10 Novembro 2015
“Nós não estamos numa situação de barbárie social, mas podemos entrar nela muito rapidamente se evoluirmos para uma situação de desemprego aberto de 10%, 12%, 15% da população, se jogarmos na linha da miséria mais alguns milhões de trabalhadores e de famílias, se for criada uma situação de completa ruptura do tecido social, onde tudo possa ser possível”, adverte o economista.
Foto: lentealternativa.blogspot.com.br |
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Delgado analisa a atual conjuntura política, na qual se evidenciam “jogos de chantagem recíproca, em que o PT e o Cunha estão metidos. E o PSDB e o DEM também fazem parte da chantagem, porque eles, ao mesmo tempo, jogam com o Cunha pró-impeachment, jogam para a mídia no sentido de que querem a cassação de Cunha, porém, na realidade, só se interessam pelo impeachment da presidente Dilma”, pontua.
O economista também comenta a proposta política do PMDB, lançada recentemente, sob o título “Ponte para o Futuro”. O documento, contudo, “faz uma ponte para o passado, porque o pressuposto do PMDB é o de que a crise fiscal e a estrutura orçamentária vinculada a direitos sociais e a vinculações constitucionais são a causa principal do desequilíbrio econômico e financeiro e da crise”, avalia. Entre as propostas equivocadas do programa, segundo a avaliação do economista, está a de “desvincular, ou seja, desconstitucionalizar os direitos de saúde e educação, isto é, colocá-los na discussão do orçamento anual. (...) O documento diz que o ajuste fiscal tem elementos conjunturais, erros de política econômica, mas a causa principal é estrutural e tem a ver com as vinculações constitucionais permanentes, que inviabilizam o equilíbrio fiscal. Então é isso que está sendo mirado: é o chamado ajuste estrutural”.
Delgado assinala ainda que a principal causa do desequilíbrio fiscal e financeiro do país é a rolagem da dívida pública, ponto que o documento do PMDB identifica, mas para o qual não propõe outra solução senão a de aumentar os cortes sociais. “Não obstante tudo isso, o documento do PMDB é bastante tímido no sentido de fazer uma reforma monetária e uma reforma da dívida pública para acabar com essa extorsão do sistema financeiro, principalmente em situações de crise como essa, em que toda a proteção cambial, financeira, indexações financeiras etc. é garantida ao sistema. E como não se tem superávit primário, mira-se nos direitos sociais. Com essa estratégia que está posta, há um desastre completo do ponto de vista da igualdade social e não há nenhum cenário de crescimento por conta dessas ações. Aliás, todo o crescimento que estão propondo e sugerindo se baseia na completa liberalização comercial e financeira — por suposto — e na confiança cega das forças de mercado externo como via de salvação da pátria”, critica.
Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como o senhor está acompanhando os desdobramentos da crise política, especialmente a relação de Cunha com a Presidência ou com parte do PT? Há uma relação entre eles tanto para manter Cunha na presidência da Câmara como para impedir o impeachment da presidente?
Foto: Senado Federal
Guilherme Delgado – Primeiro vamos analisar a situação do presidente da Câmara [Eduardo Cunha]. O presidente da Câmara tem um processo iniciado pela Procuradoria Geral da República, em fase de julgamento no Supremo Tribunal Federal, tanto da admissibilidade quanto do mérito, e uma evidência exuberante, do ponto de vista das investigações da Procuradoria do Brasil e da Procuradoria da Suíça, do que foi revelado pelas várias delações premiadas, repetidas e sucessivas em torno dele. Então, a exuberância de indícios contra o deputado Eduardo Cunha é enorme. A outra coisa é o processo de iniciativa parlamentar para julgamento no Conselho de Ética da cassação, que foi tomado por um grupo de deputados, tendo à frente o PSOL e vários partidos, inclusive vários deputados do PT.
O que existe no momento é uma composição na Câmara por razões, não digo nem de conjuntura, mas de chantagem recíproca com a relação à Comissão de Ética. Por temores, receios ou chantagem, o PT oficial não adere a uma ação mais dura na Comissão de Ética para a cassação de Cunha. Agora, o processo na Procuradoria, que está muito bem fundamentado, inclusive já com decisões tomadas pelo Supremo, pelo ministro Teori Zavascki, no sentido de repatriar recursos da conta de Cunha para o Brasil — no pressuposto de que não repatriando cairia a interdição e ele poderia sacar os recursos —, já evidencia uma presunção de criminalidade muito forte. Portanto, Cunha não tem salvação do ponto de vista da institucionalidade jurídica. O que está se discutindo no Congresso são os jogos de chantagem recíproca em que o PT e o Cunha estão metidos. E o PSDB e o DEM também fazem parte da chantagem, porque eles, ao mesmo tempo, jogam com Cunha pró-impeachment, jogam para a mídia no sentido de que querem a cassação de Cunha, porém, na realidade, só se interessam pelo impeachment da Dilma.
Pedaladas fiscais
A proposta de impeachment da Dilma com base em pedaladas fiscais é risível. Não existe criminalidade prevista constitucionalmente para levar ao impeachment com base em “pedaladas”, que é uma expressão que nem existe na linguagem jurídica. O que é “pedalada”? O fato de atrasar um pagamento para um banco público caracteriza um motivo para impedimento? As “pedaladas fiscais” existiram sempre e provavelmente continuarão a existir em um sistema em que é quase impossível cumprir todas as regras constitucionais de caráter orçamentário, financeiro etc., e mais esta, porque tem um conjunto de pagamentos compulsórios na ordem constitucional. Muitas vezes, por exemplo, se deixa de fazer um pagamento previdenciário ou assistencial com base em legalidade constitucional, e isso incide em crime de responsabilidade. Então, muitas vezes a opção do gestor é o mal menor. Portanto, isso precisa ser discutido em outro sentido, de reorganização e de revisão das finanças públicas, e não como crime de responsabilidade.
O TCU não é o poder judiciário. Ele faz um parecer e quem aprecia o parecer é a Comissão de Orçamento do Congresso e depois o Plenário; ou seja, que tribunal emite sentença com base em parecer? O TCU é um falso tribunal; é um órgão de assessoria da Câmara, que não tem poder judiciário e muito menos poder de determinar a revogação do pensamento coletivo de 52% da população com base em uma figura jurídica “pedalada”, que ninguém sabe direito o que é.
“Pedalada fiscal” significa gastos com base em recursos, supostamente de créditos — porque o banco público, ao pagar aquilo que não tem previsão, está concedendo um crédito —, que não estão autorizados pela Lei de Responsabilidade Fiscal, ou seja, não há nenhuma regra constitucional violada. Portanto, não há base jurídica para um pedido de impeachment com base nisso. O fato de eles terem as contas rejeitadas por esse motivo e isso ser considerado um crime de responsabilidade é uma ilação bastante politizada, que não tem fundamento constitucional. As avaliações de Dalmo de Abreu Dallari sobre isso são muito claras, especialmente o artigo específico sobre os crimes de responsabilidade que admitem o impeachment, mas nesse caso não se enquadra de jeito nenhum.
A outra linha pela qual estão tentando o impeachment — que acho mais risível ainda —, é de, por meio de uma ação no Tribunal Superior Eleitoral já julgada, reverter o julgamento para justificar que a presidente Dilma usou recursos das empresas da Operação Lava Jato. Todo mundo sabe que usou, como todos os partidos usaram. Agora, isso não configura crime, ou seja, individualizar o crime que envolve a presidente da República na Lava Jato não tem nenhum indício produzido pela Procuradoria Geral da República — que é quem cuida da investigação — sobre esse assunto. Então, isso é puramente manipulação, não tem fundamento jurídico. No entanto, faz parte desse jogo, onde se jogam milhares de factoides no ar.
O fato é que estamos sendo muito mal informados sobre o que se justificaria em nome do impeachment do ponto de vista jurídico e político. Nós não estamos em um sistema parlamentarista. No parlamentarismo é possível simplesmente tirar o Primeiro Ministro por razões estritamente políticas, porque a maioria parlamentar não gosta do presidente, não concorda etc., ou seja, não tem de haver crime. Mas no caso do presidencialismo tem que haver crime demonstrável, caso contrário, a vontade popular fica totalmente sem resguardo nesse jogo.
“O fato é que estamos sendo muito mal informados sobre o que se justificaria em nome do impeachment do ponto de vista jurídico e político” |
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IHU On-Line - Segundo o Ministério da Fazenda, o governo vai pagar R$ 57 bilhões neste ano para quitar as chamadas pedaladas fiscais (atrasos em repasses) e outras dívidas da União. Como resolver essa questão em relação aos gastos e às dívidas dos Estados? Quais as causas do endividamento e dos problemas fiscais do Estado?
Guilherme Delgado – Essa é uma questão que tem muito a ver com a situação e o ciclo econômico. Quando se tem um ciclo de crescimento, as fontes fiscais associadas ao crescimento crescem e acomodam essa tensão entre despesa e fontes de receita. Então, a crise fiscal não é inerente nem independente do ciclo econômico e, por sua vez, tem também componentes estruturais, mas temos de fazer a leitura a partir de uma perspectiva. Tem a perspectiva ultraconservadora, que considera como componentes estruturais as despesas públicas, aquilo que a Constituição protege na linha dos direitos sociais vinculados constitucionalmente — a despesa orçamentária. De outro lado, tem a visão — com a qual estou muito mais de acordo — de que existe um ordenamento e uma regra tributária que preexiste à crise fiscal, cuja natureza pode ser, muitas vezes, a alimentadora dessa crise.
Por exemplo, todo o sistema tributário que está centrado em salários e despesas de consumo, como é o caso brasileiro, é pró-cíclico. Isto é, no momento em que o ciclo econômico declina, as receitas públicas declinam mais vertiginosamente, e aparece um problema de déficit, como se fosse uma coisa completamente estapafúrdia, mas isso tem a ver com o sistema tributário. O sistema tributário incidente sobre altas rendas, lucros, ganhos financeiros, patrimônio é mais protegido no sentido de que no ciclo econômico dessa natureza são esses setores que mais ganham, portanto deveriam ser mais tributados. Então, se não colocar o elemento distributivo de renda e de riqueza na discussão fiscal, ela “naturalmente” flui para uma perspectiva conservadora de cortar salários, direitos sociais e programas sociais, porque é isso, segundo tal interpretação, que está produzindo a crise, mas não é essa minha leitura.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a proposta “Uma ponte para o futuro”, do PMDB? Quais os seus pontos positivos e negativos? Essa proposta tem força para ser um novo pacto federativo?
Guilherme Delgado – O documento “Ponte para o Futuro” do PMDB faz uma ponte para o passado, porque o pressuposto do documento do PMDB é o de que a crise fiscal e a estrutura orçamentária vinculada a direitos sociais e a vinculações constitucionais são a causa principal do desequilíbrio econômico e financeiro e da crise. Então o partido propõe voltar ao que existia antes da Constituição de 1988 — que era, portanto, o Regime Militar —, à ordem econômica e social prevalecente antes da Constituição de 1988. O partido propõe, por exemplo, desvincular, ou seja, desconstitucionalizar os direitos de saúde e educação, isto é, colocá-los na discussão do orçamento anual. Todo ano tem um orçamento, portanto é na disputa e na barganha político-partidária de quem ganha mais e quem perde mais que serão tratados os assuntos de educação e de saúde e todos os programas continuados, porque o documento do PMDB também propõe a ideia do Orçamento Base Zero, ou seja, o orçamento não tem precedente.
A própria Previdência Social também entraria nisso: se o orçamento é base zero não tem que considerar o estoque de benefícios em manutenção do ano anterior. Nós já conhecemos os resultados dessa proposta de desvincular o salário mínimo dos benefícios sociais, nós sabemos que pela desvinculação preexistente no Regime Militar, quando foi promulgada a Constituição de 1988, o salário mínimo estava na faixa dos 40 dólares. Se não tiver uma proteção contra a queda do salário mínimo em termos reais por conta da absurda desigualdade distributiva na relação patrão X empregado e da fortíssima desigualdade dos direitos dos trabalhadores, ou seja, se não tiver uma regra permanente, o salário mínimo vai a limites muito aquém da subsistência. Portanto, a proteção do salário mínimo e a sua vinculação como piso de direitos sociais, que está na Constituição, está sendo mirada como bola da vez no programa do PMDB. Não por acaso, uns dos redatores do programa do PMDB é o ex-ministro Delfim Netto, que entende tudo sobre como se praticam essas formas de ajuste de política social sem passar pelo ônus da proteção constitucional.
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“Do ponto de vista de direitos sociais, a proposta do PMDB é um desastre” |
IHU On-Line – Quando a proposta sugere um novo regime orçamentário, com o fim de todas as vinculações e a implantação do orçamento inteiramente impositivo, isso diz respeito ao orçamento de todo o programa de seguridade social?
Guilherme Delgado – Sim. Nas regras da ordem social existem vinculações de piso de benefício social. Os benefícios da previdência e da assistência social, com base nos conceitos de seguridade social, têm que ser no mínimo de um salário mínimo. Essa regra inexistia no regime anterior. Portanto, havia benefícios previdenciários no regime militar que eram declaradamente meio salário mínimo ou que não eram nada. Isso já não existe mais na Constituição. Evidentemente que, quando se cria um piso, se tem um ônus no sentido orçamentário, ou seja, os estoques de benefícios da assistência e da previdência não são uma base zero, mas uma base de despesas que têm de ser incluídas no orçamento, e é justamente com isso que a proposta do PMDB quer acabar.
A saúde tem um piso constitucional para a União, estados e municípios para aplicar na despesa orçamentária anual. Esse piso — apesar da velha discussão que fazem os sanitaristas — é tão baixo que não dá para suprir os custos do SUS. A solução do PMDB é zerar e passar para a discussão anual no Congresso, mas com isso se permite que cada partido diga o que será gasto a cada ano com a saúde sem um compromisso sistêmico de manter aqueles direitos sociais que estão na ordem social, porque no orçamento anual cada grupo de pressão fará a sua pressão. As empreiteiras terão um peso muito maior do que a área da saúde e da educação.
A ideia do piso e da vinculação é dar concretude aos direitos sociais, e não torná-la refém conjuntural do orçamento. A ideia do PMDB é que isso está sendo um estorvo para o ajuste fiscal e por isso nós temos que tirar esses direitos sociais. Mas, do ponto de vista de direitos sociais, a proposta do PMDB é um desastre.
Dívida pública
Tem um capítulo da proposta do PMDB que trata dos juros e da dívida pública, o qual constata que o grande vilão da despesa pública é a própria realimentação da dívida pública. Para se ter uma ideia, a despesa financeira subiu de cinco pontos percentuais para oito pontos percentuais, entre 2014 e 2015, só por causa da elevação dos juros e pela elevação do que eles chamam de swap, que é algo que ninguém entende, mas que representa, só neste ano, 2% do PIB. Swap é o seguro contra a desvalorização cambial. Por exemplo, se alguém fez uma aplicação no Tesouro à época em que o dólar estava a R$ 2,50, e depois o valor do dólar subiu para R$ 2,80, R$ 3,00, R$ 4,00 R$ 5,00, essa diferença é recebida pelo investidor em recursos do Tesouro, com um nome estrangeiro, que ninguém sabe o que é, e que não passou pelo Congresso: é uma gigantesca montanha de dinheiro que passa pelas vias obscuras da relação Banco Central e orçamento público.
Não obstante tudo isso, o documento do PMDB é bastante tímido no sentido de fazer uma reforma monetária e uma reforma da dívida pública para acabar com essa extorsão do sistema financeiro, principalmente em situações de crise como essa, em que toda a proteção cambial, financeira, indexações financeiras etc. é garantida ao sistema. E como não se tem superávit primário, mira-se nos direitos sociais. Com essa estratégia que está posta, há um desastre completo do ponto de vista da igualdade social e não há nenhum cenário de crescimento por conta dessas ações. Aliás, todo o crescimento que estão propondo e sugerindo se baseia na completa liberalização comercial e financeira — por suposto — e na confiança cega das forças de mercado externo como via de salvação da pátria.
IHU On-Line - Uma das primeiras propostas do documento sugere devolver “ao Estado a capacidade de executar políticas sociais que combatam efetivamente a pobreza e criem oportunidades para todos”. A aposta é diminuir a atuação do Estado?
Guilherme Delgado – É diminuir o papel do Estado e elevar ao máximo o papel dos mercados, no sentido de que pela sua ação autônoma e autorregulada se produza o crescimento capitalista puro, na confiança de que por trás viria tudo mais. Ora, nós sabemos que em uma sociedade desigual como a nossa, quando não são criadas salvaguardas nem mecanismos para viabilizar a igualdade social pela ação pública, o mercado não tem nenhum compromisso com a igualdade nem com a justiça. Ou seja, isso não é uma questão ideológica. Todos os bons tratadistas da economia política dizem isso: mercado tem compromisso com a acumulação de capital, com a eficiência privada. Igualdade social no capitalismo pressupõe regular as forças de mercado e ancorar a igualdade social com diretrizes e mecanismos eficazes de distribuição da renda e da riqueza.
Foi isso que a Constituição de 1988 fez. Pode-se dizer que não fez integralmente em todos os campos, mas no campo da seguridade social, fez. Tenho insistido nisso porque, às vezes, a esquerda faz uma crítica radical à situação econômica, esquecendo que do ponto de vista da distribuição da renda do trabalho temos de admitir que houve uma melhora significativa nos anos 2000 até 2013/2014. A causa eficaz de tudo isso — óbvio que teve um ciclo econômico — é a proteção dos direitos sociais, que tem explícita vinculação a benefícios monetários, como é o caso da Previdência, saúde, seguro desemprego, e a proteção com base em serviços essenciais de saúde e educação que repousa na vinculação de recursos orçamentários. É exatamente isso que a proposta do PMDB quer cancelar. Se retirarem a regulação da seguridade social com essa pretensão de reforma estritamente mercadorizante, não haverá nenhuma garantia de crescimento por essa via, pelo contrário, se aprofundará a recessão porque simplesmente aumentará a desigualdade e o acesso de rendimentos àqueles titulares de direitos sociais.
“O que o Banco Central faz com a dívida pública e com o regime de Swaps não tem controle do ponto de vista legal e isso não é discutido também” |
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IHU On-Line – Outra proposta do documento é o “equilíbrio fiscal duradouro”, com superávit operacional e com a redução do endividamento público. Segundo a visão do PMDB, quais são as causas do endividamento público e como solucioná-lo? Que avaliação faz dessa proposta?
Guilherme Delgado - O documento diz que o ajuste fiscal tem elementos conjunturais, erros de política econômica, mas a causa principal é estrutural e tem a ver com as vinculações constitucionais permanentes, que inviabilizam o equilíbrio fiscal. Então é isso que está sendo mirado: é o chamado ajuste estrutural. Só que no ajuste estrutural deles não entra absolutamente nada de reforma tributária progressiva, pelo contrário, eles querem reduzir tributos e de preferência tributos que incidam sobre a riqueza, e fazem uma pálida consideração sobre a dívida pública, porque esta — eles próprios sabem — é a principal causa do desequilíbrio fiscal e financeiro. Eles dizem que o déficit nominal deste ano é 8% do PIB. Ora, se terá um déficit primário de no máximo 0,5% do PIB, então 7,5% é gasto financeiro, é rolagem da dívida pública e é o tal dos Swaps, que eles apresentam como uma excrecência — e é realmente —, mas isso faz parte da absoluta independência do Banco Central de fazer despesa sem dar satisfação a ninguém.
O Brasil é um paraíso fiscal financeiro muito maior do que os Estados Unidos, porque nos EUA o Banco Central não pode fazer isso. Os limites da dívida pública lá dependem de autorização do Congresso, aqui não. Aqui o Congresso é proibido — pelo tópico do Artigo 166 — de fazer emendas sobre a dívida pública. Desse modo, o Banco Central arbitra juros, arbitra operação de Swaps e arbitra todas as formas de arranjos financeiros que trazem despesas financeiras, e isso não é objeto nem de regulação pública nem de consideração do Congresso. Portanto, quando se fala do debate da independência do Banco Central, eu morro de rir, porque o Banco Central aqui já é completamente independente: cria despesa financeira, põe na conta da dívida pública e depois ainda sai arbitrando e criando toda a discussão de que temos de criar superávit primário. Tudo isso para quê? Para pagar essa irresponsabilidade financeira que é gerida pelo Banco Central. Assim, o documento do PMDB até reconhece os problemas, só que não dá nenhuma solução.
IHU On-Line - Qual é o impeditivo para a aplicação dessa solução?
Guilherme Delgado - Quem domina o sistema financeiro, os meios de comunicação, o Congresso e o Executivo, é essa “pátria financeira”. O documento do PMDB até alinha algumas coisas, enfatizando que mais de 90% da despesa que não é suprida por tributos — portanto é déficit público — é produto da rolagem da dívida pública e das operações do Banco Central. E essas operações são insuscetíveis de emenda parlamentar, mas isso tem que ser alterado. Delfim Netto sabe disso, ele sabe que isso é incompatível com regime de longo prazo de equilíbrio fiscal e financeiro. Como ele teve influência no documento, há uma crítica a essa absoluta independência do Banco Central. Mas o PMDB não tem nenhuma proposta em relação a essa questão. Todas as propostas estão na linha de cortes de direitos sociais e regras de vinculação orçamentária, tendo em vista sobrar dinheiro, no superávit primário, para suprir a despesa do déficit nominal.
Toda a discussão está em cima do superávit primário, que é o excesso de receitas orçamentárias menos as despesas orçamentárias, exceto despesa financeira. Ora, mas a despesa financeira é o nó górdio da questão. Temos de alterar as causas que provocam esse problema, que é uma política irresponsável do ponto de vista monetário. Mas ninguém fala disso — só se fala da irresponsabilidade fiscal. E a irresponsabilidade monetária? No Brasil não existe lei de responsabilidade monetária; existe lei de responsabilidade fiscal, que pode ser cumprida ou não. Agora, o que o Banco Central faz com a dívida pública e com o regime de Swaps não tem controle do ponto de vista legal e isso não é discutido também, porque não interessa a esse grupo muito pequeno de detentores de títulos da dívida pública, que são remunerados com ganhos excepcionais em termos globais. Ou seja, quem aplicou em títulos da dívida pública em reais está tendo a proteção como se tivesse aplicado em dólares. Isso está custando — só neste ano de 2015 — 2% do PIB, ou seja, mais de R$ 100 bilhões. Tudo isso por conta de uma “normazinha” interna da diretoria do Banco Central, que não consultou ninguém e protegeu algumas centenas ou poucos milhares de aplicadores de títulos da dívida pública, enquanto todos os recursos que tratam de seguro desemprego e de outros direitos são objeto de uma longa discussão no Congresso. Mas nem os Swaps nem a política de juros exagerada entram nessa discussão.
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“E a irresponsabilidade monetária? No Brasil não existe lei de responsabilidade monetária” |
IHU On-Line - Sobre a Previdência, o documento do PMDB afirma que deixaram de ser feitas as reformas necessárias decorrentes do envelhecimento da população nos anos 1990 e 2000, e o resultado disso é um desequilíbrio crônico na Previdência. Apesar dessa constatação, identificou no documento uma proposta em relação a como solucionar os problemas da Previdência?
