Por: Patricia Fachin | 03 Setembro 2018
O texto da Emenda Constitucional que tem o objetivo de modificar o marco regulatório do saneamento básico é “ambíguo” acerca das diretrizes regulatórias, critica a professora Ana Lúcia Britto, que coordena projetos de cooperação internacional sobre gestão de saneamento ambiental, na entrevista a seguir concedida por e-mail para a IHU On-Line.
A ambiguidade, afirma, ocorre porque a EC propõe tanto a livre concorrência, competitividade, eficiência e sustentabilidade econômica na prestação dos serviços, quanto a cooperação entre os entes federativos. “De um lado, concorrência e competitividade não coadunam com cooperação. De outro lado, é evidente que há um estímulo à privatização. Nos casos de alienação do controle acionário de companhia estatal prestadora de serviços públicos de saneamento básico, isto é, de privatização das CESBs, o controlador comunicará formalmente a sua decisão aos titulares dos serviços de saneamento (municípios) atendidos pela companhia. A anuência da continuidade da prestação pela empresa, agora privatizada, será formalizada por meio de manifestação do Poder Executivo Municipal, que precederá a alienação de controle da companhia”, diz. E adverte: “Este aspecto fere a Constituição: a questão deveria passar por anuência do Legislativo Municipal”.
De acordo com Ana Lúcia, na Lei Federal do Saneamento Básico, os municípios titulares dos serviços poderiam optar pela prestação de serviços por ente público, por meio de um instrumento de cooperação interfederativa, ou convênio de cooperação. A partir da mudança na legislação, explica, “para qualquer novo contrato de prestação de serviços deve ser aberta uma consulta pública, onde podem se propor a prestar os serviços entes públicos e empresas privadas, sendo escolhida a proposta ‘mais eficiente e vantajosa’”. Isso significa, avalia, que “o município não pode escolher priorizar uma prestação pública, perde esse direito de optar livremente pela prestação direta pelo serviço por órgãos ou entidades públicas (inclusive consórcios públicos)”.
Ana Lúcia Britto | Foto: USP
Ana Lúcia Britto é graduada em Geografia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ, mestra em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e doutora em Urbanismo pelo Institut D'Urbanisme de Paris – Université de Paris XII. Atualmente leciona na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-graduação em Urbanismo da UFRJ. Também coordena o Laboratório de Estudos de Águas Urbanas – LEAU.
IHU On-Line – Em que consiste a Medida Provisória assinada pelo presidente Michel Temer no mês passado, para revisar o Marco Legal do Saneamento? Que tipos de mudanças são sugeridas na MP e por que ela surge neste momento?
Ana Lúcia Britto – A emenda tem como objetivo modificar o marco regulatório (Lei 11.445/2007) que regula os serviços de saneamento. Ao mesmo tempo altera também a Lei de Recursos Hídricos na medida em que atribui novas funções à Agencia Nacional de Águas – ANA. Uma primeira questão é por que modificar uma Lei que levou anos para ser construída, passou por amplo debate público para ser aprovada, foi objeto de uma série de emendas no Congresso Nacional, sendo, portanto, um instrumento legal que representou um consenso possível entre os atores do setor (prestadores públicos e privados, estados e municípios, sociedade civil organizada). A lei pode ser aperfeiçoada, mas por que por meio de uma medida provisória, que tem um caráter de urgência, no contexto de um governo cuja legitimidade vem sendo questionada, com forte rejeição da sociedade civil no geral?
Dentre as principais mudanças da MP estão: a centralização da função de regulação na Agência Nacional de Águas, que passa a ser responsável pela instituição normas de referência nacionais para a regulação da prestação dos serviços públicos de saneamento básico; mudanças no instrumento que rege a relação de prestação de serviços entre municípios e empresas públicas como as Companhias Estaduais de Saneamento Básico – CESBs que é o contrato de programa; mudanças no caso de alienação do controle acionário de companhia estatal prestadora de serviços públicos de saneamento básico, isto é, de privatização das CESBs; enfraquecimento do planejamento que era um dos pilares da Lei 11.445/2007.
IHU On-Line – Na sua avaliação, a MP ataca a autonomia dos municípios? Como e por que isso acontece?
Ana Lúcia Britto – Nos marcos da Lei 11.445/2007 os municípios titulares dos serviços poderiam optar pela prestação de serviços por ente público (CESB, ou Consórcio Público), por meio de um instrumento de cooperação interfederativa, que são o contrato de programa (com o prestador público) e o convênio de cooperação (com o estado acionista majoritário da empresa pública). Agora para qualquer novo contrato de prestação de serviços deve ser aberta uma consulta pública, onde podem se propor a prestar os serviços entes públicos e empresas privadas, sendo escolhida a proposta “mais eficiente e vantajosa”. O município não pode escolher priorizar uma prestação pública, perde esse direito de optar livremente pela prestação direta pelo serviço por órgãos ou entidades públicas (inclusive consórcios públicos).
A MP afirma que a titularidade dos serviços de saneamento pelos municípios está restrita às respectivas áreas geográficas do município. Com isso, os municípios que captam água ou lançam esgotos fora de sua área territorial perderão a titularidade, mesmo em municípios fora de aglomerações urbanas e regiões metropolitanas, situação particular de gestão compartilhada, segundo o julgamento do Supremo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.842-RJ.
IHU On-Line – Uma das críticas feitas à MP é que ela permitiria a privatização do saneamento básico no país. De outro lado, a Casa Civil rebate essas críticas, afirmando que a MP não tem o objetivo de privatizar o setor de saneamento, mas ampliar a concorrência de empresas públicas e privadas, mantendo a regulação da ANA na manutenção do serviço. Diante dessas duas interpretações, diria que há problemas no texto da MP, que permite a ambiguidade?
Ana Lúcia Britto – O texto da MP é ambíguo já nos seus objetivos quando estabelece no artigo X § 2º que “as diretrizes regulatórias para o setor de saneamento básico estimularão:
I – a livre concorrência, competitividade, eficiência e sustentabilidade econômica na prestação dos serviços; e
II – a cooperação entre os entes federativos”.
Não está claro que livre concorrência e competividade na exploração de um serviço público — que deve ser acessível a todos, mesmo à população de baixa renda com baixa capacidade de pagamento — sejam caminhos para promover a universalização do acesso e devam orientar as diretrizes regulatórias.
De um lado, concorrência e competitividade não coadunam com cooperação. De outro lado, é evidente que há um estímulo à privatização. Nos casos de alienação do controle acionário de companhia estatal prestadora de serviços públicos de saneamento básico, isto é, de privatização das CESBs, o controlador comunicará formalmente a sua decisão aos titulares dos serviços de saneamento (municípios) atendidos pela companhia. A anuência da continuidade da prestação pela empresa, agora privatizada, será formalizada por meio de manifestação do Poder Executivo Municipal, que precederá a alienação de controle da companhia.
Este aspecto fere a Constituição: a questão deveria passar por anuência do Legislativo Municipal. O Artigo 11 da MP elimina também a participação do Poder Legislativo nas decisões sobre a subdelegação dos serviços; o texto afirma que o prestador do serviço de saneamento, com a autorização do titular, poderá subdelegar o objeto contratado por intermédio de ato do Poder Executivo. Em outros países, como na Europa, esse tipo de mudança passaria por uma Consulta Pública. Da forma como está, facilita a privatização das Companhias Estaduais de Saneamento.
Da mesma forma, ao abrir uma concorrência obrigatória para a prestação de serviços, a MP prejudica as Companhias Estaduais, que operam na lógica do subsídio cruzado. Uma empresa privada pode oferecer contratos atrativos para municípios com infraestrutura instalada e capacidade de pagamento. Esses municípios, optando por romper com a CESBs, fazem com que essas companhias fiquem apenas com uma maioria de municípios deficitários, quebrando o equilíbrio econômico da gestão regionalizada. Assim a MP oferece ao setor privado a possibilidade de operar apenas os municípios onde é possível obter lucro.
IHU On-Line – Por que, na sua avaliação, o saneamento básico deve ser realizado pelo Estado e não pelo setor privado? Quais as vantagens dessa opção?
Ana Lúcia Britto – Porque entre os serviços de saneamento básico estão o abastecimento de água e o esgotamento sanitário, que são serviços essenciais prestados na lógica de monopólio (existe apenas um prestador, diferente da telefonia, por exemplo) e no Brasil ainda não há serviços universais. Os usuários só têm um prestador de serviço, o que gera uma dependência em um país com uma fraca tradição de regulação pautada pelo interesse público (vide a Agência Nacional de Saúde – ANS que regula os planos de saúde, a regulação das concessões das rodovias, muitas em péssimo estado, a permeabilidade das agências reguladoras a interesses políticos). Ao indicar a ANA como órgão que vai emitir normas de referência nacionais, a MP não resolve o problema da cultura político-administrativa brasileira, forte permeabilidade aos interesses privados e fraco controle social.
Para a questão da universalização, é necessário que o que é arrecadado nas tarifas de prestação de serviços, através de usuários industriais ou comerciais, que pagam mais, seja revertido em investimentos para a universalização. Isso só é possível em um modo de gestão que não vise o lucro e que seja controlado pelo poder público, com forte fiscalização da sociedade. Uma outra falácia é que o setor privado vai investir massivamente recursos próprios no setor. O que se vê hoje é que as empresas privadas investem majoritariamente com recursos públicos, oriundos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT. São recursos onerosos, mas os juros são baixos, retorno de longo prazo, o que torna esse investimento mais interessante do que mobilizar recursos próprios.
IHU On-Line – Qual é o quadro geral dos quatro pilares do saneamento básico: abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, coleta e disposição final de resíduos sólidos e drenagem urbana? Ainda nesse sentido, que avaliação geral faz dos 11 anos da promulgação da Lei do Saneamento Básico no atendimento desses quatro pilares?
Ana Lúcia Britto – As bases estão no texto da Lei 11.445/2007: qualificação da gestão pública, planejamento, controle social e regulação da prestação dos serviços e investimentos públicos vinculados aos municípios que coloquem em prática essas bases na gestão do serviço de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto, coleta e disposição final de resíduos sólidos e drenagem urbana.
Entre 2007 e 2017 podem ser identificados avanços e retrocessos. Os avanços estão na prática do planejamento; com a obrigatoriedade dos Planos Municipais de Saneamento Básico – PMSBs para acessar recursos do governo federal, uma parte importante dos municípios construíram pela primeira vez seus planos municipais. O problema é que o prazo para construção desses planos foi sendo sucessivamente adiado.
Com o PAC 1 e o PAC 2, durante os governos Lula e Dilma, os investimentos em saneamento básico foram significativamente ampliados, mesmo considerando o tempo longo de execução dos projetos, e projetos inconclusos. Isto demonstra que não basta disponibilizar recursos; existe necessidade urgente de programas que venham a fortalecer a capacidade de planejamento e gestão dos agentes públicos responsáveis pela prestação dos serviços na maior parte das cidades do país. Assim, um grande desafio para o setor é a ampliação da capacidade de gestão dos titulares, de maneira que estejam habilitados e qualificados para prestar serviços de saneamento básico, que sejam necessariamente planejados, regulados, fiscalizados e submetidos ao controle social.
No nível nacional um avanço significativo é a aprovação do Plano Nacional de Saneamento Básico - Plansab, por decreto, em dezembro de 2013, reforçando o caráter estratégico das medidas estruturantes, aquelas que fornecem suporte político e gerencial à sustentabilidade da prestação dos serviços, envolvendo o aperfeiçoamento da gestão em todas as suas dimensões. Além disso o Plansab estabeleceu um cronograma de gastos e metas a serem cumpridas com vistas à universalização, tendo como horizonte o ano de 2033. No entanto, o governo não respeitou o volume de investimentos a serem aplicados, estabelecido no plano.
O governo Temer tem sido extremamente negativo para o setor. A Emenda Constitucional 95, do teto do gasto público por 20 anos, inclui cortes profundos nos recursos para as áreas sociais, incluindo a de saneamento básico. Já em 2017 e 2018 os dados do MCidades indicam o menor orçamento do saneamento básico desde a criação da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental – SNSA/Ministério das Cidades. O mesmo governo promoveu o desmonte das estruturas de controle social da política pública: em junho de 2017, através do decreto 9.076/2017, interrompeu o ciclo de Conferências das Cidades e desestruturou o funcionamento do Conselho.
IHU On-Line – Alguns especialistas na área de saneamento básico advertem que o Brasil não conseguirá universalizar o acesso ao saneamento básico até 2033, porque o investimento na área tem sido da ordem de oito bilhões de reais, quando precisaria ser de 15 bilhões até 2033. Concorda com esse tipo de análise? O que tem dificultado o investimento no setor?
Ana Lúcia Britto – Evidentemente a crise econômica reduz a capacidade de investimentos do governo federal, tanto via Orçamento Geral da União – OGU quanto via recursos onerosos. Em contexto de crise econômica os recursos do FGTS tendem a diminuir. No entanto, a universalização do saneamento não está sendo assumida como prioridade. Dentre os inúmeros gastos do governo federal, educação, saúde e saneamento deveriam ser prioritários e blindados de cortes. As consequências do desinvestimento podem ser desastrosas. Estudos divulgados recentemente sobre dados de 2016 mostram que pela primeira vez houve um aumento da mortalidade infantil, refletindo o impacto negativo da recessão econômica, do aumento da pobreza e dos cortes em políticas sociais. Entre estas está a redução dos investimentos em saneamento, que tem relação direta com doenças na faixa de 0 a 5 anos.
IHU On-Line – Como, na sua avaliação, deveria se dar a gestão do saneamento básico no país, de modo a ampliar esse serviço? Ainda nesse sentido, o que falta para ampliar o saneamento no país como um todo?
Ana Lúcia Britto – Falta assumir o saneamento básico como prioridade, assumindo as estratégias do Plansab com as suas bases essenciais: garantia de um fluxo contínuo de recursos públicos, qualificação dos prestadores públicos, reforço da regulação e do controle social.
IHU On-Line – O Marco Legal do Saneamento precisa de algum tipo de revisão?
Ana Lúcia Britto – Na minha perspectiva, o que precisa ser reforçado no marco legal é a obrigatoriedade de controle social, a ampliação da discussão do modelo de tarifas sociais ou outros mecanismos que permitam que os que não podem pagar (essa é uma realidade no Brasil de hoje) tenham acesso aos serviços; a obrigatoriedade de consulta pública em casos de privatização.
A definição de Fundo para universalização com destinação de percentual de recursos do OGU, com critérios adequados para que os prestadores públicos possam acessar esses recursos, seria um outro aspecto a ser incorporado. Vale ainda lembrar a aprovação das PECs que incluem o direito humano à água na Constituição Federal.
IHU On-Line – O saneamento básico está inserido na agenda política do país? Em que grau, na sua avaliação?
Ana Lúcia Britto – Na agenda do atual governo, o saneamento básico tem sido negligenciado. Ele deve ser prioritário nos programas de governo dos candidatos às eleições presidenciais.
IHU On-Line – Nos últimos anos o Brasil enfrentou surtos de doenças como dengue e zika. Que relações estabelece entre essas doenças e os problemas de saneamento básico?
Ana Lúcia Britto – A Organização das Nações Unidas – ONU alertou que para combater o vírus Zika, é necessário que os países melhorem o saneamento básico. O documento destaca que quando as pessoas não têm serviços de saneamento, tendem a armazenar água de maneira insegura, o que favorece a proliferação de mosquitos. Zika, dengue e chikungunya são doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, mosquito que se reproduz em água parada. Serviços de abastecimento de água intermitentes ou inexistentes podem levar ao armazenamento de água de forma não adequada, sendo esse um foco para a proliferação do mosquito.
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Saneamento básico: concorrência e competitividade não coadunam com cooperação. Entrevista especial com Ana Lúcia Britto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU