A aprovação de uma renda básica como direito social e constitucional no Brasil "vai depender da composição político-partidária em favor da manutenção dessa despesa mesmo sem adoção da regra do teto de gastos", afirma a cientista social
O atual momento de discussão no Congresso Nacional em torno da PEC 29/2020, aprovada por unanimidade no Senado e encaminhada à Câmara dos Deputados, indica que o Brasil está diante de um "momento histórico" de garantir o direito constitucional de uma renda básica para todos os cidadãos ou, ao menos, para aqueles que se encontram em situação de insuficiência de renda, depois de 30 anos de lutas.
É assim que Ivanisa Teitelroit Martins, especialista em programas de transferência de renda, reage à tramitação da proposta. "O plenário do Senado aprovou por unanimidade, em dois turnos, a proposta de emenda à Constituição que aprova um novo artigo, o artigo 6: a aprovação da constitucionalização da renda básica. A aprovação do Senado é histórica porque a Constituição passa a garantir o direito constitucional de uma renda mínima [caso seja aprovada], que é devida a todo o cidadão em situação de vulnerabilidade – ou melhor, de insuficiência de renda", afirma. E acrescenta: "Este momento é histórico por caber ao Legislativo a obrigatoriedade de regulamentação do programa de renda básica de cidadania".
Ivanisa Martins participou da Assembleia Nacional Constituinte, realizada em 1987 e 1988, que resultou na votação e aprovação da Constituição brasileira, como assessora do relator da Ordem Social. Desde então, acompanha a discussão sobre programas de transferência de renda e foi gestora de políticas públicas do antigo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
Na entrevista a seguir, concedida via Zoom ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, ela resume como o tema tem sido tratado pelos três poderes desde a década de 1990, e defende uma política de renda básica constitucional, cujo financiamento deve fazer parte das despesas obrigatórias do governo federal.
Para que os programas de transferência de renda deixem de ser caracterizados como assistenciais e passem a ser, de fato, programas que têm um caráter de estado de bem-estar social, explica, é preciso alterar seu meio de transferência. A solução, argumenta, é "que se tornassem despesa obrigatória do Tesouro, incluídos na Lei de Diretrizes Orçamentárias, que define as metas e prioridades da administração pública federal e orienta a lei orçamentária anual do ano seguinte de modo a se tornar uma política de Estado permanente a partir de 2023. O Programa Auxílio Brasil está previsto somente até o final de 2022.
Daí a importância e responsabilidade das Casas Legislativas neste momento, para que, finalmente, após 30 anos de luta permanente, um programa de renda básica se torne em definitivo uma política de Estado, cujas transferências sejam explicitamente definidas como transferências diretas de renda ao cidadão. Ou seja, transferências que concedem benefícios monetários mensais com o objetivo não de assistir – há uma diferença ao se usar o termo assistência aos vulneráveis –, mas de conceder um benefício com o objetivo de promover a condição social dos trabalhadores, da população em idade ativa, dos 15 milhões de desempregados".
Ivanisa Teitelroit Martins (Foto: Jorge Bravin)
Ivanisa Teitelroit Martins é mestre em Ciências Sociais pela London School of Economics and Political Science, especialista em Seguridade Social e programas de transferência de renda, gestora de políticas públicas do antigo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
IHU – Como os temas da renda básica e da redistribuição de renda foram discutidos na Assembleia Nacional Constituinte de 1987? O que e como se pensava sobre essas questões naquela época?
Ivanisa Teitelroit Martins – O que se debatia à época consta nos artigos 194 e 195 da Constituição: um sistema de seguridade social a partir de uma perspectiva social-desenvolvimentista de estado de bem-estar social. A proposta foi de constituir um sistema formado por um tripé baseado em três políticas públicas: a previdência social, a saúde e a assistência social. Cheguei a ministrar palestras na Constituinte defendendo a posição de que, ao longo do tempo, a política de assistência social se tornaria residual diante da consolidação das políticas de previdência social e de saúde pública com inclusão universal de toda a população. Estimei o cálculo de participação da política de assistência social em cinco décimos do orçamento da seguridade social.
No período pós-Constituinte, no início da década de 90, havia déficits na prestação direta de serviços públicos e déficits de salário e renda. Diante desse cenário foram sendo implantados sistemas de políticas públicas setoriais, que se organizavam em torno de dois eixos centrais: o sistema de educação do ensino básico ao superior e o sistema da seguridade social, cujas políticas convergiam em torno do eixo do seguro social. Era um momento de efervescência, de participação social, em que a sociedade se fazia representar em fóruns, conselhos nacionais, estaduais, municipais e deliberativos, em pleno processo de redemocratização do país. Era um momento em que a sociedade se organizava em sindicatos, nas universidades, nos movimentos sociais, nas cidades e no campo. Havia um propósito comum: reordenar o país, consolidar a democracia, organizar o debate e formular e implantar programas sociais que atendessem a uma demanda reprimida após 21 anos de ditadura militar.
Uma política de transferência de renda, pensada dentro de um estado de bem-estar social, foi apresentada mais tarde ao Senado, em 1991, pelo senador Eduardo Suplicy. Em junho daquele ano foram feitos vários debates e a aprovação final do projeto ocorreu em 1992. A proposta era de que fosse um benefício não contributivo, incondicional, um imposto de renda negativo e de acesso e incentivo à população de baixa renda aos programas contributivos. Não havia uma dissociação entre o contributivo e o não contributivo. O não contributivo era destinado a um intervalo de tempo, a um estágio de insuficiência de renda do trabalhador, afetado por uma crise econômica, por um declínio de oferta no mercado de trabalho, a um trabalhador desempregado para vir a se qualificar a um novo emprego – o Programa aprovado em 1992 e posteriormente em 2004 é um programa de renda mínima de caráter distributivo com perspectiva de longo prazo, nomeado Programa de Garantia de Renda Mínima – PGRM e 12 anos depois nomeado Programa de Renda Básica de Cidadania.
Em 1993, em reunião interministerial em que eu representava o Ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão, Beni Veras, o senador Suplicy apresentou ao governo – porque a disposição dele era de um diálogo entre o Legislativo e o Executivo – o primeiro programa de transferência de renda mínima autônomo, não integrado ao sistema de seguridade social. Diante da atualidade da proposta, representantes de diferentes ministérios, além de elogiarem a iniciativa, se dispuseram, conjuntamente, a formular um programa a ser encaminhado ao Parlamento. Aquele era um momento em que os poderes trabalhavam em harmonia com disposição e compromisso social. A construção da democracia, a redemocratização estava muito presente em todos nós: representada nos três poderes e em todos os campos de participação da sociedade civil.
Naquela reunião, decidiu-se adotar ou adaptar as bases de um programa de renda mínima a um caráter seletivo, com condicionalidades, que atendesse ao segmento de famílias de baixa renda com filhos de até 15 anos que mantivessem a frequência escolar – essa seria a condicionalidade para as pessoas receberem o benefício, condicionalidade que, ao lado dos cuidados com a saúde, é adotada até hoje, através do Programa Bolsa Família, substituído pelo Programa Auxílio Brasil. Ao longo do ano de 1994, realizamos seminários, debates e reuniões para estudar procedimentos para implementar o programa com caracterização federativa, analisar o impacto de sua execução financeira e adotar modos de controle e de fiscalização.
O primeiro programa de transferência de renda com condicionalidades foi redigido em 1997 pela equipe do professor Vilmar Farias, chefe da assessoria especial da presidência da República do governo Fernando Henrique para assuntos sociais, e encaminhado ao parlamento. Eu mesma recebi o anteprojeto do programa quando estava no Legislativo, assessorando a bancada do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. Ao analisar o projeto, percebi que a equação era regressiva. Então, telefonei para o professor Vilmar Farias solicitando que sua equipe alterasse a equação para uma versão progressiva. E assim foi feito porque havia um entendimento muito aberto entre o Legislativo e o Executivo, inclusive em plenário quando PMDB progressista, PSDB, PT e PDT, todos nós nos entendíamos porque havia um propósito comum, que era o de promover a condição social. Estávamos todos unidos em defesa dos princípios constitucionais. Esse projeto previa uma implementação progressiva de quatro anos, de 1998 a 2002. O apoio financeiro exigia dos estados e municípios uma contrapartida de 50%.
IHU – Quais foram as reações ao programa à época?
Ivanisa Teitelroit Martins – Desde a sua aprovação, o projeto recebeu críticas. Elas diziam respeito à focalização, à seletividade do programa para um determinado segmento da população, que dizia respeito às linhas de pobreza e extrema-pobreza. Esse programa era direcionado para um segmento da população, enquanto o programa de renda mínima universal do senador Suplicy não apresentava condicionalidades: era incondicional, era um imposto de renda negativo. Nesse sentido, o programa sofreu críticas diante da defesa de outro de caráter universal e permanente, que fosse um programa de Estado.
Na sequência, foram implantados os programas de combate à pobreza e de redução das desigualdades sociais, o Programa Bolsa Escola, entre outros. Eles foram sendo implementados progressivamente em função das restrições orçamentárias. Com o tempo constatou-se que esses programas tinham um impacto maior do que os programas contributivos do setor formal do mercado de trabalho, como o seguro-desemprego, o salário família e o abono salarial. Posteriormente, foi desenhado o Cadastro Único para a gestão dos programas sociais – hoje conhecido como CadÚnico – pela Secretaria de Assistência social à época. O Cadastro Único facilitou a adoção de uma modelo de gestão bem-sucedido. Esse é o histórico resumido até 2002.
IHU – Como e por que o sistema de seguridade social foi sendo descaracterizado e desmontado ao longo do tempo?
Ivanisa Teitelroit Martins – O orçamento da seguridade social é um orçamento cujas bases de financiamento são – e isso ainda consta na Constituição – contribuições sociais que, ao longo do tempo, durante diferentes governos, foram redirecionadas a outras atividades. Isso aconteceu nos governos de Fernando Henrique Cardoso e nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva. Ou seja, foram acontecendo, ao longo do tempo, desmontes no sistema de seguridade social sempre com a justificativa do ajuste fiscal; a mesma que, desde o governo do presidente Michel Temer, vigora como obrigação constitucional: o teto de gastos. Então, não dá para dizer que o sistema de seguridade social foi alterado em um governo ou foi desconstituído em outro. Trata-se de uma política que foi construída, desconstruída e desmontada ao longo do tempo. O que nos restou como garantia é a Constituição.
IHU – Por que a justificativa do ajuste fiscal é recorrente?
Ivanisa Teitelroit Martins – Poderíamos analisar essa justificativa pelo viés da adoção de uma visão governamental, que pode ser caracterizada como socialdemocrata com maior ou menor inflexão social liberal, neoliberal, ou pode-se caracterizá-la como “iliberal”, como se verifica no atual governo, ou seja, sequer neoliberal. A adoção do argumento do ajuste fiscal depende da concepção ou visão de mundo do conjunto das bases de sustentação política de um governo.
Participei da Assembleia Nacional Constituinte como assessora do relator da Ordem Social. À época, concordava que houvesse etapas e estágios progressivos de implementação dos programas sociais para que aos poucos fossem consolidadas as políticas públicas dentro de uma perspectiva sistêmica e de Estado. Como as contribuições sociais na gestão Fernando Henrique Cardoso foram redirecionadas para outras atividades do governo, e na gestão Luiz Inácio Lula da Silva foram redirecionadas parcialmente para o Tesouro, para compor a matriz econômica por conta da crise mundial de 2008 e 2009, essas decisões prejudicaram os pilares do sistema de seguridade social. Com essa fragilização, a própria previdência social foi atingida. Desde os governos do presidente Fernando Henrique, houve reformas do sistema de previdência social. Ao longo do tempo, os benefícios do sistema de previdência social foram sendo reduzidos e sua cobertura também foi reduzida a três salários-mínimos, praticamente se direcionando a uma coincidência com o teto de benefícios não contributivos; no caso, o Benefício de Prestação Continuada. Os valores dos benefícios também foram sendo reduzidos por conta da falta de uma base de financiamento, o que progressivamente retira do Estado a condição de promover a redistribuição da renda e da riqueza.
IHU On-Line – A Câmara dos Deputados e o Senado voltaram a discutir a temática da renda básica a fim de transformá-la em um direito social constitucional. Como vê o desenvolvimento desta discussão hoje em torno da PEC 29/2020?
Ivanisa Teitelroit Martins – Estou assistindo e testemunhando debates extremamente frutíferos nas duas casas legislativas. Até mesmo o vereador Suplicy está surpreso com o fato de o programa de renda básica de cidadania, aprovado em 2004, estar sendo debatido neste período, na atual conjuntura política nacional, que é exatamente o momento em que houve uma inversão das perspectivas sociais, com retrocessos das conquistas constitucionais e das políticas públicas.
Esse debate, por incrível que pareça, foi provocado por uma ação direta de inconstitucionalidade de autoria de um morador de rua, através da Defensoria Pública, pelo fato de contestar o recebimento R$ 91,00 do Programa Bolsa Família. Esta ADI chegou ao Supremo Tribunal Federal - STF e teve seu mérito analisado pelo ex-Ministro Marco Aurélio Mello. Ele decidiu pelo cumprimento da obrigatoriedade de regulamentação do Programa de Renda Básica de Cidadania pelas Casas Legislativas. Esse é um fato histórico.
IHU – Qual é o impacto da decisão do STF nessa discussão sobre a instituição da renda básica?
Ivanisa Teitelroit Martins – Só teve impacto positivo. A decisão foi procedente, porque mesmo tendo sido aprovado em 2004 e sancionado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda não havia sido regulamentado através de lei. Ou seja, chegamos em 2021, depois de 17 anos da aprovação, a uma situação em que o Supremo teve que intervir.
IHU – Ainda hoje a discussão da instituição de um programa de renda básica gira principalmente em torno do financiamento e das condicionalidades. Quais são os mecanismos que poderiam garantir o financiamento, o planejamento e a execução de um programa de renda universal e incondicional em um contexto de novas crises, de modo que esse seja um programa de Estado, como a senhora propõe, que não fique à mercê das circunstâncias conjunturais?
Ivanisa Teitelroit Martins – Atualmente, há uma conjuntura política que é produto de um governo que, a meu ver, não sabe planejar, o que é crucial para o desenvolvimento social. Não há planejamento social, não há articulação interministerial, não há metas de gestão, não há um plano plurianual. Por isso, este momento é histórico por caber ao Legislativo a obrigatoriedade de regulamentação do programa de renda básica de cidadania.
Vou tentar, a partir do debate que vem acontecendo e das deliberações que vêm ocorrendo, tanto na Câmara quanto no Senado, mostrar qual seria a via para garantir o financiamento.
A PEC aprovada pelo Senado em 09-11-2021 deveria fazer constatar como fonte de financiamento uma vinculação obrigatória às despesas do governo federal, de modo que fossem garantidas as transferências de renda para a população, promovendo alterações positivas em sua condição social. Os programas não são de autoria de governos; são resultado de debates, estudos, participação da sociedade civil e de decisões do Congresso em diálogo com o Executivo.
O plenário do Senado aprovou por unanimidade, em dois turnos, a proposta de emenda à Constituição que aprova um novo artigo, o artigo 6: a aprovação da constitucionalização da renda básica. A aprovação do Senado é histórica porque a Constituição passa a garantir o direito constitucional de uma renda mínima [caso seja aprovado], que é devida a todo o cidadão em situação de vulnerabilidade – ou melhor, de insuficiência de renda.
As regras do acesso à renda básica ainda serão regulamentadas através de projeto de lei. O STF, como comentei anteriormente, se adiantou ao Legislativo, definindo inclusive linhas de pobreza e extrema-pobreza de renda familiar per capita, desconsiderando a natureza do projeto de renda básica que é um benefício de caráter universal. Não caberia ao Supremo ter definido as linhas de pobreza porque essas linhas não são fixas. Entretanto, no julgamento do mérito da ação direta de inconstitucionalidade, o ex-ministro Marco Aurélio as fixou. Essas linhas precisam ser reavaliadas periodicamente, segundo indicadores de inflação e índices periódicos de reajuste. Isso precisa estar previsto e regulamentado em lei, na legislação infraconstitucional.
Porém, no próprio Senado houve alteração à proposta original de autoria do senador Eduardo Braga, do Amazonas. A PEC original recomendava que as despesas com o Programa de Renda Básica não fossem consideradas no contexto do regime de teto de gastos: uma perspectiva avançada, exatamente na mesma linha proposta pelo projeto de renda básica de cidadania aprovado em 2004. O autor, hoje vereador Eduardo Suplicy, esperava que o Programa fosse regulamentado pelos governos dos presidentes Luiz Inácio da Silva e Dilma Rousseff. Em uma entrevista para o jornal Gazeta do Povo, Suplicy contou que a renda básica só foi tema de reunião com a presidente Dilma Rousseff próximo ao processo de impeachment. Daí, ser histórico esse debate ser recuperado pelo Senado por decisão do STF.
Foi apresentada uma emenda pelo senador [Antonio] Anastasia exatamente sobre a questão do teto de gastos e a sua adequação ao ajuste fiscal. Veja, as próprias contradições em torno desse debate estão acontecendo no plenário do Senado. O projeto vai à Câmara dos Deputados com essa alteração e será debatido. Essa emenda ainda pode ser revertida na Câmara dos Deputados. Tudo vai depender da composição político-partidária em favor da manutenção dessa despesa mesmo sem adoção da regra do teto de gastos.
Caso a PEC seja aprovada e passe a ser um direito constante da Constituição em artigo 6, como um direito social obrigatório, este deverá ser regulamentado orçamentariamente no ano seguinte, em 2022. Por enquanto, é preciso encontrar, no próprio orçamento, recursos para garantir o pagamento do Programa Auxílio Brasil que podem constar de créditos suplementares no PPA. Há esse recurso regimental.
O que destoa da concepção de um programa de renda básica de cidadania para a de um programa de transferência de renda mínima não contributivo, sem caráter assistencial, é seu meio de transferência, que ainda está vinculado ao Fundo Nacional de Assistência Social. É por esse motivo que os programas de transferência de renda ainda são caracterizados como assistenciais, tanto o Programa Bolsa Família, o Programa Auxílio Brasil e o Programa de Renda Básica de Cidadania que está sendo debatido pelas Casas Legislativas.
IHU – Então, qual seria a solução?
Ivanisa Teitelroit Martins – Que se tornassem despesa obrigatória do Tesouro, incluídos na Lei de Diretrizes Orçamentárias, que define as metas e prioridades da administração pública federal e orienta a lei orçamentária anual do ano seguinte de modo a se tornar uma política de Estado permanente a partir de 2023. O Programa Auxílio Brasil está previsto somente até o final de 2022. Daí a importância e responsabilidade das Casas Legislativas neste momento, para que, finalmente, após 30 anos de luta permanente, um programa de renda básica se torne em definitivo uma política de Estado, cujas transferências sejam explicitamente definidas como transferências diretas de renda ao cidadão. Ou seja, transferências que concedem benefícios monetários mensais com o objetivo não de assistir – há uma diferença ao se usar o termo assistência aos vulneráveis –, mas de conceder um benefício com o objetivo de promover a condição social dos trabalhadores, da população em idade ativa, dos 15 milhões de desempregados.
Se você entrevistar qualquer um que recebe um programa caracterizado como assistencial, a pessoa vai dizer que quer ter direito a um emprego, quer se qualificar, quer se escolarizar, porque é isso que lhe dá dignidade. É o próprio povo, a própria população que quer ser tratada com dignidade.
O grande desafio que está posto para as duas Casas Legislativas é o de não vincular o debate da renda básica universal ao debate dos precatórios ou das dívidas. O importante é que esse valor seja garantido pelo Tesouro e que seja aprovado o artigo 6 da Constituição, que garante como política de Estado um programa de transferência de renda, que finalmente se converta em um direito constitucional.
IHU – Qual sua expectativa para a continuidade do debate no Congresso?
Ivanisa Teitelroit Martins – Se aprovada, essa proposta seria adotada para todos os brasileiros, sem nenhum tipo de condicionalidade. Mas não acredito que seja mantida dentro dessa perspectiva. O que suponho é que serão mantidas as condicionalidades e o critério de seletividade, segundo a renda. O mais importante é que se torne um direito e uma obrigação do Estado, uma obrigação orçamentária.
Se tínhamos antes um orçamento de seguridade social, agora, teremos a inclusão do cidadão no orçamento – como dizia o ex-presidente Luiz Inácio da Silva. Finalmente o cidadão com insuficiência de renda, não o pobre – ao chamá-lo de pobre, naturaliza-se a pobreza – será incluído no orçamento.
IHU – Por que é mais importante garantir uma renda para todos os brasileiros, ainda que seja um valor menor, do que oferecer uma renda maior para aqueles que recebem uma faixa de renda determinada?
Ivanisa Teitelroit Martins – O mecanismo pensado pelo senador Suplicy era um mecanismo de imposto de renda negativo, cujo controle seria feito pela Receita Federal, e dependia também de uma reforma tributária, como está previsto na Constituição. O senador Fernando Henrique Cardoso apresentou ao Senado, para ser regulamentada, a taxação das grandes fortunas. Também o Supremo tornou obrigatória a regulamentação do imposto sobre grandes fortunas a partir de uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão, de autoria do PSOL. Então, estamos diante de uma situação que pode se tornar histórica se houver, da parte daqueles que têm responsabilidade e real compromisso com o povo e com o social desenvolvimentismo, o interesse de debater e aprovar definitivamente essa política como uma política de Estado. E mais adiante debater e aprovar a reforma tributária que inclua a taxação de grandes fortunas.
IHU – Que impacto a aprovação de uma política de distribuição de renda permanente pode ter nas demais políticas sociais?
Ivanisa Teitelroit Martins – A política de renda mínima, como pensamos na Constituinte, seria residual, enquanto caracterizada como assistencial. Se for pensada como uma política de renda mínima com recursos orçamentários que não venham a disputar com os recursos orçamentários da educação e da saúde, poderá ter um impacto qualificado. É preciso ter clareza de que as políticas prioritárias são as de saúde e educação públicas.
IHU - Quais são hoje os principais equívocos no entendimento, discussão e elaboração de propostas sobre programas de transferência de renda, que precisam ser esclarecidos?
Ivanisa Teitelroit Martins – Temos que entender que estamos em um estado organizado federativamente. Então, à União cabe a normatização, aos estados, a coordenação e execução de políticas públicas, e aos municípios, a execução. Os estados coordenam as ações dos municípios, podendo constituir consórcios. São entes federados, o que demanda uma ação nacional integrada. Há estados que têm programas de transferência de renda que são emergenciais e temporários. Como cabe à União a normatização e às casas legislativas a regulamentação, cabe também adotar procedimentos federativos para que não haja a superposição de programas de transferência de renda. O princípio federativo precisa ser preservado e um programa como esse não pode ser adotado parcialmente. Ele precisa ser adotado enquanto um sistema de transferências constitucionais obrigatórias.
Feito isso, precisamos que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE retome suas atividades através da pesquisa censitária e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad que foram interrompidas. Estamos sem dados, sem análise de impacto dos programas e precisamos retomar a capacidade de recuperar dados e analisar impactos, aplicar índices e coeficientes de desigualdade social. A avaliação dos programas deve ser permanente, contínua e definir um índice de reajuste.
Segundo o professor Belluzzo, nosso país passou por um processo de desindustrialização e o aumento do desemprego é resultado desse processo, assim como o aumento da informalidade e da precarização do trabalho são resultado da reforma da legislação trabalhista. Assemelha-se ao cenário do período da Constituinte. Há dois processos em curso que representam um grave retrocesso: um processo de desindustrialização e outro de desconstitucionalização. Por isso, no atual momento, aprovar um programa de transferência de renda básica de cidadania como política de Estado permanente, que integre o texto da Constituição, é histórico.