Guilherme Delgado – Em relação à Previdência, o documento faz só uma consideração, que é correta singularmente, mas não abarca o conjunto da situação do sistema. A ideia da idade mínima que é apresentada está correta. Concordo nesse ponto de que é preciso ter uma idade mínima. No entanto, o sistema previdenciário brasileiro não se resolverá dessa forma. Nos últimos 15 anos, o sistema passou por um processo de forte expansão no sentido de seguro social e isso foi positivo, porque saímos de praticamente 50% da população economicamente ativa no sistema previdenciário público, para em torno de 65%. Esse aumento demonstra uma ampliação do seguro social muito significativa e isso se deu pela via da expansão do emprego formal e da inclusão dessas formas novas de emprego formal na Previdência, através da chamada inclusão previdenciária.
Toda a inclusão previdenciária se faz também com as chamadas subvenções de alíquota contributiva; por exemplo, a dona de casa, o microempreendedor individual, a microempresa, todos esses têm subvenção de alíquota contributiva. O significa a subvenção? Que o benefício que a pessoa receberá ao longo da sua vida “inativa”, ou mesmo durante sua vida “ativa” nas situações de inatividade, ou seja, essa soma de benefícios é maior do que as contribuições que foram feitas. Mas como no sistema de previdência universal você tem que objetivar e incluir a todos, essas subvenções são “amparadas” no orçamento da seguridade social. Mas isso não sai gratuitamente. Então, quando se tem um sistema nessa magnitude, o qual se ampliou em tão pouco tempo, e também os efeitos de longo prazo de longevidade, há uma perspectiva de médio prazo de que as despesas desse sistema crescerão por cima dos recebimentos puramente contributivos. Portanto, há que aportar uma verba maior do ponto de vista do terceiro componente do sistema, que é o Estado, porque o sistema foi concebido em 1988 como tripartite — contribuição de empregados, empregadores e fiscal do Estado. É essa parte que na crise vira motivo de discussão, e aí se tenta dar soluções conjunturais para a discussão, quando na verdade a situação não é conjuntural.
Eu até acho que a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira [CPMF] exclusivamente para a Previdência é correta, mas não como provisória. Talvez, a melhor fonte de recursos fosse uma contribuição ou imposto que incidisse sobre a riqueza, sobre as grandes fortunas ou sobre as rendas mais elevadas, mas foi essa a solução que veio. E a Previdência precisa desse recurso, precisa formar seu fundo de reservas com base nesse recurso — que é previsto constitucionalmente no Artigo 250 —, porque ela precisa suprir esses benefícios que vão maturando ao longo do tempo, com base em uma ampliação significativa do seguro social, que já mencionei, e com base também no fato de que as pessoas ficam mais tempo no desfrute dos benefícios. Portanto, a maneira como a Previdência é tratada aqui é muito simplória, querendo se vincular tudo à idade de aposentadoria, que não está incorreta, mas não é essa a equação previdenciária de longo prazo.
Desse modo, do ponto de vista estrutural, o documento ficou, na parte da Previdência Social, tratando apenas dos elementos que podem ser apresentados nas notícias da imprensa, que causam impacto. A previdência social, em um país desse tamanho, com a quantidade de segurados sociais — existem praticamente 65 milhões de segurados da previdência —, precisa haurir fontes correntes, mas precisa ter também um fundo de reserva, o qual está previsto na Emenda Constitucional 20, da época dos tucanos, que fizeram a proposta, colocaram na Constituição e depois abandonaram o assunto e, portanto, o fundo de reserva do INSS não foi formado. A discussão fica sempre em se tem que ter ou não CPMF em época de crise. Claro, na crise, como as fontes distributivas são calcadas na base salarial, esta cai porque tem queda de empregos e queda de salário, então tem queda de rendas previdenciárias, surge um problema conjuntural, mas precisaria ter um fundo de reserva para socorrer nesse momento para não ficar totalmente dependente do orçamento fiscal, que também sofre o mesmo efeito na situação de crise.
IHU On-Line - Alguns defendem que o Brasil precisa de uma aliança ampla com diversos setores da sociedade, para além de uma “frente de esquerda”. O senhor concorda? Como deveria ser composta essa nova aliança?
Guilherme Delgado – Eu vejo cada vez mais difícil qualquer aliança, qualquer proposta que vá na linha da desconstrução de direitos sociais. Como a linha entre PMDB e PSDB — embora o PSDB não tenha se pronunciado sobre essa agenda de direitos sociais — é muito mais convergente nessa proposta do PMDB do que com o PT, não vejo como se vai para frente com esse tipo de compromisso. Na esquerda também não vejo uma clareza para defender o legado constitucional naquilo que significa resguardo da cidadania, políticas social e civil.
Em alguns juristas, como Dalmo Dallari, vejo com muita clareza que é esse esteio, é esse o campo da aliança possível: defender a Constituição e nenhum retrocesso. Agora, toda a aliança que se fizer no sentido de retroagir as salvaguardas da igualdade social na Constituição só irá piorar a situação, porque se a solução conservadora fiscal, financeira e social fosse “bandeira eficaz”, o regime militar estaria aí até hoje.
“Não acredito que os direitos sociais e as vinculações constitucionais que têm explícita relação com a igualdade sejam causa da crise, pelo contrário, são a possibilidade de sairmos da crise” |
Portanto, ficar jogando confetes na conjuntura e abandonar certas linhas estratégicas em nome de uma situação conjuntural não levará a uma saída. Não acredito que os direitos sociais e as vinculações constitucionais que têm explícita relação com a igualdade sejam causa da crise, pelo contrário, são a possibilidade de sairmos da crise. Se perdermos essas proteções e esses protetores, estaremos perdidos de vez, e nesse ponto caminharemos para a barbárie social. Nós não estamos numa situação de barbárie social, mas podemos entrar nela muito rapidamente se evoluirmos para uma situação de desemprego aberto de 10%, 12%, 15% da população, se jogarmos na linha da miséria mais alguns milhões de trabalhadores e de famílias, se for criada uma situação de completa ruptura do tecido social, onde tudo possa ser possível.
Algumas propostas que estão no documento do PMDB vêm do bloco BBB [Bancada do Boi, da Bíblia e da Bala]. Agora, como avançaremos em uma agenda básica? Penso que tem que ser uma agenda corajosa, não pode ser uma agenda do PT. Nesse sentido, o grande problema da “Frente de Esquerda” é que, na medida em que ela vai sendo formada, os setores do PT ficam muito preocupados em manter a hegemonia e colocar as suas demandas em cima dos limites do governo e, por causa disso, não se consegue avançar. Mas a alternativa tem de ser alguma coisa que dê possibilidade, até de sustentação desse governo, mas sem estar atrelado ao seu pacote político-econômico e aos seus constrangimentos.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Guilherme Delgado - Talvez eu esteja frustrando as expectativas por não propor uma solução, mas não existe solução pontual. Essa coisa de dizer faz isso e aquilo que dará num resultado “x” é uma tentativa de tornar senso comum coisas complexas. A complexidade da situação é a seguinte: nós mudamos o ciclo econômico, o modelo nacional-desenvolvimentista entrou em crise e a proposta neoliberal ficou completamente desancada. Em nome disso, os setores mais reacionários da sociedade soltaram os seus limites e nós ficamos em uma situação complexa, mas temos que recuperar aquilo que é bom do nacional-desenvolvimentismo — não podemos jogar tudo no lixo — e fazer uma crítica radical ao projeto alternativo, que não é alternativo, é uma volta ao passado do neoliberalismo, da modernização conservadora.
Agora, esse jogo está em curso. Infelizmente - pelo diagnóstico do PMDB - a situação é para piorar, porque para colocar essa agenda deles em prática, tem que piorar muito a situação do país, criar uma situação de terrorismo, na qual eles consigam passar emendas absolutamente antipopulares em nome da salvação da pátria. Desse modo, é esse clima de terrorismo que precisamos evitar e temos que denunciar, porque não é por esta via que se constrói um país civilizado.
Por Patricia Fachin
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Direitos sociais na mira de novas alianças políticas. Entrevista especial com Guilherme Delgado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU