Por: Patricia Fachin | 08 Setembro 2017
Diante dos “escândalos de usurpação do patrimônio público pela classe política”, a reação comum da população é apoiar as propostas de privatização das empresas de economia mista, mas que estão sob o controle acionário do governo federal, como é o caso da Eletrobras – Centrais Elétricas Brasileiras S.A., diz Ildo Sauer à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Entretanto, optar por esse caminho, defende, nos levará “a um golpe fatal”, porque “quanto mais se transferem esses grupos geradores de lucro para a iniciativa privada, mais poder eles passam a ter para subordinar o sistema político aos seus interesses”.
Na avaliação de Sauer, a privatização do setor de telecomunicações mostra como esses grupos operam no país. “Prometeram ter competição, transparência, tarifa barata e qualidade de serviço. Mesmo beneficiado pela mudança de paradigma tecnológico, que foi a telecomunicação celular por micro-ondas, a tarifa brasileira de telefonia é uma das mais caras do mundo, o serviço é péssimo e a rapidez é fraca”.
Especialista na área de energia, o vice-diretor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo afirma que todos os governos, desde a redemocratização, “sempre se submeteram” aos lobbies das grandes companhias e que o maior problema das empresas estatais está na ação de “vários grupos de interesse que se organizam para promover assaltos das mais variadas formas, via aviltamento de preços, via contratos indevidos, como os revelados pela Lava Jato, com superfaturamento para subsidiar a perpetuação no poder do regime político brasileiro por meio da associação com grupos privados, onde as estatais assumem os riscos e os maiores custos, enquanto os benefícios e os lucros vão sempre para os grupos privados e associados”.
Ex-diretor Executivo da Petrobras, Ildo Sauer propõe que empresas como a Eletrobras poderiam desenvolver um sistema de venda de energia de modo que gerassem uma renda que poderia ser utilizada para financiar serviços públicos, como saúde, educação, reforma urbana. “É preciso restaurar a Eletrobras como instrumento capaz de produzir energia barata, com custo baixo, vendendo a um custo inferior à energia nova, portanto, continuar contribuindo para o crescimento econômico do país, mas uma parte deste valor tem que ser devolvida para a população via investimentos em saúde pública, educação pública, infraestrutura urbana, reforma urbana, reforma agrária, ciência e tecnologia e capitalização das empresas e sua modernização”.
Ildo Sauer | Foto Agência Senado
Ildo Sauer é graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestre em Engenharia Nuclear e Planejamento Energético pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ e doutor em Engenharia Nuclear pelo Massachusetts Institute of Technology. Atualmente é professor titular da Universidade de São Paulo – USP.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Por que a proposta de privatizar a Eletrobras não é adequada para o Brasil? O que está envolvido nesta possibilidade?
Ildo Sauer — Primeiro, eu gostaria de comentar a leitura que se deve fazer da Eletrobras e das outras estatais: elas atuam em áreas consideradas estratégicas em razão da sua natureza econômica e da maneira como elas se apropriam de recursos naturais únicos para convertê-los em riqueza. Existe uma disputa muito clara entre três grupos de interesse que, em geral, são antagônicos, em torno dessas instituições e dos recursos naturais que elas convertem em riqueza.
Os acionistas da Petrobras, que são os únicos que têm voz relativamente elevada na opinião pública mais hegemônica, querem que o valor, em Bolsa, das empresas seja o mais alto possível para que eles possam lucrar com os dividendos mais elevados. Para a empresa ter perspectiva de se valorizar, ela precisa ter uma gestão eficiente e buscar preços mais elevados para seu produto, no caso, a eletricidade. Esse interesse se choca com o segundo, que é o dos consumidores, que buscam ter tarifas cada vez mais baixas. Aliás, a Petrobras foi vítima, recentemente, de uma coalizão comandada pela Fiesp e acatada pela presidente Dilma Rousseff, que esterilizou a geração de riqueza da Eletrobras.
Agora, o terceiro grupo de interesse, que é o mais importante do ponto de vista de política pública, é a população em geral. Parte dela, cerca de dois milhões e meio de brasileiros, sequer tem eletricidade. A Constituição de 1988, no seu artigo 20, diz que os potenciais hidráulicos pertencem à nação, assim como os subsolos, o petróleo e todos os minérios pertencem à nação. Então, se o verdadeiro titular do recurso natural apropriado e transformado em riqueza pelas empresas é o povo, então, ele deveria ser o primeiro beneficiário.
Nesse caso existem três interesses antagônicos: primeiro, os acionistas que querem a valorização da empresa na Bolsa; segundo, consumidores, que às vezes conseguiam lobbies eficazes, buscando tarifas cada vez mais baixas; e terceiro, a população em geral. Se os dois primeiros grupos têm se pronunciado publicamente com maior vigor — o dos porta-vozes e acionistas, que são os acionistas de mercado que fazem programas em jornais, televisão e rádio, e o dos consumidores, que conseguiram construir lobbies de acordo com sua categoria e abocanharam uma parte dos recursos —, o terceiro grupo, que é a população em geral, não tem nada, só tem sido ignorado.
IHU On-Line – O que seria uma alternativa à privatização da Eletrobras?
Ildo Sauer - O que poderia ser feito? Ora, se o Brasil tem usinas já amortizadas, como é o caso da Eletrobras, elas poderiam vender a energia para fazer uma conciliação com os consumidores a um preço não de mercado competitivo — onde seria o custo marginal, isto é, o custo da nova energia que está sendo construída agora, que está acima de R$ 200 megawatt/hora —, mas poderia ficar entre o custo médio e esse custo marginal. Essa diferença entre o custo médio e o preço que seria inferior ao custo das novas usinas poderia ser destinado a um fundo público, que poderia ser usado para financiar educação e saúde públicas, e ainda poderia ser usado para investir nas próprias empresas, como no grupo Eletrobras e também em outras prioridades, como proteção ambiental e ciência e tecnologia. Esta seria a chamada renda hidráulica: a diferença entre o custo de produção e o valor que ela pode atingir no mercado.
Em mercados amplamente competitivos, a energia toda será vendida, se o sistema for privado, pelo custo marginal, isto é, ninguém vai diferenciar se o custo vem de uma usina nova ou de uma usina velha. O custo para fazer nova energia está acima de R$ 200 megawatt/hora — isso só na geração, porque depois, para fechar o valor que o consumidor paga, é preciso adicionar o custo da transmissão e da distribuição, que é tanto maior quanto menor for o consumo, porque existe uma rede mais capilarizada, e as taxas e impostos. Aí chegamos a essas tarifas exorbitantes que temos hoje.
Esses interesses em conflito precisam de uma mediação política e esse deveria ser o papel do governo. Nenhum governo, desde a redemocratização para cá, cumpriu esse papel. Ao contrário, eles sempre se submeteram a um dos dois primeiros grupos de interesse ou aos lobbies. Na verdade, além dos três grupos de interesse que mencionei, poderíamos ainda acrescentar um quarto grupo, que seria um sistema político legítimo. Entretanto, o que tem predominado, na verdade, é a instrumentalização e a apropriação das riquezas que essas empresas podem gerar, pela corporação de políticos, que encrustou dentro da gestão das estatais despachantes de interesses ou fez as empresas aderirem a programas que beneficiam grupos de lobbies. Esse quarto grupo de interesse é escuso, e é o que mais tem se manifestado.
O maior problema das estatais do Rio de Janeiro, sistema Petrobras/Eletrobras, na verdade não está no Rio de Janeiro, está em Brasília, onde os vários grupos de interesse se organizam para promover assaltos das mais variadas formas, via aviltamento de preços, via contratos indevidos, como os revelados pela Lava Jato, com superfaturamento para subsidiar a perpetuação no poder do regime político brasileiro por meio da associação com grupos privados, onde as estatais assumem os riscos e os maiores custos, enquanto os benefícios e os lucros vão sempre para os grupos privados e associados. Se queremos fazer com que a Eletrobras cumpra sua função principal, que seria atender aos interesses da população em geral e gerar riqueza, não tem por que privatizá-la.
O governo Sarney, além de ter incrustado despachantes de interesse nos quadros de gestão, e todos os governos fizeram isso de lá para cá, utilizou o sistema Eletrobras para tentar conter a inflação, no período da hiperinflação; logo, não reajustava os preços e descapitalizou a empresa.
Os governos Collor e Fernando Henrique Cardoso queriam, a todo custo, privatizar a Eletrobras para levar para a iniciativa privada todos esses recursos.
O governo Lula, com sua ministra de Minas de Energia [Dilma Rousseff], criou um assalto ao sistema Eletrobras, ao permitir a descontratação da energia. Como houve uma queda de demanda, a geração de energia das estatais foi descontratada e era vendida pelos preços POP, mas todo mundo sabia, em 2003, que o preço permaneceria baixo, pelo menos até 2008/2009, quando a oferta e a demanda voltariam a se encontrar.
Enquanto havia sobra de energia, o custo marginal da água e da operação do sistema era baixo, estava em R$ 3 ou R$ 4 o megawatt/hora. Depois se colocou um piso de R$ 18, quando o custo médio, calculado pela Agência Nacional de Energia Elétrica - Aneel, era de R$ 109 o megawatt/hora. Os comercializadores passaram a comprar energia pelo preço próximo dos POP, que tinha um piso de R$ 18 megawatt/hora, e revendiam por algo em torno de R$ 60, e todos os consumidores deixavam de pagar o custo efetivo dessa energia, que era da ordem de R$ 109 megawatt/hora, o que gerou uma descapitalização das empresas desde 2003 para cá, estimada por nós em R$ 15 bilhões. Isso foi um “Bolsa Energia”, que é maior que o Bolsa Família, que foi dado pelo governo Lula aos grandes empresários em detrimento da Eletrobras.
Outra coisa foi feita nesse período: as subsidiárias da Eletrobras passaram a ter um papel minoritário, a ter em torno de 49% das cotas das empresas criadas e chamadas de Sociedades de Propósitos Específicos - SPE para construir Belo Monte, as usinas do Rio Madeira — Santo Antônio e Jirau — e uma grande quantidade de parques eólicos. Onde está o papel dessas empresas estatais? Elas vão garantir a compra da energia não vendida em leilão para assumir os riscos e custos e dar suporte ao projeto, que teve sócios privados ou outras empresas de geração de energia ou, principalmente, as próprias empreiteiras. Esse papel de fazer com que as estatais fossem o garantidor do sucesso dos negócios já havia sido experimentado no governo Fernando Henrique, com a Petrobras, que deu garantia para as usinas termoelétricas, no chamado Programa Prioritário Termoelétrico. O governo do PT voltou a repetir aquilo que ele tanto criticou anteriormente com esse modelo de uso assimétrico do poder das empresas estatais para garantir os interesses privados.
O modelo feito em 2004 não deu certo, fracassou porque houve expansão inadequada, contratou-se usinas com custos inaceitáveis. Então, em 2012, a senhora Rousseff, já como presidente, baixou a Medida Provisória 579, que resolveu atender ao lobby comandado pela Fiesp, de passar a renovar as concessões por mais 30 anos, baixando a tarifa para o preço inferior ao custo de operação e manutenção razoável, variando de R$ 7 a R$ 12 megawatt/hora, mais as taxas que são cobradas, o que chegava a uma tarifa média de R$ 30 megawatt/hora para fazer com que essa energia mais barata pudesse amenizar um pouco o custo explosivo das contratações malfeitas ao longo do período dos governos Lula e Rousseff.
Todos os governos dizem coisas boas: o governo Fernando Henrique dizia que tinha que privatizar todas as estatais para reduzir a dívida pública, melhorar a qualidade dos serviços e aumentar a eficiência. O que aconteceu de lá para cá indistintamente: as tarifas médias brasileiras aumentaram 130% acima da inflação medida pelo IPCA; a dívida pública só aumentou; e o Brasil hoje tem a quinta tarifa mais cara do mundo, enquanto tem o melhor parque de recursos naturais. Nesse sentido, o problema da Eletrobras e das suas subsidiárias não está dentro delas em si, está na forma como os governos as têm utilizado e as têm instrumentalizado para atender a maior parte dos interesses escusos, que se chocam com os três interesses anteriores que eu citei, especialmente o terceiro, que é a obrigação de gerar riqueza para a população e devolver alguma coisa para ela.
Lamentavelmente o que a senhora Rousseff fez com a MP foi manter o CNPJ, isto é, o controle das empresas em mãos estatais, mas transferiu toda a riqueza que é gerada lá e manteve a obrigação das estatais de operarem as usinas a um preço inferior ao custo. Isso tudo para atender ao quê? Ao lobby dos grandes empresários, que diziam que as usinas estavam amortizadas, que foram pagas por eles — segundo alegação deles —, esquecendo-se de que eles se beneficiaram ao longo do período todo em ter acesso a recursos naturais, altamente favoráveis, que foram desenvolvidos para gerar energia elétrica a custo barato, o que subsidiou e permitiu o processo de desenvolvimento e de industrialização do país. Portanto, foi um crime contra a economia popular o que a senhora Rousseff fez com a MP.
Agora vem este governo ilegítimo, rejeitado por mais de 90% dos brasileiros, que acha que tem o direito de fazer uma proposta tão radical quanto vender a Eletrobras. E vem o ministro e diz que com isso vai aumentar a eficiência e reduzir a tarifa. É impossível reduzir a tarifa. O que eles querem fazer é o que sempre se fez em todo o mundo quando se privatiza: privatiza-se quando os valores dos ativos são baixos e em seguida dá-se um jeito de valorizá-los.
O que se faz, normalmente, como se fez no Chile e aqui no Brasil, é o seguinte: vendem-se as empresas como se elas fossem operar pelo custo do serviço com um lucro muito baixo, depois cria-se uma mudança na precificação, sai-se dos custos médios, o custo do serviço, para custos marginais e cria-se um lucro enorme que é privatizado. O que está sendo gestado é isso. Por esse motivo me oponho a essa proposta.
É preciso restaurar a dignidade da Eletrobras, que foi destruída pelos governos Sarney, Fernando Henrique, Lula e, especialmente, pelo governo Rousseff. É preciso restaurá-la como instrumento capaz de produzir energia barata, com custo baixo, vendendo a um custo inferior à energia nova, portanto, continuar contribuindo para o crescimento econômico do país, mas uma parte deste valor tem que ser devolvida para a população via investimentos em saúde pública, educação pública, infraestrutura urbana, reforma urbana, reforma agrária, ciência e tecnologia e capitalização das empresas e sua modernização.
O que está em disputa é o valor econômico disso. Entretanto, a água não tem apenas a finalidade de gerar energia. Energia é um fator importante, mas a água tem outros usos múltiplos: as bacias hidrográficas são importantes para controlar as cheias, para a irrigação, a navegação, o abastecimento público e a segurança hídrica de todas as regiões por onde passam esses rios. Esses são fatores de interesse público. Nenhum país sério privatiza suas hidrelétricas. Vamos aos Estados Unidos perguntar se eles privatizaram suas empresas. Eles têm uma capacidade hidráulica instalada próxima à da brasileira. A Tennessee Valley Authority cumpriu um programa extraordinário e importante depois da quebra dos anos 30, no chamado New Deal, quando criou usinas hidrelétricas e depois fez a eletrificação rural, promovendo o desenvolvimento das regiões mais atingidas pela escravidão, que são as do Sul e do Sudeste americano. A meca do capitalismo não privatizou suas hidrelétricas.
Tem outra empresa que fica no Noroeste americano, no estado de Washington, que é a Bonneville Power Administration, que também é pública. Além disso, algumas hidrelétricas dos EUA são operadas por grupos de engenheiros das Forças Armadas Americanas. Lá ninguém ousa privatizar esse tipo de empresa. Nem um governo mais neoliberal, como o de Reagan, ousou privatizá-las. Eles veem o papel fundamental que tem a administração eficiente desses recursos. Mas aqui, um governo de usurpadores, rejeitado pela população e ilegítimo, acha que pode colocar uma “pá de cal” em uma construção que já tem mais de 60 anos.
É preciso lembrar a história da Eletrobras: ela foi fruto de um reflexo do New Deal americano e do desenvolvimento do pós-guerra, onde o governo Getúlio Vargas — democrático, do começo dos anos 1950 — criou um grande plano estruturante para o país, que consistia na criação do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, que depois virou o BNDES, da Petrobras, da Siderúrgica Nacional, da Telebras e da Eletrobras. Todas essas empresas, com exceção da Eletrobras, foram implementadas no governo Vargas, que enfrentou uma oposição enorme dos grupos privados que queriam se apropriar dos recursos energéticos e hidráulicos.
A Eletrobras só foi aprovada no Congresso durante o governo de João Goulart, por causa dessa oposição empresarial, e foi construída a partir de um sistema cooperativo. Se a Petrobras é um sistema único, monolítico, de uma empresa só, o sistema elétrico funcionou muito mais espalhado pelo país inteiro como um sistema cooperativo. Como não havia dinheiro para fazer tudo no governo federal, na década de 1960 e já durante a ditadura, os estados foram incentivados, aqueles que tinham recursos, como o Rio Grande do Sul, a criarem suas próprias empresas. O Rio Grande do Sul criou a Companhia Estadual de Energia Elétrica - CEEE, São Paulo criou várias empresas que depois foram unificadas em torno da Companhia Energética de São Paulo - CESP, Minas Gerais criou a Companhia Energética de Minas Gerais - CEMIG, Paraná criou a Companhia Paranaense de Energia - COPEL.
Mesmo os militares, com todos os problemas sérios que uma ditadura representa, fizeram a Eletrobras progredir, e a partir do governo Sarney passou a haver uma instrumentalização das estatais em favor das classes políticas encrustadas pelos lobbies privados, que estão usurpando o patrimônio que pertence à nação.
IHU On-Line — Diante da apropriação política das empresas estatais, como romper com essa lógica?
Ildo Sauer — Em primeiro lugar, não tem saída. Quando assistimos a esses escândalos de usurpação do patrimônio público pela classe política, o senso comum diz: “privatiza”, “entrega”. Mas isso leva a um golpe fatal. O próprio setor de telecomunicações, que foi privatizado, mostra isso: prometeram ter competição, transparência, tarifa barata e qualidade de serviço. Mesmo beneficiado pela mudança de paradigma tecnológico, que foi a telecomunicação celular por micro-ondas, a tarifa brasileira de telefonia é uma das mais caras do mundo, o serviço é péssimo e a rapidez é fraca. Quanto mais se transferem esses grupos geradores de lucro para a iniciativa privada, mais poder eles passam a ter para subordinar o sistema político aos seus interesses. Se agora eles já são tão poderosos, se passarem a controlar o sistema elétrico e a Petrobras, o petróleo, como eles querem — e já estão controlando parcialmente a mineração —, eles se tornarão oligopólios tão fortes que irão influenciar, definitivamente, o processo político e alavancar a destruição da democracia, que é um contrapeso ao poder econômico.
O que temos visto em relação à conduta desses grupos — estão todos involucrados nesses escândalos — só será agravado. Temos um populismo que ajudou a destruir riquezas, ajudou muito mais aos grandes e aos ricos e deu algumas coisas de retorno aos pobres, como Bolsa Família, algumas universidades e alguns programas na área da educação e da compensação, mas são migalhas se comparadas com os benefícios dados às grandes empresas, especialmente as do setor financeiro, que nunca lucraram tanto quanto agora.
A privatização, além de transferir um recurso único no mundo para um grupo privado muito poderoso, vai criar mais empecilhos à possibilidade de uma restauração democrática. Eu entendo o seguinte: no sistema capitalista que nós temos, com o mínimo de contrapesos, onde houver competição, deixa a iniciativa privada atuar sem problema algum. Entretanto, naqueles setores estratégicos que manejam recursos únicos, como petróleo, gás, minas, tem que haver um programa para o país. O governo parece ser formado por um bando de ratos que está em um Titanic, prestes a afundar, e estão tentando arrancar o resto dos queijos para levar para si e para os seus comparsas.
O ministro diz que a tarifa vai baixar, mas isso é uma mentira que foi desmentida até pela Aneel. Se transferirem esses recursos para a iniciativa privada, esses grupos se tornarão tão poderosos que vão zelar pelos seus interesses e não pelos da população. E não adianta dizer que as agências reguladoras vão sanar e controlar esses grupos. Elas demonstraram claramente que foram criadas, no governo Fernando Henrique e depois nos outros governos, inspiradas no discurso do Banco Mundial, que dizia que se precisava de agências reguladoras para privatizar alguns setores e dar garantias de que as tarifas seriam recompensadoras e rentáveis para os grupos de investidores.
Há agências em Brasília que não cumprem seu papel e não têm apoio político para cumpri-lo, e não são agências de Estado como se apregoou; são subordinados, são capturadas pelos interesses do poder econômico.
IHU On-Line – Caso a Eletrobras seja privatizada, o que seria feito com a Eletronuclear, a Angra III e a Itaipu, que não podem ser vendidas?
Ildo Sauer — A Eletronuclear poderia ser fechada. Embora eu seja, de profissão, engenheiro nuclear, me opus à retomada de Angra III. Hoje se vê por que ela foi retomada: ela custa o dobro de energia eólica ou hidráulica equivalente. Retomaram essa usina para atender ao lobby das empreiteiras, como foi revelado recentemente nas investigações da Lava Jato.
Nós temos suficiente recurso natural no Brasil: 256 mil megawatts de potencial hidráulico, do qual menos da metade foi desenvolvido (120 mil megawatts serão utilizados quando concluírem as obras em andamento). Temos mais de 300 mil megawatts já assegurados pelo setor eólico.
Eu anularia os contratos de Angra III e a deixaria no estado em que está, porque o dinheiro que ainda falta gastar nessa obra permitiria gerar tanta energia quanto irá gerar, a um custo menor do que falta gastar. Eu tenho defendido isso publicamente.
O governo diz que não vai privatizar Itaipu, pois existe um tratado criando dificuldade para isso. Itaipu estará com as dívidas pagas em 2023 e vai estar gerando cerca de 90 milhões de MW/hora/ano, a um custo atual de US$ 40 (média R$120), quando o valor da nova energia seria em torno de R$ 200. E ela vai poder gerar esse valor inteiro, metade para o Paraguai, metade para o Brasil, como lucro líquido. É só descontar o valor da operação e da manutenção, e se terá um gerador de caixa em dinheiro, que poderá ser usado para criar uma grande corporação energética do Conesul. Certamente alguém ficará de olho neste enorme caixa de Itaipu. Mesmo se ela vendesse energia a US$ 40, quando o valor da energia está em torno de 80, ela geraria, por ano, US$ 3,6 bilhões de geração; 1,8 bilhão para cada país. Descontando o custo de operação e manutenção, isso dá R$ 1,6 bilhão por ano de ganho líquido em Itaipu.
Entretanto, do jeito que está o governo, a próxima etapa será se apropriar de Itaipu para atender aos interesses privados, como tem sido a trajetória do país desde que a Família Real chegou ao Brasil, usurpando os recursos naturais e o valor do trabalho dos trabalhadores brasileiros, que continuam em uma situação muito difícil, por uma ausência de um projeto de país que respeite e implemente os interesses da população. Isso se reflete em todos os campos, na mineração, nos recursos hidráulicos e nas telecomunicações.
É possível dobrar o consumo per capita brasileiro — que hoje é um pouco menos de 3 megawatts/hora/ano/habitante, para chegarmos ao padrão europeu, que é cerca de 5 megawatts/hora/ano/habitante —, quando a população irá se estabilizar em 2043 com 220 milhões de habitantes, como prevê o IBGE, usando energia renovável, tendo as térmicas como uma espécie de seguro para períodos de combinações dos períodos eólicos e hidrológicos críticos. Então, nós não precisamos de energia nuclear agora. Temos recurso, temos capacidade tecnológica, temos recursos humanos. O que falta é organização e gestão do sistema. Note que mesmo com a recessão brutal, decrescimento da economia, redução do consumo de energia, permanentemente estamos ameaçados de falta de eletricidade. É que não fizemos usinas suficientes, nem da qualidade e do tipo adequado. E o sistema, do jeito que está sendo gerido, não está dando resposta. A solução não passa por privatizar, passa por restaurar a gestão técnica e profissional, e remover de dentro das estatais esses interesses e lobbies do espectro político e econômico brasileiro.
O simplismo de dizer que com a privatização vai parar de ter corrupção, não gera benefício algum. Primeiro, ao se fazer isso, vai se eleger um novo poder econômico que vai se valer desse poderio econômico para influenciar as esferas políticas de maneira ilegítima. A maioria dos políticos de Brasília foi comprada com dinheiro subtraído das empresas e de órgãos públicos. Depois eles usam esse mesmo poder para se perpetuar, com mais transferências.
Se nós não reformarmos o sistema político, não haverá saída. Durante décadas as empresas foram instrumentalizadas, depauperadas, transferiram riqueza para um grupo ou outro, e agora querem dar um assalto final, privatizar as empresas e transformá-las em instrumento de geração de riquezas, quando elas podem cumprir um papel muito importante para o desenvolvimento e, acima de tudo, podem gerar riqueza para aquilo que o governo diz não ter dinheiro, como saúde pública, educação pública, entre outras prioridades que já citei anteriormente.
IHU On-Line — Qual é a situação fiscal da Eletrobras?
Ildo Sauer — Ela está com problemas sérios porque aceitou aquela prorrogação das concessões, imposta pelo governo Rousseff. Ela tem um ônus e isso tem que ser visto adequadamente. Fizeram uma espécie de licitações e concorrências, onde cada subsidiária da Eletrobras – Chesf, Furnas, Eletrobras e Eletronorte -, se associava a grupos privados para um concorrer com o outro. As Usinas do Rio Madeira - Santo Antônio e Jirau - e Belo Monte são muletas para dar garantias, assumir riscos e dar lucros aos setores privados. Foi isso que os governos Lula e Rousseff fizeram com a Eletrobras.
Agora, não podemos renunciar à nossa capacidade de nos autogovernarmos e mantermos sob o nosso controle essas instituições e, acima de tudo, o recurso natural único que temos.
IHU On-Line — O senhor tem informações de bastidores de quem são os investidores que já estão interessados em uma possível privatização da Eletrobras?
Ildo Sauer — Temer foi à China provavelmente para motivar algum negócio. Agora, eu queria saber o que está por trás disso. Você sabe que em todas as privatizações têm rolado transferências indevidas — para não falar outra palavra que é tão popular. O governo Rousseff cometeu um crime. Em São Paulo havia a maior geradora brasileira. Os tucanos tentaram privatizá-la, mas conseguiram vender só 2 mil megawatts para a Duke Energy e 2 mil megawatts para a AES; 7 mil megawatts ficaram intactos e 5 mil megawatts passaram para o Tesouro Nacional. O que o Tesouro Nacional fez no governo Rousseff? Privatizou as empresas de São Paulo. Foi o PT quem privatizou a empresa para uma estatal chinesa, chamada China Três Gargantas - CTG, a maior usina do mundo, feita com inspiração em Itaipu. Então, os chineses são os primeiros candidatos.
Agora, nunca se sabe: sempre quando começam esses caminhos, já existe um esquema previamente armado. Primeiro armam o esquema, nos bastidores, depois lançam a ideia ao público, para sondar, em seguida inventam um discurso mentiroso para viabilizar um negócio. E os vencedores são sempre previamente escolhidos, como ocorreu no governo FHC nas Telecomunicações e na Vale do Rio Doce.
IHU On-Line — Como essa discussão da privatização da Eletrobras está repercutindo entre os pesquisadores do setor elétrico?
Ildo Sauer — O ambiente está muito difícil por causa da destruição e do desencanto da população com os governos anteriores, especialmente o governo Rousseff. Tem que se dizer: o governo Temer foi gestado dentro dessa aliança espúria que o PT comandou. Quando eles perceberam que a impopularidade da então presidente estava tão elevada que ela não servia mais de mediadora para resolver o conflito com a população, resolveram se desfazer imediatamente dela para assumir diretamente o comando e acelerar a sua sanha apropriadora de recursos.
Muitos pesquisadores se opõem à privatização, como o Roberto Araújo e o Luiz Pinguelli Rosa. Em geral quem aprova a privatização são aqueles que estão ligados ao lobby. Os que estão no governo têm interesses claramente incrustados, inclusive a reforma do setor elétrico que estão gestando tem como finalidade converter o sistema elétrico em um grande cassino, onde se fará aposta sobre o comportamento do vento e da hidrologia. O risco vai aumentar e quando o risco é precificado, o preço da energia aumenta e o ônus é transferido à população. Vão enriquecer consultores e apostadores. Então, o que o governo está fazendo não é só a privatização da Eletrobras, é uma mudança de modelo do setor elétrico. Tem uma medida provisória pronta na gaveta, que não está sendo combatida por ninguém, porque o Congresso não representa o interesse de ninguém a não ser dos seus próprios patrocinadores. A população está órfã. Sobra alguma consciência crítica a alguns meios de comunicação, em geral alternativos, a alguns pesquisadores e a alguns líderes de movimentos sociais, que se opõem a esse assalto. Mas o momento é muito duro, crítico e difícil no Brasil.
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A usurpação do patrimônio público pela classe política e o golpe fatal da privatização da Eletrobras. Entrevista especial com Ildo Sauer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU