econômicos, como na Europa do Antigo Regime e na Índia pré-colonial, mas isso não torna a situação atual mais desejável.
O que pensa da contribuição de Thomas Piketty a esse respeito?
Piketty teve o grande mérito de demonstrar o aumento das desigualdades com evidência estatística sólida. É uma lástima que em seu último livro [Capital e ideologia, 2019] tire conclusões um tanto ingênuas: pensa que o capitalismo é só uma ideologia que os poderosos utilizam para justificar seus privilégios. Sua hipótese é que, como qualquer outra ideologia, o capitalismo também pode ser derrotado, se o engano em que está baseado for revelado às massas.
Infelizmente, o capitalismo é um sistema social, e os sistemas sociais não terminam com a persuasão. A respeito de suas propostas políticas e se compreendi bem, Piketty gostaria de estabelecer uma espécie de parlamento mundial que administre um imposto global sobre a riqueza. É uma ideia utópica, para não dizer estranha.
As urgências ambientais parecem demandar uma grande mudança dos sistemas de produção, assim como das ações e das condutas cotidianas. O que a história da economia – e do capitalismo – diz a você sobre esta encruzilhada?
A esperança em um capitalismo com limites ambientais infranqueáveis se repete muitas vezes na história das ideias. Até mesmo na época vitoriana se pensava que a industrialização era insustentável. No entanto, em seus dois séculos de existência, o capitalismo demonstrou que não precisa de ar puro para prosperar, mas apenas de ar respirável. Isto quer dizer que não devemos esperar que o capitalismo se apague como uma vela porque esgotou os recursos do planeta ou danificou a saúde dos seres humanos. É um sistema de uma grande adaptabilidade.
Mas que caminho lhe resta para se adaptar ao tema ambiental, se para redistribuir precisa de crescimento, e esse crescimento supõe mais recursos naturais?
Sempre me pareceu um pouco misterioso o conceito de crescimento econômico: o PIB cresce pelas razões mais estranhas, não necessariamente relacionadas à exploração de recursos. Mas admitamos que esta relação exista. Não é possível que o capitalismo continue obtendo lucros, inclusive em uma transição ecológica? A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou recentemente um “Green Deal” para “fazer com que a economia da União Europeia seja sustentável”. Sabe quantos lobistas já se apresentaram em Bruxelas para entender como suas empresas se beneficiarão com este plano? Deixo para a sua imaginação.
É se equivocar muito dizer que seu interesse na economia, sendo uma pessoa de esquerda, tem a ver com o fato de que esse interesse não está muito presente na esquerda?
Pode ser, mas é preciso lembrar que nem sempre foi assim. A falta de interesse pela economia, demonstrada pela esquerda intelectual nas últimas décadas, é em muitos sentidos consequência da perda de fé no marxismo, após a queda do Muro de Berlim. É um fenômeno que se observa tanto na sociologia como na história, em filosofia e nas outras ciências humanas. Durante muito tempo, pensou-se que a economia era uma questão “técnica” e que podia se separar da política. Permita-me responder em tom de brincadeira: a economia é um assunto muito sério para deixar nas mãos dos economistas.
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“Como interpretação pragmática do socialismo, a mensagem social-democrata conserva sua atualidade”. Entrevista com Francesco Boldizzoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU