01 Setembro 2015
“Nós estamos em um ponto em que, se o ajuste fiscal virar ajuste estrutural, nessa linha de tirar direitos sociais básicos, fazer uma reforma Constitucional avassaladora, no sentido de passar o trator em cima da Ordem Social da Constituição, não teremos a menor possibilidade nem de crescimento nem de igualdade social nos próximos quatro anos”, afirma o economista.
Imagem: nepo.com.br |
Para ele, na atual conjuntura, a principal dificuldade será manter os direitos previstos na Constituição de 88 que, “aparentemente, está órfã de apoios políticos parlamentares para ser mantida.
O Congresso de hoje, principalmente a Câmara dos Deputados, virou uma ‘des-Constituinte’, pois cada dia se vota uma Emenda Constitucional para desconstruir direitos civis, políticos e sociais. E não sabemos a quem apelar, porque os partidos políticos não se sentem comprometidos com a Constituição, nem o Executivo e tampouco o Supremo Tribunal Federal, que é o guardião da Ordem Constitucional; é uma situação muito curiosa”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, Delgado afirma que o único “ponto de união” que ainda se mantém no país é a “manutenção da ordem política da Constituição”, porque “ninguém quer a volta do Regime Militar nem a desconstituição política do Estado Democrático de Direito”. Apesar de haver uma unidade em torno da “ordem político-jurídica”, “não há mais uma unidade em termo dos direitos sociais; pelo contrário, os direitos sociais estão sendo apresentados como ‘bola da vez’ para atender aos interesses hegemônicos”, frisa.
Segundo o economista, um ajuste estrutural, que passa por cima dos recursos obrigatórios dos direitos sociais para atender ao ajuste fiscal, também demonstra a “quebra da Ordem Constitucional”. “Não é só a deposição da Presidente da República que implica quebra da Ordem Constitucional; violar os direitos sociais positivamente regulamentados e aplicados em nome dos interesses financeiros permanecentes, também significa quebrar a Ordem Constitucional”, menciona. E comenta: “Se não há um compromisso com a manutenção da Ordem Constitucional Social, nós continuaremos arrastando esse problema”.
A solução da crise política, afirma, passa por uma revalorização dos valores republicanos e constitucionais. “O que está em questão agora são os valores como a igualdade social, a ordem democrática, os direitos civis e políticos, como a representação, enfim, tudo que a ordem constitucional criou, mas não enraizou no imaginário coletivo”. Entre as alternativas para solucionar a crise política, Delgado ainda aposta na ideia de formar novas frentes suprapartidárias. “Como os partidos estão muito mal avaliados, acredito na ideia de formar frentes – de esquerda, direita, centro – para que possamos sair dessa discussão imediatista, e se consiga estabelecer uma nova agenda de campos ideológicos mais determinados e provavelmente, talvez, quem sabe, em um segundo momento, repensar a ideia de uma Constituinte exclusiva para refazer o pacto constitucional em bases que possam ser executadas e atualizadas”, sugere.
Guilherme Delgado é doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Trabalhou durante 31 anos no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Alguns avaliam que a situação que o Brasil enfrenta hoje, especialmente de crise política, tem suas raízes entre o fim da ditadura e a reabertura, quando o objetivo principal foi romper com uma linha autoritária e, de outro, tentar diminuir as desigualdades, mas, ao mesmo tempo, esqueceu-se de pensar o Brasil e um projeto de desenvolvimento para o país. Fazendo uma retrospectiva desse período que o senhor acompanhou, que avaliação faz?
Foto: Senado Federal
Guilherme Delgado – O período anterior à Constituinte, que já estava demarcado pela crise econômica, inaugurada desde 1981 com a moratória mexicana, e que contaminou a economia brasileira, é muito marcado exatamente por esse processo de uma certa união política em torno da derrubada do Regime Militar. Então, havia um pacto antiautoritário e uma agenda muito eclética do ponto de vista do Estado, que se forjaria posteriormente. Isso refletiu muito na Constituinte e ela tem uma tríade de medidas muito avançadas do ponto de vista de política social e compromisso com o pensamento conservador que se viabilizou naquele momento. A frustração começa com o que vem depois, porque a opinião pública, principalmente os setores mais pobres da população, foram facilmente manipulados na primeira eleição presidencial, com a eleição de Fernando Collor de Mello. Em contrapartida, os setores diretamente ligados à Constituinte, principalmente o enão presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, foi pessimamente votado – teve 3% de votação -, em um processo eleitoral que deveria consagrá-lo como alguém que conduziu e presidiu o programa da Constituinte e foi o senhor das Diretas Já.
Tudo isso demonstra que esse movimento dos partidos, como o PMDB e PT, que de certa forma partidariamente representaram o sentimento nacional, é um movimento muito difuso, mas sem um enraizamento político na formação de consciência. Ou seja, a consciência política continuou sendo manipulada pelas mídias, tanto que na primeira eleição se conseguiu realizar um processo totalmente invertido de eleger um político completamente estranho àquele campo democrático constitucional e que iria realizar um programa neoliberal, totalmente às avessas do sistema constitucional.
Conquistas da Constituição não são popularizadas
O que vem depois também tem um viés, ou seja, as grandes conquistas da Constituição de 1988, principalmente no campo dos direitos sociais, não são popularizadas, não é formada uma consciência coletiva de direitos sociais no sentido de que haja certa ideologia de um ciclo partidário nessa perspectiva. E estamos agora em uma fase onde os direitos sociais estão sendo novamente atacados e não encontramos defensores desses direitos. Parece que atacar a Previdência, o Seguro-Desemprego, o Sistema Único de Saúde – SUS é uma empreitada que não terá defensores, porque o sistema político-partidário ficou de tal forma envolvido em tratativas internas e de autointeresse, que precisamos ver qual é a relação desse sistema com a Constituição de 1988.
Então, nesse sentido há certo impasse, ou seja, a Ordem Constitucional de 1988 foi e é boa, mas aparentemente está órfã de apoios políticos parlamentares para ser mantida. O Congresso de hoje, principalmente a Câmara dos Deputados, virou uma “des-Constituinte”, pois cada dia se vota uma Emenda Constitucional para desconstruir direitos civis, políticos e sociais, e não sabemos a quem apelar, porque os partidos políticos não se sentem comprometidos com a Constituição, nem o Executivo e tampouco o Supremo Tribunal Federal, que é o guardião da Ordem Constitucional; é uma situação muito curiosa.
“A formação de consciência do ponto de vista político entre direitos sociais e Ordem Constitucional não avançou” |
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IHU On-Line - Essa falta de comprometimento com a Constituição tem a ver com o quê? Por que os principais partidos, PT, PSDB e PMDB, parecem não ter esse compromisso com a Constituição?
Guilherme Delgado – Desses partidos todos, os que deveriam ter direta relação com a Constituição seriam o PMDB e o PSDB, porque foram eles que se constituíram na frente partidária contra o Regime Militar. O PT, até certo ponto, se colocou como alguém que quer mais do que aquilo, até refugou assinar a ata final da Constituição.
No exercício do programa de governo, quando o PT chegou ao poder, a partir de 2003, a agenda de política social, que está escrita implicitamente na Constituição, ganhou notoriedade principalmente no campo da seguridade social, no campo dos direitos vinculados ou relacionados ao trabalho. Então, há um boom de acréscimo ou de acessos aos direitos sociais no período petista.
Falta de consciência política e social
Agora, não obstante esse avanço positivo esteve vinculado ao período petista, a formação de consciência do ponto de vista político entre direitos sociais e Ordem Constitucional não avançou. Parece que os trabalhadores que acessaram a direitos estariam sendo inseridos em uma operação de benesse governamental, e não numa conquista de cidadania. Neste ponto há um fracasso dos governos petistas em fazer do usufruto dos direitos econômicos, a consciência de direitos conquistados de caráter político.
Em relação aos outros partidos principais, esses muito cedo se distanciaram do processo de formação de cidadania; aliás, nunca tiveram essa pretensão, nem o PMDB nem o PSDB. O PSDB entrou diretamente nos arranjos da ordem econômica internacional, e o PMDB nos arranjos do poder eleitoral puro e simples.
Esses três principais partidos são devedores das suas origens, que são origens ligadas ao fim do Regime Militar e à construção de uma nova ordem político-jurídico-econômico-social. Portanto, podemos interpretar a crise atual como a crise dos partidos políticos em relação ao Estado Democrático de Direito, que parece não ter tanta importância na agenda de formação coletiva. Hoje se vai às manifestações políticas que esses partidos promovem, e, aparentemente, a desconstrução de direitos políticos, sociais e civis que se opera na agenda do Congresso não repercute nas manifestações políticas, ou seja, está todo mundo ligado a um conjunturalismo da crise política e da crise econômica, mas não à mudança de qualidade do Estado, que vem sendo desconstruído nesse processo de crise.
IHU On-Line - Identifica uma unidade entre esses partidos, no sentido de comungarem uma agenda?
Guilherme Delgado – O ponto de união que ainda se conserva com as extensões de praxe é a manutenção da ordem política da Constituição. Com exceção dos extremistas de sempre, ninguém quer a volta do Regime Militar nem a desconstituição política do Estado Democrático de Direito. Evidentemente que o presidente da Câmara [Eduardo Cunha] não tem essa visão, provavelmente alguns deputados da ultradireita não têm essa visão. Mesmo os apoiadores econômicos da ordem, por exemplo – pelas entrevistas que vemos do presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco Cappi, e do presidente do Itaú [Roberto Egydio Setubal] –, não querem a ruptura da ordem democrática. Eles já se declararam claramente contra o impeachment, porque o impeachment ou a renúncia significaria golpe no Estado e na Ordem Democrática Institucional. Esse é o ponto de unidade dos sistemas econômico e político no sentido de preservar o Estado Democrático.
Agora, a Ordem Democrática é íntegra, não é só a ordem formal constitucional; é preciso ter o Estado de direitos políticos, sociais e civis preservados. Caso contrário, não é possível manter a ordem política jurídica íntegra. Nas entrevistas, até seis meses atrás, Delfim Netto defendia claramente a manutenção das políticas e direitos sociais e da ordem constitucional, e agora já começa a mudar de fala, defendendo um ajuste estrutural, que eles não conseguem nem querem explicar direito, porque é muito escandaloso.
Um ajuste estrutural é exatamente ir para cima dos recursos obrigatórios dos direitos sociais – Previdência, Seguro-Desemprego, Sistema Educacional, Sistema Único de Saúde –, para passar compulsoriamente recursos para atender o chamado ajuste fiscal. Ora, mas isso é claramente quebra da Ordem Constitucional, ou seja, não é só a deposição da Presidente da República que implica quebra da Ordem Constitucional; violar os direitos sociais positivamente regulamentados e aplicados em nome dos interesses financeiros permanecentes também significa quebrar a Ordem Constitucional.
Essa é a clivagem que vejo hoje: há uma unidade em torno da ordem político-jurídica, por isso não tem o chamado “golpe branco” – pelo menos não teve até agora –, mas não há mais uma unidade em termo dos direitos sociais, pelo contrário, os direitos sociais estão sendo apresentados como “bola da vez” para atender esses interesses hegemônicos. Por isso me parece uma coisa preocupante, mais preocupante ainda porque os partidos da ordem política não vêm em defesa dos direitos sociais. Parece que eles acham os direitos sociais algo “requintado”, mas “meu Deus do céu”, são direitos básicos que têm a ver com a necessária condição de melhoria da igualdade social, que é cláusula pétrea da Constituição. Vejo esse como o principal dilema da crise atual.
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“Um impeachment a essa altura agravaria enormemente a crise financeira” |
IHU On-Line – O senhor concorda que impeachment não é uma alternativa para o momento, se não houver razões que levem a essa situação?
Guilherme Delgado - Essas pessoas do sistema financeiro, os presidentes do Bradesco e do Itaú, como são banqueiros, em geral, captam melhor o feeling da situação do que político açodado. Um impeachment a essa altura agravaria enormemente a crise financeira, porque além dos componentes já identificados e a incerteza dura de que o sistema econômico passa pela degradação dos preços das commodities, pela crise política, pela crise moral, etc., teríamos o agravante da desestabilização da ordem política, que não tivemos até aqui. Porque um impeachment sem fato criminal comprovado, qualquer que seja o artifício que se use, “pedalada” ou essa manipulação junto ao Tribunal Eleitoral, como se faz nos campeonatos de futebol – ganhou no campo e perdeu no tribunal ou vice-versa –, não é coisa que cheire a uma democracia madura.
Claramente os banqueiros percebem isso, porque eles estão refletindo o que estão vendo lá de fora a partir da situação externa, que não está absolutamente tranquila. Nesse sentido, agravar internamente a instabilidade e a incerteza tem como consequência, primeira e primária, a tal da perda do grau de investimento e o corte abrupto de recursos externos para suprir a ineficiência das nossas bases de pagamento.
Desse modo, os banqueiros, não por virtude política, mas por feeling, sabem que o impeachment é o pior dos mundos e por isso já se declararam claramente contra. Agora, não basta isso para resolver a crise: se não há um compromisso com a manutenção da Ordem Constitucional Social, nós continuaremos arrastando esse problema. Não adianta ter um governo que até se mantém com os poderes formais, se a sua capacidade de cumprir a agenda de direitos básicos - que tem a ver com a esmagadora maioria da população que requer e precisa de seguro-desemprego, de atendimento no SUS, de educação básica, de atenção no sistema de previdência, de assistência social e de eficiência - é sacrificada em nome do ajuste fiscal, “Meu Deus do céu”, aí estamos perdidos. Creio que esse é um dos elementos que precisaria de equacionamento.
IHU On-Line - Como avançar mantendo a ordem democrática e os direitos sociais? O Brasil precisa de um novo pacto federativo para garantir uma visão republicana? O que seria esse pacto?
Guilherme Delgado – Parece que uma das coisas que nos torna reféns é que temos hoje um sistema de informação coletiva que não ajuda a população a se aperceber do campo de dificuldades que coabita e convive e, portanto, não tem condições de formar correntes de opinião política. Nós somos bombardeados diariamente por uma mídia que está patrocinando determinada agenda política, uma agenda sem sentido, tão sem sentido que a própria direita, da qual ela é filiada, não está de acordo. Ou seja, há um dissenso no próprio campo conservador sobre essa agenda, porque derrubar politicamente o Estado – a presidente da República por impeachment –, para a própria direita mais organizada, não ajuda a resolver nenhum dos problemas.
Então, para que possamos vencer esse grau de dificuldade política da crise, precisamos arejar um pouco o sistema de informação. O sistema informação produzido pelas redes de televisão, pelos principais jornais, pelo rádio, etc., está viciado em uma partidarização e em uma ideologização, que não permite que os grandes interesses nacionais sejam discutidos, e os partidos políticos ficaram totalmente reféns do jogo mercantil, das campanhas eleitorais, etc.
Assim, vejo uma dificuldade não de sairmos da crise econômica, pois ela tem uma dimensão menor do que as pessoas possam imaginar, mas da crise política, ou seja, da crise de valores republicanos, democráticos e constitucionais dos quais a cidadania precisaria estar mais bem informada para não ficar sendo conduzida feito manada por operações absolutamente sem pé nem cabeça. O que está em questão agora são os valores como a igualdade social, a ordem democrática, os direitos civis e políticos, como a representação, enfim, tudo que a ordem constitucional criou, mas não enraizou no imaginário coletivo. O imaginário coletivo acha que se tirar a presidente da República, qualquer que seja o processo, estão resolvidos os problemas, mas é exatamente o oposto: os problemas se agravam muito mais.
Como sair da crise
Como saímos disso? Primeiro, a ideia de formar frente suprapartidária, a tal Frente de Esquerda, é um bom caminho. Isso porque, como os partidos estão muito mal avaliados, acredito na ideia de formar frentes – de esquerda, direita, centro – para que possamos sair dessa discussão imediatista, e se consiga estabelecer uma nova agenda de campos ideológicos mais determinados e provavelmente, talvez, quem sabe, em um segundo momento, repensar a ideia de uma Constituinte exclusiva para refazer o pacto constitucional em bases que possam ser executadas e atualizadas.
Embora eu também veja riscos nesse processo, porque, com o grau de desinformação da opinião pública e dos monopólios de informação preexistentes, é possível a formação de uma Assembleia Constituinte pior do que foi aquela de 1988. Então, temos de debater mais, arejar não tanto o quadro partidário, mas o quadro midiático, porque uma das causas da crise, que ninguém consegue perceber, é o monopólio de mídias: nós estamos submetidos a uma ditadura ideológica sem saber. Ou seja, as pessoas têm um pensamento único sem o saber, e não conseguem sair da “quadratura” do círculo imposta por esse pensamento único, e os partidos políticos também não viram alternativas, e a sociedade civil está bastante prostrada nesse processo todo. É um quadro complicado, mas tem saída.
“Dentro do quadro institucional vigente não é possível superar a crise” |
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IHU On-Line – Que saídas vislumbra na reformulação dos partidos que estão aí? Por que as Frentes de Esquerda seriam uma alternativa melhor a tudo que o PT já representou?
Guilherme Delgado - Mesmo sabendo que o sistema político está contaminado, temos que admitir que dentro deles existem segmentos que pensam e que pulsam. Mas eles têm que pensar e pulsar fora dos limites partidários, porque dentro dos limites partidários não dá. Você chega a uma reunião com pessoas que têm 1001 propostas, mas na hora de fazer qualquer documento, dizem: “mas não podemos fazer isso porque atrapalha o arranjo partidário; ah, não pode dizer isso porque o governo...”. Dentro do quadro institucional vigente não é possível superar a crise.
Na frente suprapartidária, portanto sem as teias do partido do governo ou da oposição institucionalizada, provavelmente poderia se construir uma agenda alternativa, ainda que uma agenda contra-hegemônica, porque nesse momento ninguém tem uma hegemonia para oferecer como campo ideológico construído, etc.
Na realidade, para os próximos meses, pelo menos até 2018, creio que teremos essa situação indefinida, mas um indefinido que pode emergir para uma linha mais estruturada de reconstrução do projeto democrático de 1988. Reconstrução, porque não se trata de jogar no lixo esse projeto, que tem coisas muito boas, mas é preciso reconstruí-lo, porque ele teve lacunas muito fortes, principalmente no campo de formação de consciência e cidadania.
IHU On-Line – Uma das avalições das políticas públicas dos governos Lula e Dilma é a de que elas não foram republicanas e beneficiaram em grande escala o sistema financeiro. Como o senhor interpreta esse tipo de análise? O que é possível vislumbrar em termos de continuidade ou manutenção das políticas sociais a partir disso?
Guilherme Delgado – Aí nós temos uma questão de dupla entrada. O projeto chamado nacional-desenvolvimentista, que passa necessariamente por uma maior presença do Estado na ordem econômica e também por um compromisso do Estado com a ordem social, está sendo atacado simultaneamente nesse momento de crise. Portanto, a diminuição do Estado pela estratégia do ajuste fiscal, e a diminuição do Estado no campo da política social, pressuposto do projeto de ajuste monetário fiscal em cogitação no campo do chamado ajuste estrutural, ou seja, essas duas vertentes de tirar, pelo campo conservador, o Estado nacional-desenvolvimentista da agenda, têm como projeto maior a ideia de trazer de volta o capital estrangeiro e o sistema privado a cumprirem funções de desenvolvimento que não seriam cumpríveis pelo Estado interventor; isso é um pressuposto. Do ponto de vista social, a ideia de passar para o mercado as responsabilidades das políticas sociais, através da ideia dos seguros - seguro-saúde para quem tem dinheiro para pagar, seguro-previdência para quem tem dinheiro para pagar e seguro-educação para quem tem dinheiro para pagar -, é a mercantilização da política social.
Claramente essa agenda neoliberal não encontra respaldo do ponto de vista da ordem internacional, ou seja, não há uma ordem internacional, principalmente na situação crítica que temos hoje - como não houve na experiência de Fernando Henrique Cardoso nenhum comparecimento do investimento estrangeiro na execução de programas importantes de infraestrutura e de qualquer tipo de arranjo que levasse o país a ter o mínimo de crescimento. Assim como o avanço dos seguros sociais, nos vários campos em que mencionei, não tem qualquer compromisso com igualdade social, porque o mercado não tem compromisso com igualdade.
Qual é o modelo para o século XXI?
Então, o projeto neoliberal está desconectado, não somente da realidade mercantil do capitalismo de hoje, como de qualquer compromisso com a ordem constitucional do ponto de vista da igualdade. Assim como também é verdade que o projeto nacional-desenvolvimentista não teve e não tem fôlego suficiente para se manter, porque ele depende de um arranjo de economia política que também não garante a sua sobrevivência. Desse modo, temos que pensar algo mais ajustado à situação no século XXI, pois no século XXI temos o desafio de pensar, e pensar é difícil, porque não se tem âncoras e não se tem mediações históricas que permitam construir modelos alternativos.
Agora, creio que nós não podemos abandonar princípios éticos e políticos fundamentais, ou seja, o princípio da igualdade social, o princípio da democracia, o princípio republicano de um país dessas dimensões, que precisa ter uma ordem republicana, tudo isso que está escrito na Constituição e nós não podemos perder de vista. Se perdermos isso de vista, com o agravante de que o grau de incerteza da crise é muito grande, ficaremos em uma situação de completa anomia.
Por isso, precisamos marchar dentro do possível; reconstruir essa ordem constitucional; reconstruir uma economia política menos dependente dos proprietários da riqueza fundiária e da riqueza financeira, que foram os grandes viabilizadores desse projeto presente; fazer arranjos internacionais mais plurais; sair desse atrelamento à dependência norte-americana, que é um pouco o que nos estão conduzindo pela campanha do sistema conservador; democratizar a nossa mídia, porque a mídia é a grande responsável pelo grau de incerteza que nós vivemos; desenvolver, no campo econômico, projetos alternativos, novas e melhores formas de conviver com a natureza, novas formas de exploração da energia, etc. Enfim, aproveitar os elementos positivos da agenda mundial, da Conferência de Mudanças Climáticas, para sair da defensiva e do grau de incerteza em que o sistema está metido.
Não tenho saídas prontas e nem agendas compactas para dizer se é por aqui ou por ali. Todo mundo está metido nesse grau de confusão, ninguém sabe exatamente o que fazer, mas sabemos o que não fazer; e o que não fazer atualmente é apostar no pior, porque o pior é o pior mesmo, não é melhor para ninguém.
IHU On-Line - Mas qual deve ser o papel do Estado nessa relação com o mercado no século XXI, à medida que a história brasileira mostra que o Estado não tem sido republicano no sentido de garantir direitos universais, como acesso à saúde, por exemplo? O que se viu foi um incentivo do Estado para que as pessoas tivessem acesso aos planos de saúde privados ao invés de acesso à saúde via SUS.
Guilherme Delgado – O Estado, do ponto de vista Constitucional, deveria fazer uma desmercadorização de serviços de proteção social básicos, entre os quais a saúde. Acontece que como o Estado, pelos processos espúrios de representação, é controlado pelos monopólios, ele realiza o programa do SUS, que é um programa de desmercadorização, mas ao mesmo tempo realiza um programa de seguros e saúde que é mercadorização plena. Ou seja, gera um fluxo positivo e um fluxo negativo, mas como as necessidades são sempre maiores do que os recursos, é criado um impasse na situação.
Por isso nós temos que sair disso e esse é um dos vícios da Constituição. A Constituição fez aquela coisa: “vamos dar uma chance ao vício e outra à virtude”, mas como o vício é muito mais forte do que a virtude, termina contaminando o que era bom. A mesma coisa é possível observar no sistema de educação e de previdência. Os sistemas públicos até avançam, os direitos avançam, mas muito dependentes de recursos públicos que dependem do Estado.
Para sair desse impasse, precisaríamos colocar essas massas populares, que são impactadas ou prejudicadas pelo impasse, na condição de agentes políticos, agentes sociais, agentes cidadãos. Mas para isso precisaríamos romper a cadeia de comunicação coletiva, que também é objeto de apropriação por esses monopólios, porque esses monopólios não afetam somente o Estado, eles afetam a sociedade como um todo. Portanto, precisamos construir, por vias laterais, condições de possibilidades de aprofundar nosso sistema de igualdade social dentro da democracia.
“A maneira como o governo passou a lidar no ajuste fiscal com a crise, não a resolve, mas a aprofunda” |
IHU On-Line - Quais são as causas da crise econômica que vivemos hoje no Brasil e por que a crise tem uma dimensão menor do que se pensa, segundo sua avaliação?
Guilherme Delgado – O componente econômico dessa crise geral, que é social, econômica e política, pode estar mais diretamente vinculada a uma segunda ou terceira onda da crise financeira de 2008. A primeira onda foi aquela que o Lula chamou de “marolinha” e adotou, em 2009, o programa anticíclico, obtendo respostas positivas. O programa anticíclico era fortemente vinculado a investimentos públicos em infraestruturas, aceleração das exportações primárias, crédito ao consumo e manutenção do estado de direito social. Então, o acesso aos direitos sociais foi mantido, do mesmo modo que os investimentos públicos pelo BNDES, e os direitos sociais básicos foram até ampliados, porque se manteve a política de valorização do salário mínimo, e a economia cresceu pelo menos até 2011.
O segundo movimento se deu no governo Dilma, na tentativa de replicar esse modelo de política anticíclica, que foi feito em 2012, 2013 e 2014, mas de forma cheia de equívocos - que não vou entrar em detalhes aqui - e que levou, já em 2015, ao terceiro movimento, que é o do ajuste fiscal.
Ou seja, algo absolutamente oposto ao anterior, um movimento de contração da participação estatal, seja no investimento, seja na política social, pari passu a uma contração das exportações, determinada pela queda dos preços externos das commodities, que é a manifestação externa da terceira onda da crise financeira.
Ou seja, esse arrazoado da crise econômica tem uma forma de enfrentar que não é tão complicada assim: há uma queda dos preços externos, a queda dos preços externos leva a um desequilíbrio das contas externas, e a ação interna contracíclica, se não tivesse tido a resistência e as dificuldades de gestão que teve no primeiro governo Dilma, não teria feito com que a crise econômica se propagasse de tal forma.
Crise econômica e as consequências no mercado de trabalho
Na realidade a crise econômica se propagou de forma abrupta do final de 2014, nos meses de novembro e dezembro, até o presente, ou seja, são praticamente nove meses em que o desemprego aberto recrudesceu. O desemprego aberto tinha desaparecido e reaparece com força avassaladora. De novembro de 2014 a agosto de 2015, estamos desempregando liquidamente 100 mil novos trabalhadores formais por mês, quando antes nós tínhamos um emprego líquido de 1 milhão e 200 mil trabalhadores por ano. Esse ano será o oposto absoluto. Esse oposto absoluto pode ser associado ao programa de ajuste fiscal e monetário. As pessoas falam no ajuste fiscal – que é o problema de corte de despesas, aumento de tributação, etc. -, mas há um ajuste monetário que se dá através da elevação dos juros básicos pelo Banco Central, que gera uma despesa financeira absolutamente maior do que as economias dos gastos fiscais, além de provocar junto com o ajuste fiscal uma queda abrupta de arrecadação.
Então, esse interregno de política de ajuste fiscal-monetário de praticamente oito meses, piorou enormemente as condições econômico-sociais, sem vislumbrar para frente um projeto de crescimento. Porque, na realidade, os ajustes fiscal e monetário estão muito mais preocupados com a ideia do saneamento financeiro no sentido de recompor situações financeiras dos proprietários da riqueza, do que propriamente de vislumbrar o “day after” do crescimento. Esse é que o problema, ou seja, a maneira como o governo passou a lidar no ajuste fiscal com a crise, não a resolve, mas a aprofunda. Por outro lado, o governo foi levado a isso pelo cerco a que se viu perseguido e que a ele aderiu depois da campanha eleitoral e de todo o processo que se firmou.
O desespero de um pensamento muito conservador, no sentido de pôr fim à experiência nacional-desenvolvimentista e, por outro lado, a irrealidade desse nacional-desenvolvimentismo face às condições externas, foram as causas que levaram a esse agravamento da crise econômica. Mas, agora, por que digo que é mais político do que econômico? É porque o que levou o governo Dilma a fazer esse ajuste fiscal não foram as convicções ideológicas da presidente, foi o cerco ao qual ela se viu montada no sistema político-econômico-financeiro depois de ganhar a eleição. E a falta de sintonia com a sua base eleitoral e base de representação no Congresso, tendo em vista sair da crise para uma perspectiva que fosse aprofundar a democracia e corrigir distorções da representação, aumentar o grau de republicanidade da nossa relação com os cidadãos, com o Congresso, tudo isso levou o governo a retroagir em uma pauta muito mais partidarizada, de um partidarismo, por sua vez, também distorcido dessa visão constitucional.
Liberal X Nacional-desenvolvimentismo
Precisamos perceber o seguinte: os passos que serão dados daqui para a frente, assim como aconteceu em dezembro, podem melhorar ou piorar a situação. Nós estamos em um ponto em que, se o ajuste fiscal virar ajuste estrutural, nessa linha de tirar direitos sociais básicos, fazer uma reforma Constitucional avassaladora, no sentido de passar o trator em cima da Ordem Social da Constituição, nós não teremos a menor possibilidade nem de crescimento nem de igualdade social nos próximos quatro anos. Se nós tivermos uma agenda de manutenção e aprofundamento no campo igualitário e democrático da Constituição, aí sim nós poderemos ter uma via alternativa, e aí precisa explorar outras alternativas de crescimento que não essa que nós vislumbramos aí: não é crescer no sentido de commodities, porque esses componentes estão claramente revelando seus limites.
O mesmo tem de ser dito em relação às commodities de petróleo: não podemos achar que o mundo caminhará para a superexploração do petróleo; tudo indica que será diferente, porque a crise ambiental e climática nos chama para um modelo alternativo de desenvolvimento, o qual poderíamos desenvolver enquanto um país que tem enorme importância estratégica, principalmente em termos de posses de recursos naturais, no sentido de apostar num desenvolvimento com convivência ambiental. O BNDES poderia ter um papel protagonista dentro disso. Mas como fazer isso se as mentalidades estão todas corroídas no dilema neoliberalismo X nacional-desenvolvimentismo? São dois polos absolutamente anacrônicos, que ficam disputando, e um terceiro polo que não tem como emergir nesse momento.
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“O ajuste fiscal, do ponto de vista de meta cega, elencada por uma visão fundamentalista, é um suicídio” |
IHU On-Line – O senhor elencou aspectos externos e internos para explicar a crise. Mas na semana passada a presidente Dilma deu uma declaração dizendo: “Nós não imaginávamos. Primeiro que teria uma queda da arrecadação tão profunda. Ninguém imaginava”. Se não houvesse tido corte na arrecadação, a situação seria diferente?
Guilherme Delgado - A queda na arrecadação é produto do ajuste fiscal. Se a presidente não tinha noção, vá me desculpando, é porque ela não estudou direito. Se a economia está em um grau de incerteza bruta, se o sistema de preços externos de commodities cadentes é cortado abruptamente pelo mercado, o consumo interno é cortado pela restrição, o investimento privado não vai para lugar nenhum, os juros são elevados a formas estratosféricas, o que queriam que acontecesse? O que tinha que acontecer é a queda da receita pública. Se ela não esperava isso, “pelo amor de Deus”, então não sei o que ela estudou.
A queda de arrecadação tributária e patrimonial é produto exclusivo do ajuste fiscal, não se deve à dinâmica autônoma dos mercados. A dinâmica autônoma dos mercados já vinha em sentido declinante, aí há um aprofundamento da crise, e se faz uma política claramente pró-cíclica. Ora, se é pró-cíclica como ela admite, é aprofundar o cíclico, o cíclico era cadente, com uma política pró-cíclica, transforma-se o cadente em recessivo: cai a receita, cai por suposto a possibilidade de se arrecadar recurso. Foi um programa tão fundamentalista, que eles próprios deram um tiro no pé. Como arrecadar 1,2% do PIB se a receita está caindo? E a receita cai por causa dos cortes de despesas públicas e por causa do aprofundamento da extração de recursos da dívida pública pela elevação da taxa Selic. Portanto, se ela insistir nesse caminho e fizer aquilo que o Ministro Joaquim Levy quer fazer, que é o ajuste fiscal II, um ajuste estrutural, ao invés de cair 3,5%, a receita pública cairá 10%, 15%, 20%, nós vamos chegar numa situação como a grega.
Meta cega
O ajuste fiscal, do ponto de vista de meta cega, elencada por uma visão fundamentalista, é um suicídio. Então, nós temos que sair desse campo antes que se torne impossível recuperá-lo. A Grécia, por exemplo, entrou em um grau de suicídio e se viu absolutamente incapaz de ter uma política de salvação. Nós não estamos nessa situação, mas podemos entrar. Se aprofundar o ajuste fiscal na perspectiva do Ministro Levy e dos que adotam a linha de ruptura dos direitos sociais constitucionalizados e a sua captura para o ajuste fiscal, aí nós vamos para o brejo de vez e não terá nem mais como pensar em políticas alternativas.
Portanto, estamos em um momento em que ainda não chegamos ao fundo do poço, mas estamos em um momento em que podemos sair desse fundo ou aprofundar de forma tal que não tem mais retorno; esse que é o problema. Há várias vias para ir por esse caminho, uma delas é o ajuste estrutural, a outra é a ideia de golpe. O golpe institucional tem o mesmo condão do ajuste estrutural: é uma ruptura da ordem democrática, uma no campo político e outra no campo social. Os dois colocam o grau de incerteza em plano absoluto.
Então, estamos em um momento em que se a sociedade estivesse sendo informada devidamente dos dilemas que vivemos, nós poderíamos evitar esse retrocesso. Se não insistir na ideia da proteção dos direitos sociais básicos e proteção da ordem política institucional - são dois campos, não é um só, e são integrais –, o país caminha para o pior dos mundos, e não tenho convicção de que a presidente da República tenha plena consciência disso. E não adianta, depois que cometeu o erro, dizer: “eu errei, não percebi isso”. Não percebeu porque é surda, não ouve o que se fala, é autossuficiente, não tem capacidade de dialogar, fica dando aula de coisas que não conhece.
IHU On-Line - A desaceleração chinesa poderá ter um peso maior na economia brasileira?
Guilherme Delgado – Pode ter até para o bem. A desaceleração da China não é um mal em si, ela é um mal para o programa de “commoditização” absoluta que o Brasil está envolvido, mas isso não era salvação da pátria, isso é a perdição da pátria. No momento em que a China se retrai, deixa de ser a campeã das demandas de soja, de petróleo, de carnes, de pasta de celulose e de todas as outras commodities que exportamos, nós podemos e devemos reestruturar a nossa economia para uma diversificação das exportações e, claro, uma diversificação de uma pauta de investimentos internos que não tenha que ser caudatária dessa estratégia chinesa. Ou seja, desatrelar a nossa economia do carro chinês é tão importante quanto desatrelar da nau norte-americana, de forma que possamos nos compor por esse conjunto de interesses estratégicos, mas em uma perspectiva mais equilibrada. Uma perspectiva em que a economia é reconstruída de forma muito mais diversificada, muito mais integrada com o mercado interno, preocupada com a igualdade social, muito mais preocupada com sustentabilidade ambiental.
O século XXI é um século que não será igual ao XIX e nem ao XX, nós teremos clareza disso. O século XXI é um século de muitas crises do sistema financeiro, que se repetem todos os anos, mas é um século de oportunidades para abrir uma nova agenda mundial, mais equilibrada do ponto de vista do meio ambiente. Nós precisamos construir e reconstruir essas utopias, mas são utopias que estão batendo à porta, ou seja, a questão da sustentabilidade ambiental requer um programa de energia adequado, um programa agrícola adequado e parece que essas coisas não entraram na agenda oficial, ou, quando entram, é como algo declaratório, mas não tem o caráter estratégico.
IHU On-Line – Qual é o impacto econômico das 14 medidas fiscais que fazem parte da Agenda Brasil?
Guilherme Delgado – A Agenda Brasil, na realidade, é aquilo que eu estava falando. Há o programa de ajuste estrutural defendido pelos economistas ultraconservadores, que é bater na porta das despesas compulsórias da política social, para tentar viabilizar o ajuste financeiro, para atender às metas de superávit primário. A Agenda Brasil escolheu outra forma, mas com um vício de origem: se pegarmos a parte econômica, ela está basicamente preocupada com um programa de concessões de infraestrutura, são todas as medidas fiscais que o governo poderia adotar para tornar as concessões de infraestrutura viáveis e favoráveis aos investimentos em portos, aeroportos, estradas, etc. que estão nessas concessões.
Agora, a maneira de financiar essa agenda, se olharmos direitinho, será pelas medidas que eles chamam de política social. Com isso é criada uma “frouxidão” nas políticas sociais para viabilizar transferência de recursos. Por exemplo, na proposta da Agenda Brasil original – depois eles tiraram isso porque ficou muito escandaloso – havia a ideia de cobrança, aos que podem, pelo atendimento no SUS. Isso para os ingênuos parece até uma coisa justa, mas veja só: hoje para ingressar no SUS, a condicionalidade é apresentar a carteira de identidade. Mas segundo a versão original da Agenda Brasil, seria necessário fazer a prova de pobreza, ou seja, a pessoa pobre chega enferma no SUS, e ainda tem que provar que é pobre para poder ser atendida.
Então, tanto a Agenda Brasil quanto o ajuste estrutural do Ministro Levy, capitaneados por vários outros economistas do campo conservador, retiram recursos de direitos sociais básicos já positivados, no primeiro caso, para o ajuste financeiro e, no segundo caso, para o programa de infraestrutura. Mas nem uma coisa nem a outra são condizentes com o ordenamento constitucional. O ordenamento constitucional requer o quê? Que esses recursos sejam mantidos e que seja feita, quando eles forem insuficientes, uma reforma tributária de caráter progressivo para atender esse projeto de desenvolvimento da cidadania social.
Mercadorização dos direitos sociais
Recuar nisso é simplesmente entrar no campo da mercadorização dos direitos sociais, e todo mundo sabe que o mercado, por mais conservador que seja, não tem compromisso com a igualdade; mercado tem compromisso com a utilidade privada. Portanto, a agenda social do Presidente do Senado [Renan Calheiros] é de retrocesso do ponto de vista democrático.
Na democracia da Constituição de 1988 há uma integração nos planos dos direitos políticos, civis e sociais. O social é a novidade, porque nos regimes constitucionais anteriores havia direitos políticos e civis, e os direitos sociais eram declarações de intenções. A ordem constitucional foi muito mais expressa nesse sentido. Então, os direitos sociais são o cerne da inovação de 1988 e precisam ser preservados. Se esse elo for perdido, a cadeia toda será perdida. Portanto, não adianta preservar direito político porque ele não vinga com o aprofundamento da desigualdade, que já vem pela própria evolução da crise social.
“Os direitos sociais são o cerne da inovação de 1988 e precisam ser preservados. Se esse elo for perdido, a cadeia toda será perdida” |
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Guilherme Delgado – No momento, porque temos um aprofundamento de desemprego aberto, forte, todos os indicadores de desemprego mostram o recrudescimento dos empregos abertos. Tudo isso me chama a atenção para um programa imediato, ou seja, enquanto discutimos perspectivas, o programa de recomposição do emprego ou de adoção do emprego mínimo é essencial, porque nós não podemos deixar essas pessoas ao desalento.
A evolução normal da situação pode até piorar a situação. O programa de emprego mínimo e a manutenção dos direitos sociais básicos positivados, tem como pressuposto a comprovação do risco social, porque as pessoas só comparecem ao SUS, ao Sistema de Previdência Social, ao sistema assistencial, ao Seguro-Desemprego para requisitar um benefício quando há a comprovação do risco. Portanto, não se pode afrouxar essas legislações no pressuposto de que o sistema financeiro exige. Isso é idolátrico, é submeter os pobres, os enfermos, os desempregados, os deficientes à sanha do ídolo do mercado. Temos de ter muita consciência de que na conjuntura temos de preservar a instituição constitucional para não retroagir, e a partir daí lançar pontes de um programa alternativo de desenvolvimento, fazendo uso das instituições que existem e, evidentemente, discutindo com a sociedade e apresentando à sociedade isso como saída para a crise, e não ficar discutindo a crise como se fosse uma coisa que está caindo do céu e para a qual ninguém tem salvação.
Portanto, acredito que a crise, nesse sentido, pode ser vencida em um programa muito mais de democratização da cultura, do conhecimento, uma democratização de fazer política e de fazer mídia. Volto a dizer, as mídias especializadas são grandes produtores da crise para o grau de confusão e de partidarização que colocam a todas essas questões, não permitindo que as pessoas reflitam.
O governo está em um sentido completamente oposto. Agora, se as pessoas se dessem conta do que significa essa Agenda Brasil no concreto da vida delas, se o pobre que vai ao SUS estivesse a ponto de ver que ele não pode nem mais ser atendido, porque ao chegar no SUS será perguntado se fez prova de pobreza, talvez houvesse mais reações. Se não tem prova de pobreza, ou paga ou vai embora. É isso que estão dizendo de forma subliminar, para sobrar recursos; é um absurdo total.
(Por Patricia Fachin)
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A disputa que impede a emergência de uma terceira via. Entrevista especial com Guilherme Delgado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU