26 Outubro 2009
Há 30 anos, o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, que se organizou a partir do patrocínio e apoio do regime militar, foi tomado por um grupo de assistentes sociais articulados na organização e na reativação das entidades sindicais. Então, aquele momento “demarcou um salto político da categoria dos assistentes sociais”, contou-nos a deputada federal Luíza Erundina (PSB-SP), que participou do levante. Em entrevista à IHU On-Line, feita por telefone, ela relembrou aquele momento tão importante para a categoria dos assistentes sociais, assim como para o país, e refletiu sobre as mudanças provenientes deste marco que mudou o conceito do serviço social no Brasil. Conforme Erundina, “só quando a profissão começou realmente a se compor de classes populares, com compromissos e militância política é que a própria formação, papel, projeto e atuação profissional passaram a ser modificados. E isso se refletiu nas conquistas profissionais e no próprio currículo. Então, hoje, o serviço social tem uma importância muito grande na implementação das políticas públicas, no apoio à organização popular, na politização nos setores excluídos da sociedade e uma presença militante inclusive em partidos políticos”.
A assistente social e deputada federal pelo Partido Socialista Brasileiro Luíza Erundina de Souza tem 75 anos. Ficou nacionalmente conhecida quando foi eleita a primeira prefeita, representando o PT, em São Paulo, em 1988.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em 2009, comemoram-se os 30 anos do III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, conhecido como o ‘Congresso da Virada’. O que aconteceu nesse Congresso?
Luíza Erundina – Foi um momento que demarcou um salto político da categoria dos assistentes sociais. Era um período em que a ditadura ainda estava viva, e uma parte dos profissionais de serviço social estava participando ativamente da luta de resistência à ditadura, na organização dos movimentos sociais e populares e da luta política. A profissão era, em sua maioria, constituída de pessoas que não tinham um posicionamento político, não tinham uma militância política que caracterizou aquele momento da historia do país. Na época, nós, que éramos a minoria que lutava pelo país contra a ditadura militar e sofreu com a repressão, começamos a organizar politicamente a categoria, formando sindicatos, associações. A partir desse processo, e numa conjuntura política de efervescência política e mobilização social em torno da reorganização do país, realizou-se o III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, ainda numa linha bastante oficialesca, patrocinada pelo regime, com organização bastante reacionária, promovendo as políticas sociais da ditadura militar.
Então, um grupo de assistentes sociais articulados na organização e na reativação das entidades sindicais se organizou e foi ao congresso e tomamos a sua direção. No segundo dia, nós, desse grupo, fizemos uma plenária paralela à programação do congresso e tiramos uma decisão numa assembleia com cerca de 600 delegados, já havia uma insatisfação muito grande dos participantes, e mudamos os rumos do congresso. Entre outras coisas, destituímos a comissão de honra que era formada por Figueiredo, que era o ditador da época, Maluf, que era o governador, o ministro do trabalho que havia cassado a direção sindical que tinha Lula como presidente, e o ministro da previdência. Eles eram as autoridades militares que estavam gerenciando o país. Fizemos tudo isso democraticamente, via votação pelo conjunto dos delegados. A partir daí, o congresso ficou tenso, houve muita ameaça contra os que estavam à frente desse grupo. Esse foi um momento de ruptura da categoria com os compromissos com a ordem vigente, e resolvemos nos insurgir contra a orientação daquele congresso e a forma como a categoria se apresentava publicamente à sociedade. Aquele momento determinou uma mudança fundamental na profissão do serviço social, no trabalho dos assistentes sociais e na organização política da categoria. Então, por isso, é considerado o Congresso da Virada, porque foi uma virada de compromissos, na formação e do projeto ético-político da profissão. Isso tudo está sendo refletido pela categoria inteira durante esse ano e vai se concluir isso num congresso, a exemplo daquele outro, que vai se dar no mesmo local onde houve aquele, no Anhembi, em São Paulo, com as protagonistas daquele momento. Assim, poderemos refletir sobre a atual conjuntura política do país e o reposicionamento da profissão e dos profissionais frente às exigências que se colocam para nós, tanto do ponto de vista teórico de formação quanto do ponto de vista das políticas sociais que operamos.
IHU On-Line – O Congresso mudou o conceito que se tinha até então de serviço social e assistência social? Como era vista a assistência social até esse momento?
Luíza Erundina – O congresso se deu num momento em que ainda não tinha havido o processo da elaboração de um novo marco constitucional. E a assistência social, na época, e as políticas públicas, eram muito marcadas pelo assistencialismo, não tendo a assistência social como um direito, ainda numa relação de subalternidade dos setores populares que dependiam das políticas sociais. Evidente que com o processo de redemocratização, a assistência social passou a ser considerada como um direito social, como um dever do Estado, e um novo sistema de assistência social começou a ser construído no país com a Lei Orgânica. Isso foi fruto dessa luta política da categoria, que também passou a ser, assim como a saúde e educação, um direito social. Isso foi uma das conquistas dos profissionais do social, sobretudo os assistentes sociais.
O assistente social, em outros países, é um trabalhador social. No Brasil, é o assistente social, com uma marca muito forte do assistencialismo, que está na raiz da história da profissão. O serviço social teve, em seus primórdios, as primeiras damas de caridade, as filhas de classes sociais altas que, dentro de um humanismo e compromissos religiosos, prestavam assistências aos pobres, aos doentes e aos encarcerados, enfim. Depois, com o sistema capitalista e o processo de urbanização e industrialização, o modelo econômico foi centrado na exploração dos trabalhadores, operários, crianças e mulheres. Então, o Estado capitalista criou uma instituição, o serviço social, com profissionais formados, deixando de ser uma prática assistencialista, espontânea, caritativa e voluntária. A atividade profissional se expressou em diferentes países com nomes distintos, muitas vezes. Isso tudo marcou muito a cultura, a história, a ética e o projeto profissional. Só quando a profissão começou realmente a se compor de classes populares, com compromissos e militância política é que a própria formação, papel, projeto e atuação profissional passaram a ser modificados. E isso se refletiu nas conquistas profissionais e no próprio currículo. Então, hoje o serviço social tem uma importância muito grande na implementação das políticas públicas, no apoio à organização popular, na politização nos setores excluídos da sociedade e uma presença militante inclusive em partidos políticos. Por isso, hoje o profissional do serviço social é muito respeitado até por conta dessa virada que se deu, desse reposicionamento ético-político-profissional e com a presença desse profissional na implementação das políticas públicas com uma postura crítica, questionadora e de real compromisso com os setores populares.
IHU On-Line – É correto afirmar que foi a partir desse Congresso que a assistência social passou a ser considerada uma “política de Estado”?
Luíza Erundina – Não. Uma política de Estado começou a se dar depois da Constituição de 1988 e, particularmente, com a aprovação da Lei Orgânica do Assistente Social. Agora, como inspiração e expressão política e como construção dessa concepção e dessa conquista, sem dúvida alguma, aquele momento marcou esse grupo profissional, que também tem uma visão plural da sua prática. O assistente social atual trabalha sempre a exclusão social, a situação de quem depende da assistência pública, dentro de uma perspectiva multiprofissional. Nossa formação é abrangente, heterogênea, com base teórica ampla e com uma concepção de ação coletiva e política. Não é uma prática apenas científica, técnica, metodológica, planejada, racional. É como prática e ideologia.
IHU On-Line – Pensando na profissão da assistente social, quais foram os ganhos nessas últimas três décadas e quais são os problemas a serem superados?
Luíza Erundina – Dependemos das políticas de governo, dependemos do processo político geral do país e somos, portanto, também determinados pela conjuntura política, pelas políticas econômicas e pelas relações de classe que existem na sociedade. Então, nós estamos, como profissionais e como cidadãos e cidadãs, sujeitos às mesmas determinações que as demais profissões têm. Temos que ter uma visão de conjuntura, da realidade econômica-social-política do país e uma consciência política de a quem a profissão serve. Evidente que somos assalariados, dependemos do emprego público, instituições sociais, da atividade econômica de empresas onde atuamos, mas um aspecto que avaliamos que hoje precisa ser retomado e fortalecido é nossa organização política. Estivemos na fundação da CUT, mas, num dado momento, o sindicalismo entendeu que era melhor ter a sindicalização por setor de atividade econômica, e não por categoria profissional, e aí os profissionais passaram a se filiarem aos sindicatos onde atuavam como setor de atividade. Isso contribuiu para esvaziar nossos órgãos de representação social. Tínhamos os sindicatos, associações profissionais, uma entidade nacional articulando a categoria, uma participação em organismos latino-americanos próprios da profissão, e isso se esvaziou ao longo das últimas décadas e, a meu ver, é uma questão que temos que enfrentar hoje. O sindicato por setor de atividade terminou não contemplando as exigências, os problemas que se colocam da profissão do ponto de vista dos direitos trabalhistas, enfim. Porque os órgãos que existem são apenas fiscalizadores, não são de representação da categoria de trabalhadores. Esse é um aspecto que precisamos retomar. Além das lutas como a política salarial, de renda, de formação.
IHU On-Line – O “Congresso da Virada” foi decisivo para o fato de tantas assistentes sociais se lançarem no mundo da política?
Luíza Erundina – Antes do congresso, já tínhamos um pequeno grupo que participava e militava até por partidos clandestinos. Alguns sofreram perseguição política, tortura, outros tiveram que se exilar. Teve um substrato de profissionais da categoria que já tinha engajamento político-partidário de resistência na época da ditadura. E foi esse contingente, como uma semente, como um fermento, que foi colocando a outros assistentes sociais a dimensão política da profissão. Em todo esse movimento, a partir da luta pela redemocratização do país, o profissional de assistência social esteve muito presente.
IHU On-Line – Como assistente social, o que a senhora pensa sobre o Bolsa Família?
Luíza Erundina – Primeiro, temos que entender que essa política social que se expressa pelo Bolsa Família está dentro de uma opção de política econômica que está aí. Não é uma política que distribui renda, que desenvolve socialmente o país, não é um modelo de política econômica que promova justiça fiscal e tributária. Mas é uma política dentro de um modelo de economia neoliberal, centrada no sistema financeiro nacional e internacional, com vínculos, que se expressa por uma dívida pública impagável que consome a maior fatia do bolo tributário gerado pelo país. Portanto, não resta muita coisa para promover socialmente o país. Um governo progressista e democrático procura compensar aquilo que se tira dos trabalhadores, dos desempregos, dos aposentados, dos que são excluídos dos frutos mais substanciais dessa política econômica através de políticas assistenciais, não assistencialistas, e numa escala que acaba se transformando numa política de transferência de renda.
IHU On-Line – O que diferencia o Bolsa Família de Lula da política dos governos anteriores?
Luíza Erundina – É a escala, de fato o governo tem adotado uma política compensatória numa escala macro que tem um impacto na economia de algumas regiões, como o nordeste. Do ponto de vista conjuntural, não estrutural, podemos dizer que é uma política que tem distribuído um pouco de renda de outras camadas para quem não tem necessariamente emprego, não está integrado ao mercado formal de trabalho. Ela atende às necessidades básicas, como alimentação, mas não é uma política de desenvolvimento social, pois o país ainda está centrado no crescimento econômico que, por sua vez, está centrado no sistema financeiro nacional e internacional, baseado no lucro, na política cambial e de concentração de renda. Haja vista o quanto o setor financeiro tem se beneficiado dessa política, mesmo com políticas compensatórias como o Bolsa Família.
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Congresso da Virada: 30 anos de transformações para o serviço social brasileiro. Entrevista especial com Luíza Erundina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU