Professor analisa conjuntura política desde a prisão de Queiroz, os impactos da pandemia e ainda discute temas como os movimentos das esquerdas e possibilidade de uma renda universal
Na metáfora do ringue, quando o lutador chega nas cordas a situação é complicadíssima. Não perdeu a luta, mas precisa de uma reação rápida, senão vai das cordas à lona. Para o professor Rudá Ricci, o governo Bolsonaro está nesse movimento não só para evitar a derrota, mas para salvar a própria pele e a de seu clã. E por isso passa, digamos, a rever algumas promessas de campanha. “Já faz acordos com o Centrão – para não ser surpreendido por um processo de impeachment – e, agora, baixou o tom com o Supremo Tribunal Federal - STF e Tribunal Superior Eleitoral - TSE, demitindo o ministro da Educação e hasteando a bandeira branca”, observa, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Segundo Rudá, a prisão de Fabrício Queiroz é um dado importante que muda e que tem potencial para mudar ainda mais o cenário político. “Um advogado conhecido dizia que o pior oponente em ações judiciais é aquele que nos conhece muito: cônjuge ou sócio. E é por aí que pode emergir a figura da esposa de Queiroz”, destaca. Mas o cientista social reconhece que esse não é o único fator que pode explicar a ‘decepção’ de parte do eleitorado do presidente. Para ele, o que pesa ainda mais são as ações diante da pandemia. “A falta de humanidade, de solidariedade e sua incompetência técnica, alterando ministros da saúde em meio ao que deveria ser um esforço de guerra, vem maculando profundamente a sua imagem”, analisa. E acrescenta: “há mais um dado importante: a grande maioria dos bolsonaristas revela muito medo de ser contaminada pela covid-19”.
Nessa entrevista sobre diversos pontos da conjuntura, Rudá ainda analisa os movimentos da esquerda nacional. “A esquerda partidária está absolutamente inerte, criando factoides para indicar que ainda permanece viva”, avalia. No entanto, enquanto vê uma parlamentarização da esquerda que ainda tenta assimilar as derrotas, observa que pode vir uma outra oposição ao governo e suas lógicas. “O que percebo é que a esquerda vigorosa brasileira não está nos partidos, mas nas organizações populares e movimentos sociais”, salienta.
Por fim, ainda avalia o debate da renda universal, trazido novamente à tona diante da emergência da pandemia. Para ele, “a discussão da renda universal retoma um projeto universalizante”. Porém, “não avança em termos de controle da sociedade – ou das populações beneficiadas – sobre a própria aplicação dessa política”. “Ainda temos no Brasil esta tutela social que diminui os cidadãos como mandantes dos cargos eletivos”, conclui.
Rudá Ricci (Foto: Ricardo Machado/IHU)
Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É presidente do Instituto Cultiva, cujo programa Comunidades Educadoras que criou acaba de receber distinção da Unesco como programa educacional mais exitoso do Brasil, figurando entre 16 experiências exitosas do mundo. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004) e Conservadorismo político em Minas Gerais: os oito anos de governo Aécio Neves (Editora Letramento, 2017), entre outros.
IHU On-Line – Como o senhor analisa o governo de Jair Bolsonaro e a conjuntura política nacional pós-prisão de Fabrício Queiroz?
Rudá Ricci – Um governo nas cordas que está recuando na maioria de suas promessas de campanha. Já faz acordos com o Centrão – para não ser surpreendido por um processo de impeachment – e, agora, baixou o tom com o Supremo Tribunal Federal - STF e Tribunal Superior Eleitoral - TSE, demitindo o ministro da Educação e hasteando a bandeira branca. As defecções do campo bolsonarista se multiplicam semana após semana e a linha de frente armada – como o grupo dos 300 – está sendo objeto de prisões, como os casos de Sara Winter e Fabrício Queiroz.
IHU On-Line – Fabrício Queiroz seria ‘um novo’ PC Farias? Que relação podemos fazer da conjuntura que levou à queda de Fernando Collor com o atual cenário da política nacional?
Rudá Ricci – Eu diria que está mais para Pedro Collor. Só não está certo se acabará se sentindo traído e, assim, delatar tudo o que sabe a respeito de ilícitos eventualmente cometidos por um ou outro membro da família Bolsonaro. Um advogado conhecido dizia que o pior oponente em ações judiciais é aquele que nos conhece muito: cônjuge ou sócio. E é por aí que pode emergir a figura da esposa de Queiroz.
IHU On-Line – Que impacto o caso Queiroz e a possível denúncia que o Ministério Público do Rio de Janeiro fará contra Flávio Bolsonaro deve ter sobre Jair Bolsonaro? O presidente mudou o tom depois desse caso?
Rudá Ricci – Uma pesquisa recente realizada pela socióloga Esther Solano, da Universidade Federal de São Paulo - Unifesp, identificou que parte importante dos ex-bolsonaristas e bolsonaristas decepcionados com o presidente distingue o perfil de seus filhos – denominados de “mimados” e “moleques” – com o de Jair. Portanto, não há dúvidas que vai compor uma narrativa de decepção, mas não há indícios de que causará um dano, digamos, estrutural à sua imagem pública.
Não há dúvidas que vai compor uma narrativa de decepção, mas não há indícios de que causará um dano, digamos, estrutural à sua imagem pública – Rudá Ricci
IHU On-Line – Nos últimos dias, tem repercutido a declaração de arrependimento da escritora Lya Luft, que assumiu ter votado em Bolsonaro. O que este episódio revela?
Rudá Ricci – Revela não necessariamente um arrependimento, mas uma forma de salvar a imagem pública. Primeiro, para que uma personalidade das letras vem a público para falar de uma eleição? O que sua opinião pode, de fato, alterar o jogo político? Parece mais um caso de expiação para limpar seu erro original. No mais, quem analisar as opiniões de Lya Luft entenderá que não se trata exatamente de uma mudança de princípios políticos. Acho que revela mais sobre o degelo da popularidade de Jair Bolsonaro que uma tomada de consciência.
IHU On-Line – Em que medida as posições de Bolsonaro diante da pandemia podem representar uma mudança naqueles que foram seus eleitores?
Rudá Ricci – Esta parece ser uma causa importante, também registrada pela pesquisa recente de Esther Solano. A falta de humanidade, de solidariedade e sua incompetência técnica, alterando ministros da saúde em meio ao que deveria ser um esforço de guerra, vem maculando profundamente a sua imagem. Os decepcionados sugerem que Jair perde foco o tempo todo em querelas secundárias. Há mais um dado importante: a grande maioria dos bolsonaristas revela muito medo de ser contaminada pela covid-19.
IHU On-Line – O que a saída do ministro Abraham Weintraub revela sobre o governo Bolsonaro? Que relações podemos estabelecer entre essa e a saída de outros ministros?
Rudá Ricci – Primeiro, que ele está recuando e está realmente temendo uma reação forte do STF que poderá, inclusive, derrubá-lo. Segundo, que a ala “ideologizada” e escatológica do governo começa a perder força. Com os militares não houve sucesso, tampouco, mesmo com a coordenação operacional do general Braga Netto. Como se espera uma crise social de amplo espectro no Brasil em dois ou três meses, ou Jair Bolsonaro redefine os contornos de seu governo ou estará ameaçado por forte instabilidade política e social.
IHU On-Line – A ala militar do governo já dá sinais de cisão com o presidente? Por quê? Qual o maior temor dos militares governistas?
Rudá Ricci – Não há indícios de cisão, mas de desconforto progressivo. O problema é que os militares avançaram em demasia no ingresso na vida política nacional. Vai se cristalizando a certeza que não são preparados para governar o país. Se recuam neste momento, o que lhes restará é, possivelmente, o ostracismo político. Como o poder é o maior afrodisíaco que se tem conhecimento, imagino que farão contorcionismo para permanecerem onde estão. Com um presidente enfraquecido, podem se tornar o arrimo político de Jair Bolsonaro.
IHU On-Line – Quais as questões políticas que estão por trás da nomeação de Carlos Alberto Decotelli para o Ministério da Educação?
Rudá Ricci – Uma tentativa de acenar para o fim das provocações retóricas da ala aloprada do ministério. Um negro, que acaba de anunciar uma agenda técnica. Evidentemente que as lideranças educacionais já estão escoladas. Mas, não é exatamente a elas que a sinalização do presidente se destina, mas ao Congresso Nacional e ao judiciário.
IHU On-Line – Algumas pessoas apontam que a adesão a Bolsonaro entre militares da ativa é pequena, mas que tem crescido entre policiais militares nos estados. Como o senhor interpreta esse cenário?
Rudá Ricci – Uma dedução estéril. Desde quando PMs tiveram peso nacional depois de 1930? Não vejo nenhuma alteração importante de cenário a não ser a nitidez do perfil ideológico dos deputados eleitos por esta base.
IHU On-Line – Que relação podemos fazer com os indícios de ligações da família Bolsonaro com milícias?
Rudá Ricci – Se se confirmar, estaremos na direção do que se tornou a Colômbia, onde as milícias tomaram conta de territórios e parte da política nacional. Lembremos que as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC) formaram um perigoso grupo paramilitar de extrema direita, vinculado ao tráfico de drogas. Seu poder maior girou entre 1997 e 2006. A ONU estima que as AUC foram responsáveis por 80% dos assassinatos de civis durante esse período. Chegaram a ter vínculos com militares das forças armadas da Colômbia e recrutaram 20 mil milicianos.
A partir de 2006, a AUC foi sucedida pelos Black Eagles e outros grupos paramilitares. No final de 2019, o líder da oposição venezuelana, Juan Guaidó, foi flagrado ao lado de dois membros de uma das milícias da Colômbia, denominada Los Rastrojos, o que indica os vínculos estreitos das milícias em nosso continente. Lembremos que o Comando Vermelho chegou a contratar ex-guerrilheiros da Unita (grupo guerrilheiro de direita de Angola, que recebeu ajuda do governo norte-americano) para compor o braço armado desta organização do tráfico carioca.
Se comprovada esta relação das milícias com a família Bolsonaro, saberemos qual o objetivo real do governo.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta as recentes pesquisas que avaliam o governo Bolsonaro?
Rudá Ricci – Como uma confusão geral metodológica em meio à pandemia. Há dois institutos que indicam que o apoio ao governo estabilizou em 30% e três institutos indicando que caiu para 21% a 26%. O Atlas Político publicou uma nota técnica criticando o que denominou de erros técnicos do Datafolha. Como cientista, não posso me fiar pela última pesquisa publicada, mas pela série histórica. E a série indica queda de popularidade e apoio do governo federal.
IHU On-Line – Qual a sua leitura acerca do Judiciário brasileiro, o mesmo da Operação Lava Jato e que agora avança sobre o governo Bolsonaro pela investigação contra fake news?
Rudá Ricci – Há pouco mais de um mês, fui informado por uma fonte importante de Brasília que o STF se preparava para um enfrentamento duro com Jair Bolsonaro. Avaliavam que ele desafiaria o judiciário. Parece que a preparação da maior Corte brasileira foi realmente bem organizada.
IHU On-Line – Quais são as falhas da esquerda que permitiram o avanço do bolsonarismo? A esquerda hoje já superou essas falhas e é capaz de fazer frente e responder ao bolsonarismo?
Rudá Ricci – A esquerda partidária está absolutamente inerte, criando factoides para indicar que ainda permanece viva. Há várias causas para isso. Uma delas é o que denomino de estresse pós-traumático em virtude do impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Não conseguiu, ainda, admitir que esta sequência se deveu aos seus erros de não saber disputar valores e aumentar a formação e organização popular enquanto dirigia o Estado brasileiro. Esta parcela da esquerda gira ao redor do fatalismo e derrotismo diário.
Há, ainda, uma inércia em virtude da tomada da direção dos partidos pela ala parlamentar, tornando a esquerda excessivamente “parlamentarizada”, ou seja, aquele estilo em que se adota uma agressividade retórica e uma prática dócil e negociadora. Mas, o que percebo é que a esquerda vigorosa brasileira não está nos partidos, mas nas organizações populares e movimentos sociais. Sob a liderança do Papa Francisco, a ala progressista da igreja católica volta à tona, temos várias ações solidárias promovidas por sindicatos de trabalhadores e organizações deste campo popular. E é a solidariedade a porta de entrada da ação da esquerda brasileira na vida dos brasileiros mais pobres e marginalizados. É por aí que ficará nítida a diferença, para trabalhadores e mais pobres, entre quem é de esquerda e quem é de direita.
A esquerda parlamentarizada virou, inclusive, chacota nas redes sociais em virtude da profusão de notas públicas, petições online e lives.
IHU On-Line – O que tem nos impedido de pensar o Brasil para além dessas questões conjunturais?
Rudá Ricci – Capacidade intelectual, distanciamento da disputa eleitoral e visão estratégica. O imediatismo eleitoreiro se circunscreve à tática, mas não à estratégia. Portanto, sabemos como comover, mas não como mudar o país. Na prática, não se sabe exatamente como governar – ou apresentar uma nova forma de governar – depois que se ganha uma eleição. A mesmice passa a ser a tônica. Esta situação acaba por me fazer recordar de uma conversa que tive com lideranças socialistas francesas. Quando lhes perguntei o motivo para os socialistas patinarem na França, a resposta foi: “não soubemos nos diferenciar da direita”.
IHU On-Line – Há quem avalie que a Constituição se tornou uma letra morta desde o seu nascimento, não sendo respeitada nos governos que a sucederam. Além disso, hoje é possível observar que a democracia não é um valor incondicional para a nação e tampouco o republicanismo. Como resgatar a Constituição e esses valores depois do descrédito com a política e, em especial, com a esquerda e a extrema direita?
Rudá Ricci –Quem avalia assim não tem o pé na realidade. Aliás, este é o discurso da direita brasileira desde a segunda metade dos anos 1990. É evidente que a Constituição Federal continua um divisor de águas. Caso contrário, para que a atacar tanto?
Estamos vivendo um combate muito agressivo sobre os valores e ideário público em nosso país. Veja como se tenta avançar de qualquer maneira em propostas antinacionais e privatistas mesmo durante a pandemia, em movimentos surdos, sombrios, como esta recente votação sobre o marco do saneamento nacional. Não houve qualquer preocupação em discussão pública ampla em um tema tão importante para o equilíbrio e a paz social no Brasil. Tão importante que deveria ser submetido a um referendo nacional.
IHU On-Line – O que sobrou de junho de 2013 hoje, sete anos depois?
Rudá Ricci – A angústia de saber que a qualquer momento aquele tipo de manifestação arrebatadora poderá retornar. Ninguém atento do mundo político brasileiro consegue esquecer 2013. Pior para a esquerda parlamentar que rejeitou 2013 equivocadamente. Ali poderia ter se formado uma onda progressista de transformação do processo decisório da política nacional. Mas, acabou por rejeitar uma esquerda não-lulista (mais anarquista e autonomista) chegando às raias de sugerir que se tratava de um movimento terrorista. Até treinamento de PMs e Polícia Federal em campo de mercenários norte-americanos (Blackwater), o governo federal e alguns estaduais patrocinaram, dado o medo de que 2013 continuasse em 2014.
Conclusão: destruíram a possibilidade de uma novidade na política nacional e abriram as porteiras para a extrema direita.
IHU On-Line – Hoje está em discussão a possibilidade de instituir uma renda universal emergencial no Brasil. Como o senhor vê essa proposta neste momento?
Rudá Ricci – Importante para redefinirmos o eixo das políticas públicas da área social, mas ainda muito conservadoras em termos políticos. Explico: as políticas focalizadas adotadas por [Antonio] Palocci e sua equipe durante o governo Lula colocaram em segundo plano as políticas universais. Foi um duro debate interno no início de 2003 e os que defendiam as políticas universais – caso de Maria da Conceição Tavares – foram derrotados pelos social-liberais da equipe de Palocci.
A discussão da renda universal retoma um projeto universalizante. Mas, como disse, não avança em termos de controle da sociedade – ou das populações beneficiadas – sobre a própria aplicação dessa política. Ainda temos no Brasil esta tutela social que diminui os cidadãos como mandantes dos cargos eletivos. Lembremos que 70% dos tributos arrecadados no Brasil são oriundos dos brasileiros que recebem até dois salários mínimos mensais e que a sonegação dos mais ricos e empresários chega a 19% do PIB. Somos o segundo país do planeta em sonegação de impostos. Portanto, esta parcela da população deveria definir as políticas da área social por uma questão de justiça. Mas, são apenas objeto, não sujeitos, dessas políticas.