08 Fevereiro 2015
“O governo Dilma Rousseff acabou. Terá que acender velas a Deus e ao Diabo. Terá que escolher entre se ajoelhar ao PT e Lula ou ao PMDB de Eduardo Cunha e Michel Temer ou, ainda, ao bloco empresarial e ultraconservador que convidou para fazer parte de seu ministério”, afirma o sociólogo.
Foto: http://leftunity.org/ |
Em meio à acentuada crise política, econômica e social que a Grécia vem enfrentando desde o colapso financeiro internacional que afetou a Europa, a eleição do Syriza no país representa “talvez a mais profunda crise do sistema partidário (e da polarização partidária) que envolve toda a Europa”, avalia Rudá Ricci em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Segundo ele, as abstenções de aproximadamente 60% nas eleições gregas são um “sinal desta crise e a própria vitória do discurso anti-União Europeia também”.
De acordo com o sociólogo, a proposta política do Syriza está centrada num “programa socialdemocrata com alguns toques de radicalidade populista”, que inclui quatro pontos principais: medidas de urgência para socorrer as vítimas da crise; recuperação econômica; criação de empregos em três fases; e programa de reformas do Estado e da administração.
Mas a eleição do partido pode ser lida de duas maneiras: “A primeira, uma reação às políticas de austeridade econômica que atingiram fortemente a maior parte da população. Mas também podemos compreender como uma virada no sistema de representação inaugurada no século XIX (os partidos de massa modernos) e que se firmaram ao longo do século XXI. Possivelmente, estamos presenciando uma lenta mudança na estrutura de representação que pode alterar a estrutura de Estado”.
Na avaliação dele, as eleições gregas terão “um forte reflexo” nas eleições municipais e regionais da Espanha, para as quais o partido espanhol Podemos já é apontado como favorito. “Os dirigentes do Bloco de Esquerda de Portugal, Syriza e Podemos viajam constantemente para prestigiar eventos de seus pares. Não tenho dúvidas que veremos um ‘efeito dominó’, envolvendo vários partidos europeus que poderá diminuir a margem de manobra da Alemanha e abrir uma forte polarização entre a ‘nova esquerda’ e a extrema direita (que já cresce fortemente na França, Bélgica, Suíça e Áustria)”, pontua.
Apesar da parceria do Syriza com partidos espanhóis e portugueses, o sociólogo destaca que a influência do partido na União Europeia será pequena. “Causará, inicialmente, grande incômodo. E pela coalizão montada (com um partido de direita nacionalista), poderá montar uma ampla frente europeia de pressão contra as medidas de austeridade impostas pela Alemanha. Mas não terá muita força de imediato, sendo uma ovelha negra nesta família”.
Na entrevista a seguir, Rudá Ricci também comenta a atual conjuntura brasileira, e as críticas que o segundo governo Dilma vem sofrendo por tomar decisões distintas das prometidas durante a campanha eleitoral. “Quem pode imaginar segurança e força num governante que foi eleito batendo fortemente na agenda que adotou alguns dias depois de eleito?”, questiona. Para ele, o governo Dilma “acabou” e “terá que escolher entre se ajoelhar ao PT e Lula ou ao PMDB de Eduardo Cunha e Michel Temer ou, ainda, ao bloco empresarial e ultraconservador que convidou para fazer parte de seu ministério. Da mesma maneira que está se curvando para Eduardo Cunha - que combateu -, está renegociando os anúncios de cortes de direitos sociais que anunciou com as centrais sindicais. Perdeu o leme do navio”.
Rudá Ricci (foto abaixo) é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp), entre outros.
Confira a entrevista.
Foto: https://twitter.com/rudaricci |
IHU On-Line - A vitória de Syriza na Grécia foi uma surpresa ou não? Por quê?
Rudá Ricci - Não. O Syriza obteve 16% dos votos em maio 2012, fazendo 50 deputados, tornando-se o segundo maior partido da Grécia. Já se sabia, de antemão, que ele sairia vitorioso das eleições deste ano, mas não se tinha clareza se faria maioria absoluta das cadeiras ou teria que montar uma coalizão. Algo muito semelhante do que deve ocorrer nas eleições espanholas de maio deste ano, quando o Podemos deverá se tornar o segundo ou primeiro maior partido da Espanha.
IHU On-Line - Como avalia a eleição do Syriza, considerando 40% de abstenções na eleição?
Rudá Ricci - Talvez a mais profunda crise do sistema partidário (e da polarização partidária) que envolve toda a Europa. A abstenção é sinal desta crise e a própria vitória do discurso anti-União Europeia também. Vale lembrar que as ruas de vários municípios de Portugal estão recheadas de outdoors propondo a ruptura com a zona do Euro. Na Grécia, 300 mil domicílios não tinham energia por falta de pagamento. A política monetarista dá nisso: equilibra as contas públicas e destrói os menos abastados. As instituições do país acabam implodindo por falta de legitimidade.
IHU On-Line - Pode nos explicar como e em que contexto o Syriza surgiu? Atualmente, 12 organizações fazem parte do partido. Todas elas têm uma agenda comum?
Rudá Ricci - Em 2001, forma-se o Espaço para o Diálogo da Unidade e Ação Comum da Esquerda, composto por várias organizações que forjaram um programa nacional que contemplava desde a guerra do Kosovo até as privatizações. As organizações que o compõem são: Synaspismos (corrente majoritária, mais pragmática e socialdemocrata, articulação de movimentos sociais e ecológicos), AKOA/Esquerda Comunista Ecológica e Renovadora, KOE/ Organização Comunista da Grécia, DEA/Esquerda Internacionalista dos Trabalhadores Kokkino (trotskista), APO/Grupo Político Anticapitalista, KEDA/Movimento pela Unidade na Acção da Esquerda, Energoi Polites, Rizospastes, Eco-socialistas Grécia e DIKKI/Movimento Democrático Social. Há, ainda, apoiadores anarquistas, por mais paradoxal que possa parecer.
Com a profunda crise social que as medidas de austeridade impostas pela Troika geraram nos chamados países periféricos da União Europeia (o que inclui, ainda, Espanha, Portugal e Irlanda, entre outros), a unificação das esquerdas que criticavam o programa econômico, a promiscuidade entre partidos existentes e o sistema bancário, a destruição da malha social e de todo sistema básico de proteção e serviço público, forjou esta frente de esquerda. Deve-se ter, contudo, clareza que se trata de uma frente em que algumas lideranças se aproximam de um discurso populista. Vários líderes, inclusive (o mesmo desvelado no Podemos espanhol) se dizem populistas de esquerda, no sentido de propor ações populares, de massa, na construção de um discurso hegemônico poderoso.
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“A política monetarista dá nisso: equilibra as contas públicas e destrói os menos abastados. As instituições do país acabam implodindo por falta de legitimidade” |
IHU On-Line - Qual é o programa político do Syriza? Quem é Alexis Tsipras e qual sua trajetória na esquerda grega?
Rudá Ricci - Trata-se de um programa socialdemocrata com alguns toques de radicalidade populista. Os quatro principais pontos de seu programa são:
1. Medidas de urgência para socorrer as vítimas da crise (300 mil famílias terão acesso à eletricidade gratuita, protegendo as pessoas do inverno grego e da especulação energética; milhares reconquistarão o
direito à habitação, através de um apoio efetivo ao arrendamento; combate à pobreza, garantindo o direito à segurança social);
2. Recuperação econômica, “com atenção especial às pequenas e medias empresas” e com “um programa de investimento a nível europeu”;
3. Criação de empregos em três fases;
4. Programa de reformas do Estado e da administração, “para terminar com um Estado clientelista” e com a corrupção.
Também propõem:
a) Reposição do salário mínimo de 751 euros;
b) Décimo terceiro mês para os aposentados (mais de 1 milhão e 200 mil pensionistas voltarão a receber o subsídio de natal);
c) Combate ao desemprego;
d) Reforma do Estado e a função pública; redução do total de ministérios para apenas 10; iniciativa legislativa de cidadãos e de convocação de referendos; defesa e afirmação de uma imprensa livre e com autonomia; transparência entre a política e os negócios contra a corrupção.
IHU On-Line - O que diferencia o Syriza, denominado de “esquerda radical”, para os demais partidos de esquerda da Europa?
Rudá Ricci - A ruptura com a lógica do que denominam de "casta", ou seja, uma relação simbiótica de interesses dos grandes bancos (que geraram situações de subprime ou acolheram empréstimos públicos que desmontaram o Tesouro Nacional) com os partidos políticos e governos. Também romperam de vez com a agenda liberal que a grande parte dos partidos socialdemocratas europeus adotaram desde os anos 1990. Enfim, muitos retomam a agenda socialdemocrata que, agora, é apontada como radical pelos partidos que a forjaram originalmente.
IHU On-Line - A vitória do Syriza pode ter alguma influência nas eleições espanholas com o Podemos? Tanto Syriza como o Podemos sinalizam uma nova agenda ou uma renovação da esquerda na Europa? Em que sentido?
Rudá Ricci - Gerará um forte reflexo na Espanha. Teremos duas eleições espanholas em maio: municipais e regionais. O Podemos é apontado como favorito, superando PP e PSOE. No último dia de janeiro deste ano, o Podemos colocou milhares de pessoas nas ruas de várias grandes cidades (300 mil em Madri) para demonstrar força e para prestigiar o Syriza.
Os dirigentes do Bloco de Esquerda de Portugal, Syriza e Podemos viajam constantemente para prestigiar eventos de seus pares. Não tenho dúvidas que veremos um "efeito dominó", envolvendo vários partidos europeus que poderá diminuir a margem de manobra da Alemanha e abrir uma forte polarização entre a "nova esquerda" e a extrema direita (que já cresce fortemente na França, Bélgica, Suíça e Áustria).
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“A força deste novo polo é a mobilização das massas. A União Europeia só se movimenta no campo institucional” |
IHU On-Line - Qual deverá ser a influência política do Syriza na União Europeia?
Rudá Ricci - Pequena. Causará, inicialmente, grande incômodo. E pela coalizão montada (com um partido de direita nacionalista), poderá montar uma ampla frente europeia de pressão contra as medidas de austeridade impostas pela Alemanha. Mas não terá muita força de imediato, sendo uma ovelha negra nesta família.
IHU On-Line - Qual é o significado do retorno da esquerda radical ao poder na Europa?
Rudá Ricci - Há duas possibilidades de leitura. A primeira, uma reação às políticas de austeridade econômica que atingiram fortemente a maior parte da população. Mas também podemos compreender como uma virada no sistema de representação inaugurada no século XIX (os partidos de massa modernos) e que se firmaram ao longo do século XXI. Possivelmente, estamos presenciando uma lenta mudança na estrutura de representação que pode alterar a estrutura de Estado.
IHU On-Line - Qual deve ser a relação do novo governo grego com a Troika?
Rudá Ricci - Profundo confronto, combinando com negociações pontuais. A força deste novo polo é a mobilização das massas. A União Europeia só se movimenta no campo institucional.
IHU On-Line - Como avalia a aliança do Syriza com os partidos de direita?
Rudá Ricci - Já se aliou e com os Gregos Independentes, nacionalista e de direita, fez maioria no Congresso (o Syriza obteve 149 cadeiras e os Gregos Independentes outras 13, de um total de 300 cadeiras do Parlamento Grego, o que garantiu a eleição do primeiro-ministro, Alexis Tsipras, do Syriza, e a aprovação de seu gabinete).
IHU On-Line - Enquanto Syriza chega ao poder na Grécia e o Podemos se cacifa para a vitória na Espanha, no Brasil, PMDB fica com a presidência da Câmara e do Senado. Gostaria que o senhor fizesse uma análise comparando os três cenários.
Rudá Ricci - O Brasil caminha para uma situação próxima à que gerou o crescimento do Syriza e do Podemos. O pacote econômico anunciado em janeiro pela presidente Dilma Rousseff e o descaso dos grandes partidos com o desejo dos eleitores criam as condições para esta aproximação de realidades. Contudo, tivemos no ano passado duas situações que criaram um hiato entre as manifestações de junho de 2013 (muito próximas às ocorridas em 2011 e 2012 na Espanha e Grécia) com o momento atual: a Copa do Mundo e a polarização muito agressiva das campanhas presidenciais do ano passado.
Veremos o que ocorrerá em maio deste ano, quando muitas categorias negociam seus contratos coletivos. Poderá ser o reinício das lutas sociais massivas contra todo sistema de representação política do país. Se aliarmos a estas condições o turbilhão das denúncias de corrupção envolvendo todos partidos dominantes do Brasil, teremos os principais ingredientes para uma feijoada indigesta.
IHU On-Line - Como vê a formação do Queremos no Brasil? No que seus princípios se diferem da Rede e por quais razões esse partido seria uma terceira via para a política brasileira?
Rudá Ricci - Ainda discutem seu manifesto e até mesmo o nome (que, no momento, pende para ser "NÓS"). Estão muito mais para algo similar ao Podemos que para Rede. A Rede era excessivamente identificada com a pauta ambientalista (que está nesta articulação do novo partido) e com a figura de Marina Silva.
O novo partido se vincula a uma agenda mais próxima da concepção de redes sociais e de uma agenda de forte controle social sobre as políticas públicas, além da agenda do desenvolvimento sustentável. Muitos sugerem um vínculo fortíssimo com movimentos sociais de base. A novidade foi a presença de Luiza Erundina no primeiro seminário desta articulação, que ocorreu em São Paulo. Erundina fez um discurso emocionado e disse que se sentia renovada com o que via, como se tivesse acordado 35 anos antes (quando o PT foi criado).
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“Quem está por detrás desta movimentação das forças sociais do final do século XX é Lula” |
IHU On-Line - O que representa a eleição da figura de Renan Calheiros para o Senado?
Rudá Ricci - Mais do mesmo. O campo institucional não percebe que está se distanciando à grande velocidade do cotidiano do país. Estão em outro mundo, dando milho aos pombos.
IHU On-Line - E a figura de Eduardo Cunha na Câmara?
Rudá Ricci - Mais grave que a vitória de Renan Calheiros. É a ascensão de um discurso ultraconservador, populista e que se alimenta do baixo clero do Parlamento. Vive de chantagens e poder criar uma alternativa populista de direita às populações que forem atingidas pelo pacote recessivo anunciado pelo governo federal.
IHU On-Line - Em nome da governabilidade, líderes do governo Dilma já buscaram aproximação com Eduardo Cunha (já que no Senado já são próximos de Renan). Diante disso, é possível afirmar que o PMDB é quem vai dar as cartas do segundo mandato de Dilma Rousseff?
Rudá Ricci - O governo Dilma Rousseff acabou. Terá que acender velas a Deus e ao Diabo. Terá que escolher entre se ajoelhar ao PT e Lula ou ao PMDB de Eduardo Cunha e Michel Temer ou, ainda, ao bloco empresarial e ultraconservador que convidou para fazer parte de seu ministério. Da mesma maneira que está se curvando para Eduardo Cunha - que combateu -, está renegociando os anúncios de cortes de direitos sociais que anunciou com as centrais sindicais. Perdeu o leme do navio.
IHU On-Line - Há quem diga que, mesmo com os movimentos de aproximação, Eduardo
Cunha será o grande inimigo de Dilma no Congresso e que a presidente terá de se resignar a governar através de Medidas Provisórias. O senhor acredita nisso? Por quê?
Rudá Ricci - Com um governo fraco, e com um presidencialismo híbrido, é bem razoável imaginar que a relação com o Executivo será de bater e negociar. Quanto mais fraco, mais o governo federal cederá. O melhor dos mundos para o parlamento e empresários. Nem precisarão jogar suas fichas no impeachment. Basta ameaçar.
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“Dilma parece envolta numa leitura esquizofrênica do mundo. De esboços neokeynesianos foi para o lado oposto” |
IHU On-Line - Tomando como base a composição de seu ministério, no que o segundo mandato de Dilma Rousseff deve se diferenciar do primeiro?
Rudá Ricci - Em tudo. A guinada à direita e ao catecismo monetarista é o fim do programa rooseveltiano montado por Lula. Dilma parece envolta numa leitura esquizofrênica do mundo. De esboços neokeynesianos foi para o lado oposto. Quem pode imaginar segurança e força num governante que foi eleito batendo fortemente na agenda que adotou alguns dias depois de eleito?
IHU On-Line - Como percebe a movimentação do movimento social em relação ao governo Dilma? É possível que organizações como a CUT e o MST até agora próximos ao governo iniciem um processo de descolamento?
Rudá Ricci - Quem está por detrás desta movimentação das forças sociais do final do século XX é Lula. Portanto, o embate em curso é entre ele e a presidente da República. A probabilidade dela se curvar ao ex-presidente (como ocorreu em 2012, depois de uma entrada triunfal de Dilma Rousseff em 2011), é grande.
IHU On-Line - Como avalia as primeiras ações do segundo Governo Dilma na área econômica?
Rudá Ricci - Apenas anúncio de recessão galopante e muita insegurança. Na prática, idas e vindas. Um governo atordoado.
(Por Patricia Fachin e João Vitor Santos)
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O crescimento do Syriza e do Podemos. Algo a ver com o Brasil? Entrevista especial com Rudá Ricci - Instituto Humanitas Unisinos - IHU