02 Julho 2021
Programas desse tipo buscam alcançar toda a população, além de serem financiados inteiramente pelo Estado.
A reportagem é de Luana Ely Quintana, aluna do curso de jornalismo da Unisinos, publicada por Beta Redação, 30-06-2021.
Discutida em diversos momentos da História e em todos os lugares do mundo, a ideia de ter uma Renda Básica Universal (RBU) é antiga e foi descrita, pela primeira vez, em 1516 no livro Utopia, do filósofo Thomas More. Na obra, o autor sugere um auxílio para todos os cidadãos, a fim de gerar uma qualidade de vida melhor, de modo que as pessoas não precisem roubar para se alimentarem. Diversas nações já colocaram em prática ou estão preparando programas-pilotos desse tipo.
A RBU, como o próprio nome sugere, seria um valor transferido às pessoas mensal ou anualmente. Entretanto, ela não teria “pré-requisitos” como outros programas de transferência de renda possuem. O auxílio seria universal, atenderia a todas as necessidades básicas e seria financiado inteiramente pelo Estado.
O cientista social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e diretor do Cadastro Único para Programas Sociais do Ministério do Desenvolvimento Social, Luis Henrique Paiva, diz que há diferenças entre programas de transferências condicionadas de renda e renda básica. Segundo Paiva, as transferências de renda voltadas para os mais pobres ou para grupos demográficos específicos (como crianças e idosos, por exemplo) fazem parte dos instrumentos de proteção social de países desenvolvidos e em desenvolvimento há bastante tempo. “A ideia de condicionar o recebimento desses benefícios ao cumprimento de certas ações voltadas para o aumento de capital humano surgiu no Brasil e foi adotada em meados dos anos 1900, no Distrito Federal e em alguns municípios brasileiros”, explica.
“Em nível internacional, o México tomou a dianteira ao adotar o Progresa (Programa de Educación, Salud y Alimentación) em 1997. Já o Brasil criou seu primeiro programa nacional em 2001 e unificou as transferências em 2003, com o Bolsa Família. Hoje, programas desse tipo estão presentes em cerca de 70 países no mundo.”
A Renda Básica Universal não necessariamente combate um problema grave no Brasil: a desigualdade social. “Programas desse tipo têm eficiência relativamente baixa no combate à pobreza e à desigualdade. Para as condições brasileiras, o ideal ainda seria manter programas com alguma característica de focalização nos mais pobres, embora devamos caminhar na direção de uma maior cobertura e maiores valores de benefício”, aponta Paiva.
O ex-senador Eduardo Suplicy (PT) propôs, em 2005, durante a gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Renda Básica de Cidadania, mas o governo não a implementou e acabou desconsiderando-a posteriormente. Suplicy previa criar uma renda que fosse paga a partir dos royalties do petróleo.
A Lei 10.835/04, de autoria do ex-senador, prevê que “é instituída, a partir de 2005, a renda básica de cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário. O pagamento do benefício deverá ser de igual valor para todos, e suficiente para atender às despesas mínimas de cada pessoa com alimentação, educação e saúde, considerando para isso o grau de desenvolvimento do País e as possibilidades orçamentárias”. A lei, apesar de aprovada, não foi implementada.
Para o economista e doutor em Sociologia pela New School for Social Research, de Nova York, Josué Pereira da Silva, há duas maneiras de abordar o tema da Renda Básica Universal no atual contexto brasileiro. Uma, mais geral, refere-se à renda básica em si como um programa de política social amplo. “Nesse sentido, a renda básica emerge como uma chave importante para se pensar a reconstrução das políticas de bem-estar do pós-Segunda Guerra e não se limita ao Brasil. Pode-se dizer que a renda básica pode ter um importante papel para a elaboração de políticas sociais em contextos de desemprego estrutural e tecnológico, uma vez que as políticas de pleno emprego que deram suporte ao Estado de bem-estar social entre as décadas de 1950 e 1980 já não se mostram mais possíveis hoje em dia”, explica.
O debate de uma renda universal voltou a surgir em meio à pandemia do novo coronavírus que, até agora, já matou mais de 516 mil pessoas somente no Brasil. Isso sem contar as crises econômica e sanitária, a desigualdade e o desemprego, que vêm aumentando cada dia mais.
A crise da Covid-19, com a criação do Auxilio Emergencial, mostrou-se presente no debate da existência de programas de transferência de renda para a população. “O Auxílio Emergencial foi um benefício temporário”, comenta Paiva. “Porém, o custo anualizado do Auxílio de R$ 600 seria algo como 7% do PIB, algo absolutamente inviável”, diz.
“O grande papel do Auxílio Emergencial foi manter uma fração enorme da população brasileira minimamente protegida durante a pandemia e, ao mesmo tempo, manter a própria economia funcionando. O Auxílio protegeu as pessoas e a economia como um todo. Ele também mostrou o quão modesto é o Programa Bolsa Família e como seria importante expandi-lo e aumentar o valor de suas transferências.”
Outra maneira de abordar o problema, tanto da renda básica, quanto do Bolsa Família ou até mesmo o Auxílio Emergencial, é pensar justamente como medida emergencial em contextos como o presente, de pandemia. “Neste segundo caso, trata-se de uma política limitada, adotada de forma focada e emergencial; não se trata, portanto, de renda básica universal como no primeiro caso. Mas a atual necessidade de se recorrer à transferência emergencial de renda contribui para mostrar o abismo da desigualdade social entre nós e certamente leva à reflexão a respeito de uma política mais ampla de transferência direta de renda que aponte para a renda básica universal, que, essa sim, seria uma política de cidadania”, diz.
Somente no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no primeiro trimestre do ano de 2021, 14,8 milhões de brasileiros estavam desempregados. Segundo estudo da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec), baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de 2020, o Auxílio Emergencial beneficiou 49,5% da população brasileira e contribuiu para a redução da extrema pobreza e da desigualdade de renda.
Para muitos, a criação de programas deste cunho diminuiria as ofertas e, também, a procura por emprego. Entretanto, o economista aponta que tal posição é antiga, fundada numa retrógrada ideologia do trabalho, utilizada em um contexto contemporâneo justamente para responder ao desemprego em massa vivenciado principalmente pelos países europeus desde a década de 1980.
“As experiências com programas de transferência mostraram que a injeção de mais dinheiro na economia por essas políticas de renda cria na verdade um círculo virtuoso para atividade econômica. Além disso, a posse de uma renda dá mais poder de barganha aos eventuais demandantes de emprego e isso, acredito, é o que preocupa àqueles que são contra a renda básica”, destaca o economista Josué Pereira da Silva.
O cientista social explica que programas de transferência de renda são focalizados, isso é, voltados para os mais pobres, para a família e condicionados. Programas do tipo RBU buscam alcançar todos os residentes de uma localidade, pagam benefícios por indivíduo e não são condicionados. “Transferências condicionadas são adotadas em muitos países e têm-se mostrado bastante eficientes no combate à pobreza. Entretanto, nenhum país do mundo adotou uma Renda Básica Universal.”
Ao considerar que o Estado deve assegurar saúde, educação e segurança, e cumprir com suas obrigações, é imprescindível planejar e debater temas fiscais e tributários para viabilizar a renda básica. Porém, vale notar, tanto no caso do Auxílio Emergencial como do Bolsa Família, efeitos positivos na economia. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a cada R$ 1 gasto com Bolsa Família o retorno é de R$ 1,78 ao PIB.
“Embora limitado, o Programa Bolsa Família é, a esse respeito, um bom exemplo de renda auxiliar”, ressalta o economista. Para Josué, a renda básica universal não deve ser considerada uma cura que resolveria todos os males. “Tampouco deve ser considerado, como pensam alguns liberais, que um programa de transferência de renda desse tipo deve substituir os demais programas sociais, como os relacionados à saúde, à educação e à moradia. Não, eu vejo a renda básica como um programa complementar aos outros. E, por fim, a renda básica deve ser um programa de Estado, universal e permanente”, pontua.
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Conheça as diferenças entre a Renda Básica Universal e os programas de transferência de renda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU