Por: Ricardo Machado | Edição João Vitor Santos | 29 Abril 2017
Discutir a necessidade de uma renda básica universal até mesmo numa roda de amigos não é tarefa fácil. Inevitavelmente, vão surgir as variações do argumento: “isso é para alimentar quem não quer trabalhar. Quem vai bancar?”. Um contra-argumento que pode refutar esse, de lugar comum, é a necessidade de compreender de qual renda mínima de fato se está falando. “A renda básica universal enquanto política social pode beneficiar principalmente a população em condições de pobreza, mas pode beneficiar também os trabalhadores que aparentemente não precisam de uma renda desse tipo”, esclarece o professor Josué Pereira da Silva, um dos estudiosos do tema no país.
Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Josué explica que, no caso de pessoas que vivem na pobreza, essa pode ser a chance de mudar de situação. “Pode-se argumentar que a renda básica garantida contribuiria para aumentar o poder de barganha dos trabalhadores, reduzindo os efeitos de expectativas de desemprego nos momentos de negociação de melhores salários e condições de trabalho”, completa. Mas é difícil falar disso hoje. “E essa dificuldade decorre, a meu ver, da hegemonia dos valores capitalistas dominantes, inclusive entre setores da esquerda”, aponta. Para ele, uma saída pode ser esclarecer movimentos sociais acerca do tema. “O problema não é propriamente a falta de recursos, mas a falta de um projeto político que priorize a cidadania em vez de satisfazer-se apenas em agradar ao mercado”, aponta.
Distribuição de Renda | Foto: Diário do Engenho
Josué Pereira da Silva é bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo -USP, mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Sociologia pela New School for Social Research, Nova Iorque, Estados Unidos. Atua como professor na Unicamp. Desde 2011 coordena, junto com Sílvio Camargo, o grupo de pesquisa Teoria Crítica e Sociologia. De sua produção bibliográfica, destacamos André Gorz. Trabalho e política (São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002); André Gorz e seus críticos (São Paulo: Annablume, 2006); e Por uma sociologia do século XX (São Paulo: Annablume, 2007).
A entrevista é publicada na revista IHU On-Line, no. 503, com o tema de capa A ‘uberização’ e as encruzilhadas do mundo do trabalho.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como as questões relacionadas a trabalho e renda confluem para as discussões sobre a renda básica universal?
Josué Pereira da Silva – A primeira chave para pensar essa relação entre trabalho e renda está na chamada crise do Estado de bem-estar social, bem definido por Gosta Esping-Andersen [1] como “social citizenship state” (Estado de cidadania social), em seu livro Politics Against Markets. The Social Democratic Road to Power [2]. A despeito das muitas críticas – burocratização, centralização, androcentrismo – que esse modelo de Estado social recebia de diversos quadrantes, ele tinha a virtuosidade de combinar crescimento econômico com o pleno emprego da força de trabalho. Era a partir da administração desse equilíbrio entre crescimento econômico e pleno emprego que o Estado de bem-estar social geria, pela garantia de direitos sociais (educação, saúde e renda), uma aceitável distribuição da riqueza socialmente produzida, apaziguando com isso o conflito entre os principais atores envolvidos. Para além das diferenças entre os diversos modelos de Estado de bem-estar – anglo-americano, central-europeu e nórdico-europeu –, esse era seu desenho predominante.
Com a crise fiscal, inicialmente, e a revolução tecnológica, num segundo momento, o equilíbrio da equação de crescimento econômico e pleno emprego se desfez. O crescente desemprego estrutural e tecnológico daí decorrente contribuiu, de um lado, para reduzir a base fiscal arrecadadora de impostos do Estado e, de outro, para aumentar a demanda por direitos sociais. Grosso modo, é do contexto de desemprego da década de 1980, portanto, que emergiu o debate contemporâneo sobre transferência direta de renda, que tem como marco principal o texto “A Capitalist Road to Communism” (um caminho capitalista para o comunismo), de Robert van der Veen [3] e Philippe Van Parijs [4], de 1986 (Theory and Society, volume 15, número 5).
Mas esse tipo de explicação diz respeito principalmente aos países centrais do capitalismo. Em países da periferia do capitalismo como o Brasil, além dos problemas apontados acima, temos também como agravantes a pobreza extrema que atinge significativos setores da população e uma mais acentuada desigualdade social. Assim, se nos países centrais a adoção da renda básica de cidadania pode significar um caminho para reconstruir o Estado de bem-estar, em países como Brasil ela pode oferecer as condições materiais necessárias para tirarmos parte da população da condição de subcidadania, garantindo-lhe mais autonomia e dignidade, condições fundamentais para a construção de uma cidadania plena entre nós.
IHU On-Line – André Gorz [5] pensou a necessidade de se implementar políticas de renda básica universal em dois momentos históricos distintos, na década de 1980 e, depois, nos anos 1990. O que estava em jogo nesses diferentes períodos?
Josué Pereira da Silva – De fato, os textos que André Gorz escreveu sobre o assunto permitem que se distinga uma mudança em sua abordagem da renda básica, ou alocação universal – termo mais utilizado na França para falar de renda básica. Antes de 1997, Gorz defendia a desvinculação entre renda e tempo de trabalho, mas insistia na necessidade de manter o vínculo entre trabalho e renda porque acreditava no “direito ao trabalho”, ainda que em duração reduzida, como “direito político” de participar da produção social. Para ele, era a manutenção do vínculo entre trabalho e renda que caracterizava o que ele considerava a “posição de esquerda”, enquanto associava a transferência incondicional de renda ao que denominava “posição de direita”.
Sua mudança de posição a respeito a partir de 1997 decorre, segundo ele próprio, de uma reavaliação do contexto histórico, caracterizado principalmente pela emergência do “imaterial”, que em sua avaliação impossibilitava a aplicação de critérios de equivalência no cálculo das contribuições individuais e, portanto, na atribuição das remunerações na forma de salário. Há outras razões alegadas para a mudança de posição, como a globalização; mas é certamente a crescente importância da dimensão do imaterial no mundo da produção o principal fator por trás de sua mudança de posição. Em meu livro Por que renda básica? [6], eu trato mais detalhadamente deste tema.
IHU On-Line – Que transformações no mundo do trabalho tornaram o debate sobre a renda básica universal extremamente atual?
Josué Pereira da Silva – Creio que as respostas às duas questões anteriores já contemplam esta questão. Mas, de forma resumida, podemos dizer que desemprego estrutural e tecnológico, pobreza e desigualdade social extremas, crescente relevância da produção imaterial, a globalização da economia e seus efeitos perversos sobre as vidas das pessoas em diversas partes do mundo, tudo isso torna mais vulnerável a segurança material de importantes setores da população mundial. Em tal contexto, a renda básica pode ser uma importante proteção contra as incertezas; daí a atualidade do debate.
IHU On-Line – No Brasil, dado o conservadorismo político do atual Congresso, como se poderia construir uma agenda em torno da renda básica universal? De onde viriam os recursos?
Josué Pereira da Silva – A renda básica universal enquanto política social pode beneficiar principalmente a população em condições de pobreza, mas pode beneficiar também os trabalhadores que aparentemente não precisam de uma renda desse tipo. Se no primeiro caso parece indiscutível sua pertinência, no segundo pode-se argumentar que a renda básica garantida contribuiria para aumentar o poder de barganha dos trabalhadores, reduzindo os efeitos de expectativas de desemprego nos momentos de negociação de melhores salários e condições de trabalho. Ademais, a renda básica, enquanto tal, não se contrapõe a nenhuma das reivindicações dos diferentes movimentos sociais. Por isso, ao contrário, ela pode até contribuir para unificar suas ações em torno de uma pauta comum.
A despeito de tudo isso, o grande problema de “construir uma agenda em torno da renda básica universal” é a dificuldade em sensibilizar os diversos movimentos sociais para sua importância. E essa dificuldade decorre, a meu ver, da hegemonia dos valores capitalistas dominantes, inclusive entre setores da esquerda. Quanto aos recursos, creio que é uma falsa questão. O problema não é propriamente a falta de recursos, mas a falta de um projeto político que priorize a cidadania em vez de satisfazer-se apenas em agradar ao mercado. A propósito, basta comparar, a título de exemplo, o montante de recursos destinados anualmente ao Programa Bolsa Família (R$ 29,7 bilhões), que não chega a 0,5% do Produto Interno Bruto – PIB, com os recursos destinados ao que recentemente ficou conhecido, no noticiário da grande imprensa, como “Bolsa Empresário”, cujo montante estimado para este ano (R$ 224 bilhões) alcança 3,4% do PIB (Cf. Folha de S. Paulo, 16/10/2016).
IHU On-Line – Quando se discute o mundo do trabalho em perspectiva com a economia, muitas vezes se recorre ao argumento do crescimento do PIB. De onde vem esta obsessão pelo crescimento do PIB? Este crescimento tem mais a ver com as dinâmicas do capital ou com a geração de postos de trabalho?
Josué Pereira da Silva – O crescimento econômico em si não é um problema; mas é problemática a obsessão pelo crescimento, sobretudo quando não há preocupação com seus efeitos negativos de longo prazo sobre o ambiente natural. É difícil imaginar capitalismo sem crescimento econômico, mas há uma excessiva valorização do produtivismo como se fosse o único caminho possível para se alcançar o bem-estar da população. É essa lógica produtivista hegemônica, da qual a esquerda tradicional não consegue escapar, que explica a obsessão pelo crescimento, seja quando vista pela dinâmica do capital, seja pela imaginada geração de postos de trabalho que dele se espera. Nesse caso, ambas, dinâmica do capital e geração de empregos, aparecem como os dois lados de uma mesma moeda.
IHU On-Line – Como os projetos de lei de reformas trabalhista e previdenciária propostos pelo atual governo acentuam ainda mais as desigualdades sociais?
Josué Pereira da Silva – Antes de tudo, é preciso dizer que as duas me parecem mais contrarreformas que visam desconstruir importantes conquistas históricas da precária cidadania brasileira do que reformas no sentido clássico que sempre estiveram vinculadas a melhorias nas condições de vida da população. Por outro lado, não há discussão séria e profunda sobre o alegado déficit da previdência e tampouco sobre a seguridade social num sentido amplo, que não deve ser tratada apenas em termos atuariais. Além do mais, elas são levadas a efeito por um governo, cujo poder herdado não resulta de um programa eleito para esse fim.
Por tudo isso, fica-se com a impressão de que se trata de um desdobramento tardio daquilo que na década de 1990 ficou conhecido como “workfare”, cujo principal objetivo é criar um ambiente favorável aos interessados no enfraquecimento da legislação trabalhista e na expansão da previdência privada. Ou seja, sua lógica é expandir a fronteira da privatização.
IHU On-Line – Como a implementação da renda básica universal atualiza a ideia de trabalho a partir de noções como labor (trabalho produtivo) e opus (trabalho artístico e cultural)?
Josué Pereira da Silva – Como já escrevi antes, não vejo a renda básica de cidadania como panaceia para resolver todos os problemas da humanidade. Mas acho que ela poderia facilitar bastante o combate à pobreza extrema e à desigualdade social, acentuada pela crise dos sistemas de proteção social e pela globalização da economia. Não sei se a renda básica atualiza a ideia de trabalho em qualquer dos dois sentidos mencionados, mas ao garantir às pessoas uma renda desvinculada do assalariamento, ela cria condições para que as pessoas possam desenvolver suas potencialidades sem a pressão da luta pela sobrevivência material.
Isso daria mais autonomia para as pessoas decidirem onde preferem empregar suas energias, inclusive dedicando-se, por exemplo, a atividades socialmente importantes – artísticas, culturais, artesanais etc. – mas sem valor de mercado. O amplo desenvolvimento desse tipo de atividade poderia implicar mudanças na percepção e na relação das pessoas com o trabalho assalariado.
IHU On-Line – Chegamos à fronteira do trabalho assalariado ou esse modelo ainda tem fôlego? Quais devem ser os rumos do trabalho no século 21?
Josué Pereira da Silva – O peso do trabalho assalariado como norma no mundo contemporâneo é inegável. E tudo indica que assim continuará ainda por muito tempo. Mas vejo duas tendências mais ou menos claras: a sensação de que tudo virou trabalho e a expansão da lógica da mercadoria para os mais recônditos domínios da vida social. Em tal situação, a luta principal, a meu ver, deve ser contra a tendência de se transformar tudo em mercadoria; consequentemente, embora o trabalho assalariado seja o padrão normativo dominante, não podemos aceitar que toda atividade se transforme em trabalho assalariado.
IHU On-Line – Em uma economia do conhecimento, em que o trabalho intelectual (no sentido de circulação de informações) prepondera sobre o trabalho material, de que ordem são os desafios à geração de renda?
Josué Pereira da Silva – No contexto da economia de conhecimento, a criação de riqueza num sentido amplo (e não apenas geração de renda) assenta-se mais na interação e na criatividade social, cuja contribuição individual não é passível de medição, do que na relação de equivalência direta típica das trocas no mercado. Se a chamada economia do conhecimento se apropria dessa riqueza socialmente produzida, então o problema principal não é mais o da geração de riqueza, mas o de sua distribuição. Daí a pertinência da renda básica universal.
IHU On-Line – Não seria a renda básica universal uma forma de “salvar” o capitalismo?
Josué Pereira da Silva – Difícil saber. A resposta será afirmativa se a renda básica universal se limitar a um patamar tão reduzido que não seja suficiente para garantir condições de vida digna às pessoas, de forma que elas continuem precisando se submeter às exigências do capitalismo neoliberal. Mas caso sua implementação se dê com sólido apoio social e a partir de um montante suficiente para garantir condições materiais que permita a cada pessoa viver com dignidade sem precisar necessariamente vender sua força de trabalho no mercado, ela também pode se transformar naquilo que André Gorz denomina “reforma revolucionária”, contribuindo, assim, para “desmercadorizar” parcialmente a força de trabalho e para desafiar com isso um importante pilar do capitalismo.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Josué Pereira da Silva – Primeiro, que já temos desde janeiro de 2004 uma lei, sancionada pelo então presidente Lula, que previa a instituição da renda básica de cidadania no Brasil a partir de 2005, mas que ainda não saiu do papel. Por outro lado, embora não ignore que o contexto atual brasileiro e mundial é bastante adverso, continuo achando que não dá para perder a esperança e deixar de acreditar num futuro melhor. Mas, para tanto, precisamos também de uma esquerda diferente daquela até aqui dominante. Uma esquerda que tenha de fato apreço pela democracia e pela ética, que realmente se oponha à expansão desenfreada do capitalismo neoliberal e que também não seja cega às consequências negativas dessa expansão capitalista para as vidas das populações mais vulneráveis e para o ambiente natural.
Notas:
[1] Gosta Esping-Andersen (1947): sociólogo dinamarquês cujo foco principal é o estado de bem-estar e seu lugar nas economias capitalistas. Esping-Andersen é professor da Universidade Pompeu Fabra em Barcelona (Espanha) e membro do Comitê Científico do Instituto Juan March e do Conselho de Curadores e do Conselho Científico do IMDEA Instituto de Ciências Sociais, em Madri (Espanha). (Nota da IHU On-Line)
[2] Princeton University Press, 1985. (Nota do entrevistado)
[3] Robert Jan van der Veen (1943): teórico político holandês, atualmente é professor assistente de ciência política na Universidade de Amsterdam. Antes disso, estava no Instituto Holandês de Estudos Avançados de Trabalho (entre 1977 e 1978) na Universidade de Groningen, onde se graduou em 1991, no Departamento de Economia da Universidade de Rotterdam Erasmus e da Universidade de Warwick. Van der Veen tem um fundo em marxista teoria política e economia política. Como tal, ele foi envolvido na década de 80 com o marxismo analítico. Ele tem se especializado no período final na relação entre o comportamento racional e ambiental e renda básica. (Nota IHU On-Line)
[4] Philippe Van Parijs (1951): economista e filósofo belga. Estudou economia, direitos, sociologia e linguística e obteve um doutorado na Universidade de Oxford. Ele é professor na Universidade de Louvain-la-Neuve e Harvard. (Nota da IHU On-Line)
[5] André Gorz (1923-2007): filósofo austríaco. Escreveu inúmeros livros, vários deles traduzidos para o português, entre eles Adeus ao proletariado (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982), Metamorfoses do trabalho. Crítica da razão econômica (São Paulo: Annablume, 2003) e Misérias do Presente, Riqueza do Possível (São Paulo: Annablume, 2004). Realizamos uma entrevista com André Gorz, publicada parcialmente na 129ª edição da revista IHU On-Line, de 2-1-2005, e na íntegra no número 31 dos Cadernos IHU ideias, com o título A crise e o êxodo da sociedade salarial. Sobre André Gorz também pode ser lido o texto Pelo êxodo da sociedade salarial. A evolução do conceito de trabalho em André Gorz, de autoria de André Langer, pesquisador do Cepat. O texto está publicado nos Cadernos IHU nº 5, de 2004. O site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU deu ampla repercussão à morte de Gorz. Para acessar o material, acesse as Notícias do Dia 26-9-2007. (Nota da IHU On-Line)
[6] Annablume, 2014, páginas 63-83. (Nota do entrevistado)
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O desafio de compreender e buscar uma renda básica. Entrevista especial com Josué Pereira da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU