09 Setembro 2021
"Pensar que a Renda Básica Universal garantirá 'per se' um futuro melhor poderá ser uma ilusão perigosa".
O artigo é de André Moreira Cunha e Andrés Ferrari, professores do Departamento de Economia e de Relações Internacionais da UFRGS, em artigo publicado por Portal da FCE e reprodudizdo por Sul21, 04-09-2021.
*A versão integral deste texto está disponível no Portal da FCE.
“Há uma guerra entre as classes sociais; e nós, os ricos, a estamos promovendo e vencendo” – Warren Buffet
Elon Musk, o segundo homem mais rico do planeta, com um patrimônio de US$ 186 bilhões, declarou recentemente ser necessário desenvolver programas de renda básica universal (RBU). Ao apresentar o protótipo do robô Tesla em formato humanoide, Musk sugeriu que, no longo prazo, a robotização e a inteligência artificial tornarão o trabalho físico uma “opção”. Não é a primeira vez que ele faz esse tipo de afirmação. Há cinco anos, Musk disse que “os robôs vão tirar os seus empregos; e os governos pagarão os seus salários”. Outros midas da Gig Economy e bilionários da lista Forbes também apoiam a RBU e pelas mesmas razões: Mark Zuckerberg (Facebook), Bill Gates (Microsoft), Chris Hughes (Facebook, Jumo), Jack Dorsey (Twitter), Richard Branson (Virgin Group), Stewart Butterfield (Slack e Flickr), Sam Altman (Y Combinator e OpenAI), Peter Diamandis (X Prize Foundation, Zero Gravity Corporation), para citar alguns.
A RBU é uma política de transferência de renda que apresenta cinco características básicas: é universal, pois visa ao conjunto da população e não somente a um público alvo; é incondicional, na medida em que não exige nenhum tipo de contrapartida pelas(os) beneficiárias(os); é periódica, individual e paga em dinheiro, ou seja, há liberdade plena no uso dos recursos para aquelas finalidades desejadas por quem a recebe. Sua utilização ganhou ímpeto nos últimos anos, especialmente a partir dos efeitos disruptivos da crise financeira global (2007 – 2009) e da pandemia da Covid 19.
Há experiências com a RBU em países de alta renda (Canadá, Finlândia, Alemanha, Espanha, Estados Unidos) e em países em desenvolvimento (por exemplo, Quênia, Índia, Mongólia, Namíbia). Os programas já implementados apresentam alcance limitado em termos geográficos e temporais, ao contrário de outras políticas de subsídios e transferências diretas de renda, como o Programa Bolsa Família no Brasil, que não têm um caráter universal, mas atingem parcelas ampliadas das respectivas populações nacionais. Em alguns casos, como no Estado do Alasca (EUA), toda a população residente – e que não tenha condenações criminais – é beneficiária da RBU. Esta foi aprovada por emenda constitucional e é financiada por meio do “Alaska Permanent Fund Corporation”, que é um fundo intergeracional que utiliza recursos da exploração de petróleo.
Em outros modelos, como o da Finlândia, a RBU tem um caráter experimental. No caso finlandês, por exemplo, 2.000 pessoas foram beneficiadas com um programa de RBU que transferiu € 560 por mês entre 2017 e 2018. Este grupo amostral foi estudado em comparação com um grupo controle. Observou-se que, por um lado, não foram constatadas diferenças estatisticamente significativas entre os dois grupos – beneficiários e de controle – no que tange à disposição para trabalhar e os resultados concretos em obtenção de ocupações (que oscilou de 18% a 27% dos beneficiários) durante esse período de avaliação. Por outro lado, quem recebeu a RBU logrou melhores resultados em termos de bem-estar e segurança financeira.
A literatura especializada sugere que a crescente automação da produção industrial e a introdução de inovações ainda mais radicais em áreas como inteligência artificial, robótica e demais tecnologias digitais tendem a limitar a criação líquida de empregos, particularmente nas atividades que exijam conhecimento técnico não especializado. Em 2013, Frey e Osborne, da Universidade de Oxford, projetaram que, até meados de 2030, 47% dos empregos então existentes nos EUA seriam fortemente afetados pela revolução digital. O risco de pessoas serem substituídas pela automação digital foi estimado em mais de 70%. Estimativas posteriores, compiladas por um recente estudo da área de pesquisa do Parlamento Europeu, apontam distintos cenários e impactos destas novas tecnologias. Há divergências sobre a existência de ganhos líquidos positivos entre a criação de novas ocupações e a destruição das que se tornarão redundantes. As únicas certezas são que tal processo será mais profundo e rápido do que os já experimentados quando da disseminação de tecnologias poupadoras de trabalho. E, ademais, que os esforços sociais de adaptação tenderão a ser mais complexos e abrangentes.
A visão tradicional de que a automação só atingiria empregos em setores caracterizados pelo trabalho repetitivo e menos qualificado parece não se aplicar à nova onda de inovações. Agora é a vez dos segmentos antes considerados estáveis experimentarem o desiderato sugerido pelo historiador Yuval Harari. Em seu “Homo Deus: A Brief History of Tomorrow” (2015), Harari sugere que as classes baixas e médias poderão descobrir que há algo pior para o trabalhador do que ser explorado, vale dizer: não ter mais quem se interesse por explorá-lo.
Acemoglu e Restrepo (“Tasks, Automation, and the Rise in US Wage Inequality, 2021) estimaram que, nas últimas quatro décadas, entre 50% e 70% das mudanças na estrutura de remuneração dos EUA se deveram à automação, controlados demais fatores intervenientes neste fenômeno. Korinek e Stiglitz (Artificial Intelligence, Globalization, and Strategies for Economic Development, 2021) nos ajudam a compreender tal fenômeno. Para eles as inovações em curso são viesadas a favor de ocupações marcadas por especialização em conhecimentos técnicos e tecnológicos. Em sua perspectiva, o poder público terá a missão de potencializar os ganhos das inovações e de minimizar riscos associados ao desemprego estrutural.
Do ponto de vista histórico, os ciclos passados de disseminação de inovações tecnológicas, nas assim-chamadas revoluções industriais, destruíram determinados tipos de ocupação, mas criaram outras, sendo o resultado líquido final claramente positivo em termos de criação de ocupações. Como demonstram Korinek e Stiglitz, no passado tais inovações contribuíram para a redução das desigualdades, na medida em que a dinâmica combinada de urbanização e de industrialização gerou inúmeras oportunidades de absorção de mão de obra com menor escolaridade. No contexto de disseminação de direitos sociais e de políticas de inclusão nas áreas de educação, saúde, seguridade social, previdência etc., foi possível criar uma vasta camada de segmentos de trabalhadores sem nível de educação superior e que usufruíam de bons salários e de condições gerais de vida que melhoravam a cada nova geração.
As raízes históricas e políticas desta ideia antecedem em muito os dilemas atuais. Ungo Gentili e seus coautores (“Exploring Universal Basic Income”, 2020) apontam que o primeiro trabalho que defendeu a ação estatal para aliviar a pobreza por meio de transferência de renda foi feito por Juan Luis Vives, em 1525 (“De pauperum subventione. Sive de humanis necessitatibus libri II”). Vives, filósofo e professor de Oxford, viveu seus últimos anos na cidade belga de Bruges. Lá ele testemunhou os efeitos do cercamento das terras comuns sobre a ordem social. A migração forçada e a pobreza urbana, frutos daquele processo, o inspiraram na defesa do uso de recursos do Tesouro local para financiar o alívio da pobreza. O seu trabalho acabou por influenciar as primeiras leis de amparo à pobreza na Inglaterra (“British Old Poor Law,1601).
Thomas Paine (“Agrarian Justice”, 1797) propugnava o pagamento de um montante fixo de renda para todos os cidadãos adultos. Já o socialista belga Joseph Charlier (“Solution du Problème Social ou Constitution Humanitaire”, 1848) apostava na mesma estratégia, que seria financiada pela tributação da propriedade rural. A garantia de renda mínima foi defendida por movimentos da defesa dos direitos civis nos Estados Unidos a partir da década de 1960, tanto por lideranças das comunidades afrodescendentes, notoriamente por Martin Luther King Jr. e James Boggs, quanto pelo emergente movimento feminista. Além do trabalho de Ungo Gentili no Banco Mundial, Juliana Bidadanure (“Justice Across Ages”, 2021), professora de Filosofia e Política da Universidade de Standford, desenvolveu um estudo profundo sobre a evolução das ideias de justiça e de igualdade, bem como das políticas estruturadas para promovê-las. Ela mostra que a ideia da RBU se coaduna com as mais diversas tradições filosóficas, políticas e econômicas.
James Meade (“Liberty, Equality and Efficiency”, 1964), um dos herdeiros intelectuais de John Maynard Keynes, e ganhador do Prêmio Nobel em Economia, passou a indicar, já nos anos 1930, a necessidade de redistribuir a riqueza, que é gerada socialmente e entre as distintas gerações, por meio do pagamento de “dividendos sociais”. Meade denominou este mecanismo de “renda cidadã”. Ideia semelhante foi adotada e aprimorada por Anthony Atkinson, um ex-aluno de Meade. Atkinson chamou o seu modelo de RBU de “renda de participação”. Esta, por sua vez, deveria complementar (e não substituir) os benefícios sociais já existentes. Thomas Piketty (“O Capital no Século XXI”), que trabalhou com Atkinson, elabora suas políticas de inclusão no mundo contemporâneo a partir da mesma perspectiva: manutenção dos ganhos associados ao processo de inclusão do século XX, com introdução de mecanismos mais robustos para a distribuição da propriedade no conjunto da sociedade (Capital and Ideology, 2020).
Se a inclusão social por meio do ativismo estatal e da redistribuição da riqueza estava no centro das propostas de matiz socialdemocrata, a tradição neoliberal concebeu a sua própria versão na forma de “imposto de renda negativo (IRN)”. Idealizado por Milton Friedman (“Capitalism and Freedom”, 1962), um dos economistas mais importantes de sua geração e laureado com o prêmio Nobel de Economia em 1976, um ano antes do que James Meade, o IRN seria uma alternativa para reduzir a interferência do Estado na sociedade.
Para libertários como Friedman e Hayek, o Estado de Bem-Estar Social era tão perigoso, se não mais, do que o socialismo soviético. Isso porquê, nas décadas que se seguiram à crise de 1929 e, principalmente, a Segunda Guerra Mundial, criou-se um consenso de que o Estado teria o dever de estabilizar o ciclo econômico, garantir o pleno emprego e ampliar direitos sociais e oportunidades. Por decorrência, novas agências governamentais e instrumentos de política econômica e social foram desenvolvidos. A máquina pública cresceu em diversidade, complexidade e passou a exigir um leque amplo e qualificado de servidores. Os gastos públicos subiram, assim como a necessidade de financiamento por meio de novas formas de impostos.
Os libertários argumentam que as boas intenções de se promover justiça social através do Estado acabariam por gerar o efeito contrário, ou seja, reduziriam os espaços de autonomia dos indivíduos, os incentivos para inovar e trabalhar e, assim, a eficiência do sistema econômico. O IRN seria uma solução menos pior do que as demais políticas sociais, pois não dependeria de uma estrutura estatal ampliada. Bastaria definir um nível de renda adequado à sobrevivência de indivíduos e, no caso dos que não atingirem tal patamar, devolver a diferença entre a renda corrente e a ideal. Ao invés de “pagar impostos”, os mais pobres receberiam um benefício direto do Estado. O uso desses recursos seria livremente determinado pelos indivíduos. Com isso, o poder público não seria mais obrigado a prover diretamente bens e serviços como educação, saúde, seguridade, moradia etc. A mercantilização completa da vida estaria garantida neste arranjo de IRN.
Se os robôs e a inteligência artificial vão tornar o trabalho físico redundante, como sugerem Musk e outros bilionários da Gig Economy, a RBU não será a bala de prata que resolverá todos os problemas de manutenção da coesão social nas próximas décadas. A ameaça à estabilidade em sociedades maduras deixou de ser uma especulação. O avanço de movimentos antiliberais em meio ao desemprego estrutural, a queda nos salários reais, as desigualdades crescentes e a radicalização política têm sido fortes o suficiente para perturbar o sono dos ricos.
Na era neoliberal, os ricos e seus ideólogos apostaram no desmonte do Estado de Bem-Estar Social e na liberdade plena nas decisões privadas de acumulação de riqueza. Os resultados desta estratégia superaram em muito as suas expectativas: os ricos se apropriaram de parcelas crescentes da riqueza socialmente produzida, as classes médias foram esmagadas e os pobres mantidos em seu lugar. Pensar que a RBU garantirá per se um futuro melhor poderá ser uma ilusão perigosa. Distribuir algumas centenas de dólares todo o mês, mesmo que para contingentes populacionais crescentes, não produzirá sociedades mais coesas e justas e, tampouco, economias capitalistas funcionais. Como disse Warren Buffet, o guru das finanças, o mundo viveu uma guerra de classes na era neoliberal, onde os ricos venceram. Este desenho de sociedade segue presente e tende a florescer com as novas tecnologias da revolução digital.
[1] Ver: “Digital automation and the future of work, 2021”
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Os ricos e a Renda Básica Universal. Artigo de André Moreira Cunha e Andrés Ferrari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU