11 Setembro 2012
“O mundo árabe está mudando totalmente, está entrando num novo ciclo de sua história. A Síria representa a pedra angular, enquanto há aí novos atores políticos, a Turquia e o Irã, países que veem nela o núcleo de novas hegemonias regionais. E tudo isso está evoluindo ante a ausência da Europa”, constata o sociólogo.
Confira a entrevista.
“O mundo árabe está mudando totalmente, está entrando num novo ciclo de sua história. A Síria representa a pedra angular, enquanto há aí novos atores políticos, a Turquia e o Irã, países que veem nela o núcleo de novas hegemonias regionais”, diz o sociólogo Khaled Fouad Allam à IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Allam explica que a Síria, um dos países mais importantes da Liga Árabe e da Organização da Conferência Islâmica, “encontra-se isolada” e conta com apoio político da Rússia e da China. Segundo ele, “do ponto de vista geopolítico, tanto a China como a Rússia consideram a Síria o epicentro do Oriente Médio: quando se despreza a Síria, se despreza toda região, com graves consequências sobre as minorias muçulmanas na Rússia e na China. Para estes países, a Síria é uma importante cunha da geopolítica do Oriente Médio”.
Na avaliação de Khaled Fouad Allam, o “conflito político que se desencadeou na Síria é o produto da ‘primavera árabe’, mas é também o resultado de uma situação relativamente singular”. E esclarece: “O regime alaouitaha, sempre jogado no plano de um regime “laico”, no qual coexistem pacificamente as minorias étnico-religiosas – curdos, armênios, drusos, sunitas, cristãos, xiitas – e os alaouiti representam uns 10% da população. Mas, para manter certa coesão, o regime usou a violência política como modalidade de estruturação do Estado. Nos momentos de crise o Estado usou a violência para manter a própria legitimidade. O que ocorreu em 2011 em escala nacional reforça quanto havia ocorrido em 1981 em escala local”.
Khaled Fouad Allam é sociólogo e político argelino, naturalizado italiano. Atualmente leciona na Universidade de Trieste, na Itália.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a origem do conflito político na Síria? Como descreve os confrontos que ocorrem no país desde 2011, onde parte da população quer a queda do regime de Assad e outros defendem sua continuação? Quais são as raízes históricas desse conflito, que explodiu em 2011?
Khaled Fouad Allam (foto) – Diferentemente de quanto aconteceu nos outros países árabes, o conflito político que se desencadeou na Síria é o produto da “primavera árabe”, mas é também o resultado de uma situação relativamente singular. O regime alaouitaha, sempre visto como um regime “laico”, no qual coexistem pacificamente as minorias étnico-religiosas – curdos, armênios, drusos, sunitas, cristãos, xiitas – e os alaouiti representam uns 10% da população. Mas, para manter certa coesão, o regime usou a violência política como modalidade de estruturação do Estado. Nos momentos de crise o Estado usou a violência para manter a própria legitimidade. O que ocorreu em 2011 em escala nacional reforça quanto havia ocorrido em 1981 em escala local. A “primavera árabe” desencadeou, pois, uma generalização do conflito sobre todo o território nacional.
IHU On-Line – Por que, diferentemente dos regimes da Tunísia e do Egito, o regime ditatorial de Assad consegue resistir aos conflitos e se manter no poder?
Khaled Fouad Allam – Sobre as revoluções árabes, pode-se dizer que esta parte do mundo sai de um ciclo histórico para entrar num outro que representa uma incógnita. Mas há profundas diferenças entre as revoluções dos anos 1950 e 1960 no mundo árabe e as de hoje: o fim do nacionalismo árabe e o nascimento de um novo fenômeno que chamamos “islamo-nacionalismo”, no qual as novas gerações procuram resolver aquilo que para seus progenitores era um conflito, vale dizer, a relação entre nacionalismo e islã. Isso explica em parte o crescimento exponencial do fundamentalismo e o retorno do debate político sobre estado e a shari’a. Vão neste sentido os hodiernos conflitos políticos e sociais na Tunísia e no Egito, centrados na questão feminina na Tunísia e no tratamento das minorias religiosas no Egito. Em ambos os países a norma islâmica discrimina entre homens e mulheres e entre muçulmanos e não muçulmanos.
IHU On-Line – Qual foi a influência da Primavera Árabe nos conflitos da Síria? Qual foi a relevância social e política das manifestações e qual seu reflexo atual?
Khaled Fouad Allam – Os regimes árabes são regimes autoritários que podem se tornar despóticos. Em parte isso explica como a construção do estado-nação no século XX se tenha desenvolvido num contexto de guerra fria, de forte influência da União Soviética que apoiava os países não alinhados e na qual grande parte da classe dirigente provinha das academias militares. Por conseguinte, no decurso do século XX, o estado no mundo árabe se construiu contra a própria sociedade, e as derivas autoritárias cancelaram frequentemente os direitos humanos e todas as formas de liberdade pública. Isso explica também como precisamente nos anos 1960 e 1970 se tenha desenvolvido a contestação islamita em todos os países árabes, e como esta tenha sido reprimida pelos mesmos regimes. A propósito, assinalo os estudos de Gilles Kepel e de Robert Mitchelise e o meu ensaio sobre “O islã global”.
IHU On-Line – Como compreender a permanência de um regime ditatorial em pleno século XXI?
Khaled Fouad Allam – Em quase todos os países árabes, e entre eles a Síria, os regimes políticos são de tipo dinástico, e sua manutenção no tempo não se baseou sobre o princípio democrático, mas sobre o autoritarismo.
IHU On-Line – Por quais razões China e Rússia vetaram a resolução contra o governo de Assad, no Conselho de Segurança da ONU? Como esses países se beneficiam com o conflito armado?
Khaled Fouad Allam – Em particular, a Rússia sempre tem sido um aliado estratégico da Síria, tanto durante como após a guerra fria; o exército sírio foi formado pelos russos. Do ponto de vista geopolítico, tanto a China como a Rússia consideram a Síria o epicentro do Oriente Médio: quando se despreza a Síria, se despreza toda a região, com graves consequências sobre as minorias muçulmanas na Rússia e na China. Para estes países, a Síria é uma importante cunha da geopolítica do Oriente Médio.
IHU On-Line – Qual é a participação da religião na política desenvolvida na Síria? Ela interfere nas decisões políticas e nos rumos do país? A “guerra civil” instalada no país tem um fundamento religioso?
Khaled Fouad Allam – As relações entre religião e política na Síria se distinguem daquelas dos outros países árabes, porque existe certa forma de laicismo. Mas isso não significa que não se tenha desenvolvido o fundamentalismo islâmico. Já no início dos anos 1980, na onda da revolução iraniana, houve importantes manifestações de fundamentalistas islâmicos, que foram reprimidas pelo governo da época.
IHU On-Line – Como muçulmanos xiitas e sunitas se relacionam no país?
Khaled Fouad Allam – Na realidade, as relações entre xiitas e sunitas, tanto na Síria como alhures, sempre têm sido tensas; o conflito na base do divórcio (fitna) entre sunitas e xiitas jamais foi sanado. Isso não impede que, no plano sociológico, existam lugares de convivência relativamente pacíficos que, no entanto, podem explodir nos momentos de crise, como no atual.
IHU On-Line – Qual é a relação entre muçulmanos e demais religiões presentes na Síria? Há dialogo inter-religioso, especialmente com os cristãos?
Khaled Fouad Allam – Desde sempre a Síria é um exemplo de coexistência entre muçulmanos e outras confissões. Mas as ideologias e os vários nacionalismos podem pôr em crise a coexistência entre os grupos.
IHU On-Line – Qual é a atual situação dos cristãos na Síria e como se manifestam frente a permanência do regime de Assad? Há medo e risco de que, caso haja abertura democrática, os cristãos sejam perseguidos?
Khaled Fouad Allam – Na Síria, os cristãos se sentem em perigo por causa da guerra civil em curso, e sua comunidade se encontra ameaçada. Isso explica os temores manifestados pelas hierarquias cristãs no país Síria diante da atual situação.
IHU On-Line – Qual o significado da declaração de Assad, quando ele afirma que está se formando um novo mapa geoestratégico que alinha a Síria, a Turquia, o Irã, a Rússia juntando política, interesses e infraestrutura? O Oriente Médio está se modificando?
Khaled Fouad Allam – O mundo árabe está mudando totalmente, está entrando num novo ciclo de sua história. A Síria representa a pedra angular, enquanto há aí novos atores políticos, a Turquia e o Irã, países que veem nela o núcleo de novas hegemonias regionais. E tudo isso está evoluindo ante a ausência da Europa.
IHU On-Line – Quais são os conflitos entre Israel e Síria?
Khaled Fouad Allam – Além da questão do Golã, é evidente que Israel está perdendo sua “cintura de segurança”, que era formada pelo Egito, mas em parte também pela Síria. Isso torna muito mais complexa a crise síria, e haverá um notável impacto sobre todos os equilíbrios mundiais.
IHU On-Line – Com quais países do Oriente Médio a Síria se relaciona e com quais ela diverge?
Khaled Fouad Allam – A Síria, que era um país importante dentro da Liga árabe e da Organização da Conferência islâmica, encontra-se hoje isolada. Todavia, este isolamento é coberto e culminado pela Rússia e pela China.
IHU On-Line – Como foi o encontro que discutiu a questão política e religiosa da Síria, organizado pela Associação Sírios Livres na Itália? Quais os principais apontamentos do jesuíta Paolo Dall'Oglio?
Khaled Fouad Allam – O Pe. Dall’Oglio testemunhou a situação na Síria vista a partir de seu mosteiro, uma experiência bela, mas também dramática. Durante um encontro, do qual participei junto ao padre Dall'Oglio e a Massimo Cacciari, os sírios, além de suas diversidades étnicas e religiosas, manifestaram um desejo de unidade – e era recorrente o lema “o povo sírio é uno e único”. Mas tudo isto é construído politicamente.
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Síria e a nova geopolítica do Oriente Médio. Entrevista especial com Khaled Fouad Allam - Instituto Humanitas Unisinos - IHU